Por Leonardo Davino*
A voz do morto
Se for para regravar e não reassinar, recriar, reinventar a canção, melhor nem cantar. Maria Alcina e o produtor Thiago Marques Luiz sabem disso e assinaram - tornaram inéditas - canções em que a antropofagia de Caetano Veloso se revela mais evidente. Exemplo disso é "A voz do morto", paródia tropicalista caetânica de "A voz do morro", de Zé Keti. Composta para Aracy de Almeida cantar, "A voz do morto" dispara: "Eles querem salvar as glórias nacionais / Coitados / Ninguém me salva / Ninguém me engana / Eu sou alegre / Eu sou contente / Eu sou cigana / Eu sou terrível / Eu sou o samba". Estes versos são apropriados por Maria Alcina naquilo que eles guardam da raiz difusa do samba, que no Brasil pode unir, na voz de Aracy, Paulinho da Viola (Viva!) e Roberto Carlos ("Eu sou terrível"). Rainha dos terreiros, a voz singular de Maria Alcina canta do lado de fora, à margem, mas na glória de quem compreende as contradições do país - "feito de ouro e prata e filó de nylon" - que tem o samba (margem da margem) como ícone. E faz isso com um arranjo de rock pesado, além das vozes incidentais de Chacrinha, Dercy Gonçalves, Elke Maravilha, Grande Otelo e Aracy de Almeida - símbolos de carnavalização, de autoironia, de deboche crítico. Portanto, ninguém melhor do que Maria Alcina, esse espírito de tudo, para comer - o filme "Terra em transe", o livro "PanAmérica", a peça "O rei da vela" e a instalação "Tropicália" - e cuspir na cara dos caretas neste ano do meio século da Tropicália - "a vez do louco / a vez de tudo".
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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