Em 1972, ele mexeu com as estruturas dos festivais
Por José Teles
Walter Franco, música e invenção
Foto: reprodução revista O Cruzeiro
A novela Hospital (1971), sucesso da extinta TV Tupi, dirigida por Walter Avancini, tinha um enredo simples e bizarro. Dois médicos morriam num acidente de automóvel. Um ficou carbonizado, o outro irreconhecível. Em época sem exames de DNA, a trama gira em torno da identificação dos cadáveres. Qual o do doutor Maurício (Stênio Garcia)? Qual o do doutor Fernando? (Jaques Lagoa). E quem seria o cantor da música tema?
O primeiro mistério soube-se com o final da novela. O segundo continuou misterioso até 1972, quando foi centro de um episódio polêmico, ao defender uma composição sua, intitulada Cabeça, no Festival Internacional da Canção. Chamava-se Walter Franco, paulistano, nascido em 6 de janeiro de 1945, e falecido no dia 24 de outubro de 2019, em consequência de um AVC.
Quem convidou o desconhecido Walter Franco para compor a trilha da novela foi Fernando Faro, que o conhecia de participações em festivais. Franco tirou o terceiro lugar com Sol de Vidro, num festival universitário, na mesma TV Tupi. Antes da novela, fizera a trilha de duas peças. O sucesso mediano de Tema de Hospital, o levou a ser convidado a gravar o primeiro disco, pela Phillips, um compacto simples. Tema de Hospital seria regravada com o título de No Fundo do Poço, LP de estreia, Ou Não, lançado pela Continental, em 1973.
Tema de Hospital era uma canção convencional, uma toada moderna, modismo de inícios dos anos 70. No Fundo do Poço é experimental, como o LP Ou Não. Conhecido como “o disco da mosca”, pela capa branca, com uma pequena mosca escura no centro.
“O LP de estréia de Walter Franco me soava (e ainda soa) mais radical e muitíssimo mais bem-acabado do que o Araçá azul”, afirma Caetano Veloso, no livro de memórias, Verdade Tropical (que traz três citações sobre Walter Franco). Ou Não foi o rompimento mais drástico, e influente, com a MPB dos anos 60. O palco do VI Festival Internacional da Canção estava propício à invenção. A maioria dos medalhões refugiara-se no exterior. Foi um festival de novos (Raul Seixas entre estes).
Walter Franco concorreu com Cabeça que, tecnicamente, não era uma música, muito menos uma canção. Mesmo assim tinha a preferência do júri para ser a vencedora à fase nacional do FIC:
“Eu particularmente me aproximo do trabalho dos artistas que procuram não só o uso da linguagem estritamente musical, mas do trabalho também poético. Onde a palavra deixa muitas vezes de ser palavra e vai fazer parte de toda célula musical. Com uma só palavra podemos obter vários sentidos”, explicou Walter Franco, em entrevista a revista O Cruzeiro.
A palavra “cabeça”, na música homônima, não é cantada, mas repetida, em ritmos diferentes, em entonações diferentes, sobrepostas. Uma sequência de perguntas e afirmações: “Que é que tem nessa cabeça irmão/Que é que tem nessa cabeça saiba irmão/que é que tem nessa cabeça saiba ou não/Que é que tem nessa cabeça saiba que ela não pode irmão (...)”.
Quatro anos antes, É Proibido Proibir, de Caetano Veloso, provocou uma explosão de ira da plateia, no II FIC, porém foi mais uma provocação física, pelo visual das roupas, ou o americano John Dandurand, que irrompeu no meio da performance aos berros. Cabeça, de Walter Franco, estava mais próxima de A Sagração da Primavera de Stravinski que, na Paris de 1913, levou o público à vaia, a violência, intimidada pela ousadia estética. Walter Franco não ganhou apenas vaias, mas a ira da censura pela subversão.
A produção do festival destituiu o corpo de jurados para não ter a incômoda composição do novo autor paulista como vencedora. Um júri formado por estrangeiros concedeu o prêmio a Fio Maravilha, de Jorge Ben (ainda sem o Jor), defendida por Maria Alcina.
MALDITO
“Tudo é uma questão de manter/a mente quieta/a espinha ereta/e o coração tranquilo”. Os versos repetiam-se feito um mantra em Coração Tranquilo, faixa do álbum Respire Fundo, um pop zen, o mais perto que Walter Franco esteve do sucesso. Embora já tivesse provado que poderia criar música radiofônica sem fazer concessões, quando Wanderléa gravou sua composição Feito Gente, em 1975. Respire Fundo e Vela Aberta (1980) afastam de Walter Franco a equivocada pecha de “maldito”.
Ele nunca fez concessões ao sucesso, mas tampouco o rejeitou. Canalha, canção deste segundo álbum, é uma das composições mais regravadas de Walter Franco. Mais uma de festival, o da Tupi, em 1979. Chamou atenção pela interpretação visceral, amaciada no disco. Ele foi um livre atirador dentro da MPB, mas nunca de problemas com gravadora, público ou empresário: “A música é arte de conversar com Deus, uma forma de discernir a ilusão, mostrando o caminho através do sentido palavras”, definição dele.
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