sábado, 5 de outubro de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


LONDON, LONDON

Os anos que vivemos ali foram como um sonho obscuro para mim. Primeiro ficamos num hotelzinho em Queen's Gate, South Kensington. Logo Guilherme achou uma casa confortável de três andares em Chelsea e sugeriu que a alugássemos os três, isto é, os dois casais e ele. E assim fizemos. Era o número 16 de Redesdale Street, esquina com Shawfield Street, uma afluente de King's Road. Um ano depois mudamos, mais para estarmos separados do que para fugir daquela zona. Guilherme foi para um apartamento bem perto.
Mas eu e Gil quisemos ir para Notting Hill Gate, onde a presença de um grande número de jamaicanos fazia tudo parecer mais alegre. Eu morei em Elgin Crescent e Gil em Kensington Park Mews. Víamo-nos com freqüência, mas era diferente de viver na mesma casa. Depois me mudei para West Kensington (Basset Road). para Hampstead e finalmente para Golders Green. Curiosamente, todas as minhas lembranças da cidade de Londres, das ruas, de eu estar em Londres, são enormemente mais vivas e melhores se referentes ao período após a saída de Chelsea, mas as memórias da casa de Chelsea, de dentro da casa, são muito mais resistentes do que as das otitras moradas. 
Quando volto a Londres, vou olhar a casa da rua Redesdale e me enterneço, ao passo que nem mesmo sei onde exatamente ficam as demais casas onde morei. Uma explicação é que, no primeiro ano, incapaz de interessar-me pela cidade e pelo que se passava nela, concentrava-me em casa e nas pessoas que nela viviam ou que a frequentavam.
Uma outra razão é o fato de a casa de Chelsea ser ela mesma melhor do que as outras casas londrinas em que vivemos. Ali também aprendi a gostar de televisão. Eu nunca tinha visto televisão colorida e quis alugar uma. Os documentários da bbc me maravilhavam.
Assim também os grandes filmes americanos do passado. Vi o surgimento do Monty Py thon's Fly ing Circus. Falei dele com alguns amigos ingleses e eles disseram que o desconheciam- Pensei que havia um programa espetacular a que ninguém dava atenção. Na verdade o Monty Py thon apenas estreara e por isso é que ainda tão poucos o tinham visto.
Nessa casa - onde alguns amigos brasileiros auto-exilados vieram morar - recebemos a visita de Haroldo de Campos, que a apelidou de Capela Sixteena, e que acabou se machucando num acidente de automóvel, resultado da imprudência de Péricles Cavalcanti. Péricles é uma das melhores pessoas que conheço: sua delicadeza, seu desprendimento, sua generosidade quase sigilosa fazem dele um anjo - e isso se traduz tanto na pureza com que ele, àquela época, acolheu o temário da contracultura, abandonando um futuro acadêmico que se apresentava como brilhante, quanto nas gravações que recentemente vem realizando de canções sempre especialíssimas que compõe sem pressa e sem pretensão. Mas Péricles é um daqueles anjos eventualmente desastrados que derramam líquidos à mesa e, ao volante, embora tenham a intenção de respeitar os sinais, podem virar-se para fazer um comentário interessante justamente no momento em que as luzes trocam de cor. Assim, ao levarmos Haroldo para o seu hotel, Péricles acelerou ao invés de frear num cruzamento cujo sinal já se
mostrava amarelo a uma boa distância, e um carro que vinha na outra rua chocou-se conosco, tendo o impacto se dado justamente no lado em que Haroldo estava sentado. Esse acidente forçou Haroldo a demorar-se em Londres e nós o tivemos em casa por alguns dias. o doce Péricles cuidando dele com muito carinho. Nós ouvíamos Haroldo com deleite. E ele próprio se divertiu um pouco. Seu amigo Cabrera Infante, acompanhado da mulher Mirian, vinha visitá-lo e nós falávamos de música cubana e música brasileira, de cinema americano e, com parcimônia, de literatura. Eu tinha lido Três tristes tigres. em meio a um pacote da então nova literatura latino-americana (o boom) que me fora indicado por uns amigos de Glauber em Barcelona, e tinha gostado muito. Na verdade tinha gostado mais dele do que do hit Cem anos de solidão, embora menos do que de tudo de Borges. Infante é tão engraçado e tão sério quanto Buster Keaton, mas num estilo totalmente diferente. Sua amargura em relação à Cuba de seu examigo Fidel é perceptível o tempo todo, mas nunca foi mencionada. Ainda hoje, sempre que coincide de estarmos na mesma cidade, nos procuramos e nos falamos.
Uma visita comovente foi a que nos fez o Rei Roberto Carlos. Ele nos era, como já disse, grato pela revalorização que fizemos de seu trabalho. De passagem por Londres, quis nos ver. Ao atender seu telefonema para marcar a visita, Rosa Maria Dias (então ainda mulher de Péricles, também morando conosco) não acreditou que fosse verdade e, ao render-se à evidência, chorou. Roberto veio com Nice, sua primeira mulher, e nós sentíamos nele a presença simbólica do Brasil. Como um rei de fato, ele claramente falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade (e propriedade) do que os milicos que nos tinham expulsado, do que a embaixada brasileira em Londres (que não tinha contato conosco e, segundo nos contou um amigo que procurou por mim através dela, usava a meu respeito a expressão "persona non grata"), e muito mais do que os intelectuais, artistas e jornalistas de esquerda, que a princípio não nos entenderam e nos queriam agora mitificar: ele era o Brasil profundo. Conversando sobre a gravação de seu novo disco, Roberto pegou meu violão e cantou - dizendo, sem nenhuma insegurança, que iria nos agradar - "As curvas da estrada de Santos".
Essa canção extraordinária, cantada daquele jeito por Roberto, sozinho ao violão, na situação em que todos nos encontrávamos, foi algo avassalador para mim. Eu chorava tanto e tão sem vergonha que, não tendo um lenço nem disposição de me afastar dali para buscar um, assoei o nariz e enxuguei os olhos na barra do vestido preto de Nice, enquanto Roberto repetia com ternura: "Bobo, bobo". Londres representou para mim um período de fraqueza total. Frequentei umas aulas de inglês para estrangeiros numa daquelas escolas de várias salas com turmas grandes.
Mas falava português quase o tempo todo, morando numa casa habitada por brasileiros e freqüentemente visitada por brasileiros. Eu me sentia incapaz de aproveitar o que deveria ser visto como oportunidade. Gil, ao contrário, tentava tirar vantagens da situação. Saía mais, estudava com mais afinco, encontrava músicos, ia a muitos concertos.
Assombra-me pensar que, em dois anos e meio, não fui uma só vez ver uma peça de teatro inglesa, não assisti a um só concerto de música clássica, não entrei numa livraria ou numa biblioteca, e só fui aos museus (o British Museum e a Tate Gallery ) na semana de voltar para o Brasil, levado por Arthur e Maria Helena Guimarães, e pelo pintor e cenógrafo português Jasmim. Era a "contracultura" e todos os caminhos levavam aos shows de rock'n'roll e ao Electric Cinema, mas o que fora feito da curiosidade do menino que, em Salvador, ia ver tudo o que podia no mamb, no salão nobre da reitoria e na Escola de Teatro? Eu me deixava levar. Na verdade, estava mais e mais enfronhado na música popular. Minhas
veleidades de deixar o que já fazia profissionalmente para estudar, dirigir filmes ou escrever recolheram-se sob o impacto da prisão e do exílio. Eu simplesmente não tinha forças para esboçar um gesto livre. A campainha que soou antes que eu adormecesse na manhã em que os policiais me levaram me marcou tão fundamente que eu tremia ao som da campainha da casa de Chelsea. Desse jeito, era-me impossível ousar o que quer que fosse. E, à medida que alguma receptividade ao que eu fazia se esboçava no meio profissional inglês, meu mero senso de sobrevivência me atava a uma atividade em que eu já estava instalado.
Ficava em casa ouvindo Gil tocar, tocando eu mesmo às vezes, vendo televisão, lendo e, sobretudo, conversando com as pessoas que apareciam. Nessas conversas eu me mostrava descuidadamente falante, mas minhas alegrias não duravam até eu pôr a cabeça no travesseiro. Sempre havia do que me envergonhar. E eu não sabia como fazer esforço para progredir. Hélio Oiticica estava vivendo em Londres desde antes de nós deixarmos o Brasil.
Tinha havido uma exposição dele muito falada e concorrida, e a turma do grupo cultural Exploding Galaxy, liderada por Paul Keeler e David Medalla, o rodeava e cultuava. O então crítico de arte do Times, Guy Brett, que escrevera com muito entusiasmo sobre ele e sobre Ly gia Clark, vinha muitas vezes à Capela Sixteena encontrá-lo e conversávamos. Hélio era um desses artistas radicais e inacreditavelmente inteligentes que permanentemente transformam a singularidade quase inalcançável de sua visão em argumentos luminosos. Tendo participado do movimento carioca chamado "neoconcretismo" (como sequência e oposição ao movimento concretista dos pintores de São Paulo), Hélio trazia para esse mundo pós-mondrianiano não apenas o "orgânico" e o "sensível" que supostamente faltava aos "frios" paulistanos, mas os extremos do romantismo do pop (sem fazer arte pop), a tematização ostensiva de sua mitologia pessoal (Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, os bandidos das favelas com quem mantinha amizade pessoal, o rock'n'roll, o sexo, as drogas pesadas), um comprometimento de ser, ele mesmo, uma obra conceitual. Saindo do quadro e do objeto contemplável para as instalações (como a "Tropicália") e as vestes transcendentais que eram os "Parangolés" (arranjos pouco legíveis como vestimentas e impossíveis de serem expostos como objetos autônomos, esses mantos, capas, echarpes ou gibões feitos de materiais variados - plástico e brocado e filo... -, lançados por ele na situação em que o foram, sugerem a quem os examina um turbilhão de pensamentos e sentimentos sobre o corpo, a roupa, a beleza plástica, a invenção, a miséria e a liberdade), Hélio tornou-se uma espécie de happening ambulante. Isso era bem o espírito da época: lembremos Agrippino e Rogério querendo - e conseguindo em larga medida - ser personagens e não meros autores de uma obra genial; lembremos que o neo -rock'n'roll inglês dos anos 60 e o próprio tropicalismo tinham muito dessa ambição, e que a própria política "narcisista" de ideologizar a intimidade e sexualizar os julgamentos dos atos públicos era algo da mesma natureza. Mas Hélio levou isso a conseqüências extremas. E, sendo um artista basicamente construtivista, o fez com requinte e graça inigualáveis. Nele não se viam as trevas medievais que se adivinhavam por trás do romantismo radical de outros. Hélio esteve até o fim comprometido com a ideia de vanguarda, de criação de um design novo para a vida, independentemente dos desígnios da miséria, da opressão e da própria condição humana.
Acompanhávamos de longe o que se passava no Brasil. Sem que eu estivesse certo do que poderia resultar de uma revolução armada, o heroísmo dos guerrilheiros como única resposta radical à perpetuação da ditadura merecia meu respeito assombrado. No fundo, nós sentíamos com eles uma identificação à distância, de caráter romântico, que nunca tínhamos sentido com a esquerda tradicional e o Partido Comunista. Nós os víamos - e um pouco nos sentíamos - à esquerda da esquerda. Quando mataram Marighella.
o líder da guerrilha urbana, um baiano que pertencera ao Partido Comunista e que tinha a fama de ter respondido, quando estudante, às questões de uma prova de química em versos decassílabos rimados, coincidiu de publicarem as primeiras fotos que fizeram de nós no exílio na mesma capa de revista em que expunham a de Marighella morto.
Isso me pareceu doloroso. Eu enviava então, a pedido de Luís Carlos Maciel, artigos para o jornal O Pasquim, e, considerando o peso simbólico da coincidência das duas imagens naquela capa de revista (a de maior tiragem do Brasil de então), escrevi um longo e amargurado texto que terminava com a afirmação "Nós estamos mortos: ele está mais vivo do que nós". Nem uma só pessoa no Brasil percebeu do que eu estava falando. Recebi muitas cartas tentando reconfortar-me pelo sofrimento de estar exilado e conversei com várias pessoas que passavam por Londres e por Paris: mesmo os que mencionavam a execução de Marighella e o meu artigo não relacionavam nem remotamente uma coisa a outra. Fiquei espantado e isso me deu uma espécie de medida da distância psicológica que nos separava dos que estavam vivendo no Brasil. As notícias de ações terroristas causavam um misto de entusiasmo e apreensão. Afinal, doces tocadores de violão saídos de lares da classe média não se sentem muito à vontade diante da perspectiva de violência. Mas as trocas de embaixadores de países ricos por grupos de prisioneiros - com as agradáveis confirmações por parte dos sequestrados de que foram tratados com humanidade - apareciam como gloriosas vitórias daqueles que lutavam a boa luta da resistência.
Quando Rogério Sganzerla e Julinho Bressane chegaram a Londres, podia-se ver, através dos vidros das janelas da frente da casa de Chelsea, uma bandeira brasileira que alguém em nossa casa tinha posto para ilustrar as reuniões em frente à tv para assistir aos jogos da Copa do Mundo. Os próprios ingleses, deslumbrados com o futebol de Pele, Tostão e Jairzinho, tinham passado a torcer pelo Brasil, uma vez que a Inglaterra fora desclassificada. Sufocados pela utilização que a ditadura brasileira fazia do futebol para sua propaganda - e que de longe não podíamos sentir na mesma intensidade -, os dois jovens cineastas demonstraram mal-estar diante da bandeira. Eu tinha deixado o Brasil pouco depois do lançamento de O Bandido da Luz Vermelha, o primeiro longa-metragem de Sganzerla, e tinha visto nesse filme tanto talento e tanta liberdade que estava disposto a comprar todas as críticas que seu diretor fazia ao Cinema Novo. O próprio filme valia por um comentário exigente das fraquezas do movimento. Rogério e Júlio tinham chegado a Londres acompanhados de Helena Ignez (a bela atriz que Bethânia e eu já idolatrávamos na Escola de Teatro da Bahia e que, tendo sido a primeira mulher de Glauber, agora estava casada com Sganzerla) e os três, com suas roupas, seus cabelos e seus modos, eram um exemplo perfeito de desbunde elegante, sem uma gota de provincianismo. Um filme de Bressane, embora aparentemente mais modesto na feitura, me impressionara mais do que o próprio Bandido de Sganzerla: Matou a família e foi ao cinema. Ainda hoje considero esse um dos filmes mais poéticos feitos no mundo naquele período - e no Brasil em qualquer tempo. Curiosamente, Caca Diegues - que sempre representou o aspecto sensato do Cinema Novo, tendo se tornado uma espécie de personificação do movimento - é que me fizera, numa ida minha a Paris, ver o filme, que ele também adorava. Sganzerla considerou incoerente que eu louvasse o filme de Júlio e desse o crédito a Diegues por mo ter apresentado. Por outro lado, Glauber me escrevia cartas violentíssimas, naquele seu estilo sem auto-censura, praticamente proibindo minha amizade com os dois rebeldes. Isso tudo me custou muito mal-estar e, embora depois as coisas se resolvessem até consideravelmente bem, deplorei a incapacidade dos dois lados de se energizarem mutuamente. Não que isso não estivesse acontecendo em alguma medida, mas sem dúvida houve muito desperdício de oportunidade e muita inspiração jogada fora. No fundo eles amavam Glauber - e Glauber também os amava. As agressões que a dupla lançava contra o mestre tinham algo de assassinato do pai mesclado a lucidez crítica. Era como se Gil e eu fôssemos pichar tom Jobim e a bossa nova, e, para isso, argumentássemos, por exemplo, contra o fato de ele ter gravado um disco nos Estados Unidos com temas semelhantes à música erudita brasileira chamada "nacionalista", com empostação sinfônica.
Que tal atitude ocorresse a Gil e a mim era simplesmente impensável. É que, no Brasil, a música popular simplifica a vida dos seus produtores como o cinema não pode fazê-lo. A facilidade da feitura, o vigor do mercado interno (que as multinacionais logo perceberam), a textura da tradição - tudo dá ao músico popular o que ao cineasta é negado. Apesar de tudo isso, eu sabia então - como sei hoje - que o Cinema Novo é criticamente mais vulnerável do que a bossa nova. (No entanto – ou talvez por isso mesmo - usamos sempre iniciais maiúsculas para o primeiro, enquanto a última não parece merecê-las... ou delas precisar.) O brilhantismo de Sganzerla como diretor fazia prever uma carreira profícua e instauradora de uma nova norma (uma nova corrente central) para o cinema brasileiro - e com adesão do público e atenção internacional: ele prefigurou muito do melhor Almodóvar e do melhor Tarantino; mas as dificuldades de tal coisa se dar num país como o Brasil desabaram sobre ele de forma pesada, e, embora ele continue filmando e não tenha perdido o brilho do gênio, ele o faz a intervalos longuíssimos e sem produzir aquelas conseqüências.
Bressane é que, já a partir de Londres, iniciou uma obra numerosa e personalissimamente culta, num afastamento deliberado das pretensões mercadológicas, cuja beleza solitária cresce com o tempo e que busca enfrentar as questões mais sutis da natureza do cinema como arte de autor. Minha amizade foi sempre mais estreita com ele do que com Sganzerla. A inimizade que fatalmente resultaria da minha posição entre eles e os "velhos" do Cinema Novo também o foi, além de mais duradoura. Hoje somos de novo amigos e minha admir ação por seus filmes se alimenta muitas vezes do fascínio que sua personalidade exerce sobre mim. Julinho gosta de contar que tom Jobim, respondendo a uma moça que queria saber se ele fazia distinção entre música erudita e música popular, disse: "Eu não faço distinção, mas ela existe". Isso sempre me leva a pensar em como não se fala de um possível cinema erudito em oposição ao cinema popular: atração de feira, curiosidade tecnológica, o cinema seria popular por uma fatalidade de origem: ao mesmo tempo, a divisão nítida dos músicos em eruditos e populares retira destes últimos o direito (e a obrigação) de responder por questões culturais sérias, enquanto se espera isso de cineastas dos mais variados níveis de instrução. Julinho tem vocação para grande erudito e seus filmes especialíssimos sugerem o recolhimento de um estudioso solitário.
Uma piada corria no Rio no meio dos anos 60 sobre os filmes brasileiros serem "uma merda" mas seus diretores "geniais". Isso dizia respeito ao fato de os cineastas do Cinema Novo - e Glauber mais que todos - alimentarem discussões elevadíssimas sobre filmes que o público mais ou menos ignorava. Já nos anos 70, esses mesmos cineastas, um pouco mais treinados, fizeram filmes em que a ambição intelectual (autoral) dava algum lugar ao trabalho de equipe e à tentativa de conquista de mercado.
Assim como algo de relevante se conquistou nas primeiras precárias e heróicas produções, alguma coisa notável se conseguiu também nessa segunda investida. O público compareceu grandemente e, a meu ver, nos bons momentos os filmes de uma fase iluminavam os da outra. Sganzerla e Bressane surgiram exatamente no momento dessa transição.
O primeiro mostrou-se nitidamente capaz de realizar filmes "de cinema", que o público reconheceria como filmes e que teriam muito a dizer sobre a linguagem desse meio. Já Julinho radicalizou desde o início a postura do cineasta como poeta, como autor soberano, realizador de experimentos em estado puro, sem compromissos seja com a coletividade criativa seja com a coletividade espectadora. A obstinação com que ele tem se mantido nessa posição fez dele o mais fundo dialogador com o legado de Glauber. Além da alegria de reconquistar sua amizade, tive, nessas últimas décadas, a honra de atuar em alguns dos seus
filmes-poemas. O mais fascinante é que ele tem por vezes voltado seu olho de monge alfarrabista para a tradição da música popular carioca, recontando assim sua autobiografia secreta de carnavalesco convertido em eremita. Minha vinculação profunda com o Cinema Novo (e minha opção fatal por agir no mainstream) me mantém ligado à produção amadurecida dos cineastas originais do movimento ainda na ativa, mas a aventura de Júlio Bressane me diz algo que eles não podem dizer - e certamente diz a eles muito mais do que aparece na consciência. No começo do exílio londrino, amando as pessoas e as obras de todos os envolvidos na desavença, não me sentia nem mesmo no direito de julgar seus atos. Mas nem por isso deixei de invejá-los por eles fazerem filmes. Gil e eu não sabíamos o que fazer em Londres. A gravadora com que tínhamos contrato no Brasil - a Philips - tinha enviado uma carta a executivos do braço inglês da companhia recomendando-nos e explicando nossa situação. Mas eu não esperava - nem sequer desejava - que eles dessem atenção a esses pedidos. Temia que alguém me chamasse para gravar alguma coisa e eu passasse vergonha. No Brasil os produtores não me permitiam sequer tocar violão em meus próprios discos - e eu lhes dava razão. Eu sinceramente esperava que Gil se enturmasse logo com músicos e começasse a mostrar a exuberância do seu talento. Com boa vontade, imaginava ser capaz de, logo que ele tivesse trabalho, pegar uma carona como parceiro e orientador.
Uma noite veio à nossa casa no 16 da rua Redesdale um homem que queria nos ouvir. Ele havia combinado com Guilherme pelo telefone e nós pensávamos que ele fosse da Philips. Na verdade ele tinha sido da Philips. Antes de sair da companhia, ouvira falar em nós. Ficara curioso. A Philips propriamente não tinha interesse. Mas ele guardara o nosso endereço e, agora que estava trabalhando em outra gravadora, na qual tinha mais autonomia, vinha verificar. Seu nome era Ralph Mace. Conversou um pouco conosco e pediu que cantássemos qualquer coisa. Surpreendeu-me que ele ficasse tão agradavelmente surpreso com tudo o que ouviu. E mais ainda que tivesse demonstrado tanto entusiasmo pelo meu material quanto pelo de Gil. Nos encontros seguintes Mace já falava em fazer discos conosco. Ele imaginava um disco de cada um. Propôs que eu compusesse algumas canções em inglês.
Mudei muito de ânimo quanto a fazer música por causa desse homem. Ele gostava sinceramente de nós e nos tratava com um cuidado muito atento. A novidade de ele ser tão otimista quanto a mim me fez perder grande parte da vergonha. Passei a achar, maravilhado, que era possível que alguém naquele lugar se interessasse por minha música, aproveitando dela aspectos que no Brasil nem eram levados em conta. Isso era mais importante do que o fato esperável de eles não captarem muitos outros aspectos que no Brasil seriam óbvios. A confirmação veio quando entramos no estúdio para gravar.
Lou Reisner, o produtor americano, estava vivendo em Londres e, não sei por que caminhos, chegou até nós. Não foi Mace quem nos aproximou. Ao contrário, os dois se encontraram porque Reisner quis produzir o meu disco. Lembro de ter ido ao apartamento de Reisner em Knightsbridge e de ter cantado várias músicas.
Sua reação muito positiva era para mim um assombro continuado. Nunca esqueço de que foi ele quem me corrigiu o inglês na frase- chave - e título - da canção "In the hot sun of a Christmas day ". Tudo nessa canção era já como pode ser ouvida no primeiro disco que fiz em Londres. Menos o refrão. Eu cantava: "In the hot sun of the Christmas day ". O mais ridículo é que ele me dizia, em tom de sugestão, que eu mudasse para of a, em vez de of the, e eu não entendia que palavra era essa of a. Quanto mais ele repetia of a, of a, mais eu me confundia. Eu ouvia over, pronunciado à inglesa (Lou era americano), e achava absurdo. Não que eu cresse que ele estava dizendo over - eu sabia que não -, mas não me ocorria outra palavra e minha mente não conseguia estar livre dessa. Mesmo quando ele pronunciou ov ei, separando bem as duas palavras e exagerando o ditongo ei, ainda me senti perdido por uns poucos segundos. Um outro americano, chamado David Linger - que nacia tinha a ver com produção de discos mas que veio até a casa da Redesdale e se fez nosso amigo -, foi quem mais me ajudou na aproximação com a língua inglesa: os americanos - descobri em Londres - são naturalmente mais identificados conosco do que quaisquer europeus, e David era um garoto de inteligência excepcional. Seu talento para línguas, no entanto, terminou mais trazendo-o para o português - que ele ainda fala sem sotaque e escreve com correção, embora tenha, depois de uma longa temporada brasileira, voltado a viver nos eua - do que me levando para o inglês.



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