Por Fábio Costa
Em 15 de junho de 1969, portanto, há 50 anos, entrou no ar a TV Cultura de São Paulo, Canal 2. Na verdade, o Canal 2 operava desde 1960, com sentido comercial e integrando as concessões dos Diários e Emissoras Associados, de Assis Chateaubriand. Todavia, como o mesmo grupo controlava também a TV Tupi, Canal 4, em 1967 ocorreu a compra da emissora pelo governo estadual.
Anteriormente, em 1963, já havia sido firmada uma parceria com o Serviço de Educação e Formação pelo Rádio e Televisão (Serte) para a produção de 10 horas semanais de programação educativa. Isso numa emissora que se propunha “cultural” desde o início, mas que operava como comercial a exemplo de suas coirmãs. Entre 1968 e 1969, na fase de remodelamento do projeto da TV Cultura e já sob administração da Fundação Padre Anchieta – Centro Paulista de Rádio e Televisão Educativas, criada pelo governador Roberto Costa de Abreu Sodré, a emissora saiu do ar. José Bonifácio Coutinho Nogueira foi o primeiro presidente da Fundação, que tem desde o princípio por missão gerir a TV Cultura de forma apartidária e independente.
Os programas do primeiro dia da TV Cultura
A TV Cultura entrou no ar oficialmente às 17h30 do dia 15 de junho de 1969. No final da manhã daquele dia, às 11h, teve início uma solenidade de lançamento do novo canal, no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo. O evento foi gravado e transmitido para os espectadores da nova emissora. Liderando a solenidade, o governador Abreu Sodré, que teve ao seu lado diversas autoridades das três esferas governamentais. Só para ilustrar, entre os presentes estiveram o ministro das Comunicações, Carlos Simas, e o Cardeal de São Paulo, Dom Agnelo Rossi, à época presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Documentário, música e dramaturgia entre as atrações
Apenas no dia 16 de junho, portanto, a TV Cultura entrou no ar com atrações “normais”, quatro horas por dia. Às 19h30 foi exibida a primeira edição do Planeta Terra, no ar até hoje, com documentários sobre o mundo animal. Logo após, às 19h55, A Moça do Tempo era Albina Mosqueiro, com as previsões da meteorologia. Às 20h, o Curso de Madureza Ginasial, com as aulas inaugurais girando em torno do romance de Orígenes Lessa O Feijão e o Sonho, posteriormente adaptado também para novela de televisão.
Artes plásticas e música erudita
Quem Faz o Quê, atração das 21h, estreou com as atividades dos artistas plásticos, em sua proposta de falar sobre as mais diversas profissões. Em seguida, o pianista Fritz Jank foi a atração de Sonatas de Beethoven, às 21h30, enquanto às 22h15 O Ator na Arena, comandado pelo ator e diretor Ziembinski, exibiu trechos selecionados da peça Yerma, de Federico García Lorca.
Carlos Queiroz Telles: publicitário e dramaturgo revoluciona o Canal 2
No final dos anos 1970, o publicitário, dramaturgo e professor universitário Carlos Queiroz Telles chegou à TV Cultura. Ao assumir seu cargo de diretoria, encontrou a emissora num estado desanimador. Burocrática, pouco vista e desinteressante. Tratou de criar, extinguir e adaptar diversos programas. Uma das novidades foi o Vox Populi, que ficou 10 anos no ar a partir de 1977 e nos últimos anos tem sido reprisado no ingrato horário das madrugadas de sábado para domingo. Figuras importantes das artes, da política e da sociedade eram entrevistadas no programa, por um entrevistador cujo rosto não era visto e também por populares – daí o título. No decorrer da trajetória do Vox Populi o apresentador começou a aparecer diante das câmeras, junto ao entrevistado. Heródoto Barbeiro, Silvia Poppovic e Armando Figueiredo foram apresentadores do programa, que na estreia recebeu o truculento secretário estadual de Segurança Pública, Coronel Erasmo Dias.
História do folhetim eletrônico e programa para a terceira idade
Outras criações de Queiroz Telles nos diversos cargos que ocupou na TV Cultura foram a série de documentários A História da Telenovela (1979), que contou a trajetória do gênero no Brasil desde as origens até os dias de então, e o musical Festa Baile, apresentado nas noites de sábado nos anos 1980 por Francisco Petrônio e Branca Ribeiro. Agnaldo Rayol e Cláudia Matarazzo também chegaram a comandar este que foi o primeiro programa dirigido à terceira idade na TV brasileira.
Nos anos 1980 e 1990, o reforço da imagem da programação feita pensando em crianças e jovens
Ao longo das décadas de 1980 e 1990, a TV Cultura manteve seu compromisso com o jornalismo diferenciado e programas de debates e de fundo educativo. E também reforçou o caráter pedagógico de diversas atrações, direcionadas ao público infantil e ao juvenil. Não esquecendo também os programas musicais de diversos gêneros, que ganharam nesse período fôlego novo. Ainda, a marca RTC (de Rádio e Televisão Cultura), utilizada por alguns anos na tentativa de aproximar a TV Cultura das concorrentes comerciais, foi deixada de lado.
Musicais e desafios ao conhecimento
Os anos 1980 viram surgir títulos como Fábrica do Som, que deu espaço ao nascente rock brasileiro moderno. E Viola, Minha Viola, com a tradição da música sertaneja de raiz. Além disso, programas direcionados aos jovens como É Proibido Colar, Quem Sabe, Sabe e Qual É o Grilo?. Competições que envolviam conhecimentos e habilidades e estimulavam o gosto pela leitura e pela pesquisa, disputadas entre equipes de escolas públicas estaduais. Os anos 1980 também viram o surgimento do Roda Viva (no ar desde 1986) e apresentaram uma safra rica de infantis. Entre eles, Curumim, Catavento e Bambalalão. O mundo dos espetáculos, que a emissora cobria com o Panorama, ganhou para sua abordagem o Metrópolis, no ar desde 1988.
Na década de 1990, Rá-Tim-Bum, X-Tudo, Castelo Rá-Tim-Bum, Glub Glube Cocoricó deram prosseguimento à tradição da programação infantil de qualidade. No jornalismo, Opinião Nacional debatia os grandes temas em voga, com apresentação de Heródoto Barbeiro e Roseli Tardelli. O espírito da Fábrica do Som foi atualizado no Musikaos, com Gastão Moreira. A mesma década ofereceu aos espectadores Vitrine, Matéria-prima, Fanzine, Repórter Eco e Cartão Verde.
Anos de dificuldades e mudanças na TV Cultura
Ao mesmo tempo em que manteve sua posição de respeitabilidade e a proposta de qualidade que sempre caracterizou sua atuação, a TV Cultura sempre enfrentou tentativas de desvirtuamento de sua atividade, uso político da emissora e dificuldades orçamentárias que atrapalharam seus planos. As muitas reprises de diversos programas da casa nem sempre significam um desejo de explorá-los à exaustão, como pode parecer, mas sim o respeito ao público exercido da melhor maneira aliando-o à necessidade de manter a fidelidade ao espírito Cultura de atuar.
Ao assumir o governo de São Paulo, em 1995, Mário Covas encontrou um grande rombo no orçamento que impactou todos os investimentos. Além disso, as mudanças na direção da Fundação Padre Anchieta também modificavam, ou tentavam modificar, as diretrizes do trabalho. Todavia, mesmo com todas as dificuldades institucionais e financeiras, a emissora buscou novos caminhos sempre. Incluindo-se aí a inserção de propaganda comercial privada selecionada nos intervalos da grade, um dos meios encontrados para obtenção de receita, e as parcerias com entidades como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e o Serviço Social da Indústria (Sesi), que com aporte financeiro colaboraram decisivamente para a realização de programas importantes como Rá-tim-bum e Mundo da Lua, por exemplo.
Jornalismo público, marca da TV Cultura
Prova disso foram os documentários que produziu ou coproduziu, tratando de temas nacionais relevantes, e seu projeto de jornalismo público, opinativo e aprofundado, cujo descompromisso com números de audiência permite essa visão. O Jornal da Cultura, antigo RTC Notícias, desde os anos 1980 é um noticiário diferenciado. Seja pela forma de mostrar os fatos, seja pela voz sempre dada a especialistas. Nos últimos tempos, a saber, eles atuam como comentaristas das notícias ao vivo, no estúdio. Maria Cristina Poli, William Corrêa e Joyce Ribeiro são expoentes dessa fase. Entre os dirigentes da emissora, destacam-se Roberto Muylaert, Jorge da Cunha Lima e Marcos Mendonça.
TV Cultura, uma emissora de televisão que buscou fugir à ditadura da programação comercial
Ao longo de toda a sua trajetória, a TV Cultura produziu programas que dificilmente seriam produzidos por emissoras comerciais, como a Rede Globo ou a Record TV, por exemplo. Com efeito, levando em conta a proposta efetivamente cultural e pedagógica da emissora em si e seu descompromisso com o imediatismo do retorno comercial, só nessas condições poderiam ser levadas adiante iniciativas como a leva de programas infanto-juvenis que fez história na TV Cultura, bem como os musicais e a dramaturgia da casa.
Ameaças à independência não são de hoje
Desde os anos 1970, portanto, em seus primeiros anos de atividade, a TV Cultura sofre com tentativas de ingerência dos governantes de plantão sobre sua programação. Especialmente o jornalismo sofria com a situação. E em meados da década diversos jornalistas pediram demissão da emissora em virtude de não concordarem com a postura desejada pelo governo do estado para os telejornais da casa. Não foi raro o governo querer até mesmo espaço para divulgação dos feitos e obras paulistas. Como no caso de Paulo Maluf ou de José Maria Marin quando chefiaram o Executivo estadual.
Recentemente foi anunciada a troca do comando da Fundação Padre Anchieta, portanto, da TV Cultura. O governo de João Doria (PSDB) tem a intenção de aproximar a emissora das TVs comerciais, embora supostamente queira manter sua independência e sua liberdade de atuação, paradoxalmente.
Só o tempo dirá o que a liderança de José Roberto Maluf e o conselho administrativo composto por figuras experientes da TV comercial como Boni e Ricardo Scalamandré farão da TV Cultura. Com toda a certeza, o trabalho de todos é exemplo de sucesso. No entanto, o velho Canal 2 de São Paulo pode se tornar algo bem diferente do que sempre foi, se não houver um cuidado especial para manter sua atuação válida no sentido de ir na contramão das coirmãs. O sinônimo de qualidade e respeitabilidade que a TV Cultura representa não pode ser substituído por uma visão aplicável às outras emissoras.
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