LÍNGUA
A partir do momento em que Ralph Mace propôs fazermos os discos, compus várias canções em inglês. Não era a primeira vez que o fazia. Em São Paulo, muito antes de imaginar que um dia iria morar em Londres, compus uma marcha bossa-nova com letra em inglês, embora quase não falasse essa língua. Eu o tinha feito porque o inglês tornava-se mais e mais internacional e eu achava que, sendo bombardeados pela língua inglesa todo o tempo, nós tínhamos o direito de usá-la como nos fosse possível.
Se o rádio brasileiro tocava mais músicas em inglês do que em português, se os produtos, os anúncios, as casas comerciais usavam inglês em suas embalagens, slogans e fachadas, nós podíamos devolver ao mundo esse inglês mal aprendido, fazendo-o veículo de um protesto contra a própria opressão que o impunha a nós. Ao mesmo tempo, queria dialogar com pessoas no "mundo exterior". Era um esboço ingênuo de comunicação internacional, um modo de tentar abrir um respiradouro nesse universo fechado que é o Brasil. Eu não ambicionava sucesso mundial, nunca sonhei morar fora - e muito menos num país de língua inglesa. Na contracapa do meu primeiro lp solo escrevi: "Quando a gente não tem vontade de ir para os States não tem jeito". Isso não era um desejo tentando ocultar-se numa negação. Era o reconhecimento consciente de uma espécie de dever que eu tinha preguiça de cumprir: sendo capaz de aprender inglês com facilidade, podendo planejar uma investida nesse sentido, eu me sentia totalmente inapetente, enfastiado com a perspectiva. Achava- me tímido e desestimulado. Mas sabia que o Brasil precisava (precisa) abrir diálogos mundiais francos, livrar-se de tudo o que o tem mantido fechado em si mesmo como um escravo desconfiado. Assim, a canção que escrevi então, era um grito de socorro às avessas: eu me dirigia a alguns interlocutores imaginários no mundo lá fora e descrevendo minha pobreza e minha solidão de brasileiro, pedia que não me ajudassem, apenas me dissessem seus nomes e me deixassem dizer quem era eu. A canção chamava-se "Lost in the Paradise" (olha o doutra vez):
My little grasshopper airplane cannot fly very high
If i nei yon so far from my sight
I'm lost in my old green light
Don't help me, my love
My brother, my girl Just tell me your name Just let me say who am I
A big white plastic finger
Sutrounds my dark green hair
But it's not your unknown caress
It's not from your unknown right hand
Don't help me, my love
My brother, my girl
Just tell me your name
Just let me say who am I
I am the sun, the darkness
My name is green wave
Death, salt South America is my name
World is my name, my size
And under my name here am I
My little grasshopper ah plane cannot fly very high
Agora me lembro. "Cinema Olímpia" não foi a única canção inédita que cantei no show de despedida no Teatro Castro Alves. Também cantei "Empty boaf, que gravara pouco antes no disco feito em Salvador. Essa foi a outra canção que escrevi em inglês antes de ir - e de saber que iria - para Londres. É uma canção muito sincera. Mais sincera do que a outra. Não que seja boa. Mas eu ali estava dizendo ao mundo que eu estava vazio. E era exatamente o que sentia. E, o que é mais importante, a melodia e o som das palavras reproduzem exatamente como eu o sentia, recriam o clima em que me encontrava então: "From the stern to the bow/ O, my boat is empty / O, my mind is empty / From the who to the bow". Esses aleijões nascidos do pensamento de responder ao bombardeio da língua inglesa me envergonhariam algum tempo depois. Hoje, são-me indiferentes. As canções que compus em Londres são melhores. (Há pelo menos uma - "Nine out of ten" - cuja letra ainda hoje me agrada.) Mas essas já nasceram encomendadas por um produtor inglês, o que as fazia ser a um tempo mais modestas e mais ambiciosas, pois tinham chance real de ser ouvidas por pessoas de língua inglesa. Não se deve crer que eu, no período de São Paulo, não pensava tais coisas a respeito de escrever canções em inglês, que a ideia de abuso legitimado pela dominação anglo-americana só me ocorreu depois como um modo de justificar a posteriori o que seria meramente ridículo. Não. Eu pensava tudo isso com absoluta lucidez. O que se deve ter em mente é que eu o pensava dentro de uma perspectiva realista e me levava em conta a desimportância da música popular: as pretensões "maiores" estariam (de fato estavam) fadadas a desaparecer juntamente com as próprias canções caso elas não chegassem a se destacar como tais. Ou seja, não eram esses propósitos ambiciosos que se cobravam de uma canção, nem mesmo no Brasil, nem mesmo naqueles tempos de "contracultura". De qualquer forma, as "pretensões maiores" revelam-se hoje apenas ingenuamente risíveis, valendo relembrá-las somente porque representam um momento curioso da história de minhas (nossas) relações com a cultura internacional liderada pela língua inglesa.
O inglês é tão estranho a uma mente desenvolvida no âmbito do português quanto é possível a uma língua sê-lo a um ser humano. Sua presença perene não raro intensifica esse estranhamento, ao invés de mitigá-lo. De tanto ouvir canções com cujos sons nos familiarizamos sem decifrar-lhes o sentido, de tanto ver filmes legendados, nos habituamos a considerar o inglês um grou-grou-grou que faz parte da vida, sem exigir esforço de nossa parte para lhe conferir inteligibilidade. Quando, mais tarde, aprendemos muitas palavras e alguma tecnologia da língua inglesa, é-nos ainda sempre fácil "desligar" e fazê-las voltar à sua original (essencial?) condição de grunhido. Falando sobre minha infância, no início deste livro, contei como o inglês nos soava canino. Pois bem, mesmo depois de me apaixonar pelas letras de Cole Porter, pelo estilo de Scott Fitzgerald e pela pronúncia de Sinatra; mesmo depois de ler os mais belos elogios (inclusive um poema) de Jorge Luis Borges à beleza sonora da língua inglesa; mesmo depois de ler Shakespeare e Joy ce e Stein e cummings, eu ainda encontrava na ignorância infantil diante do idioma a base para a caricatura que, nos anos londrinos, eu fazia dos sotaques americano e britânico, demonstrando que se tratava de dois tipos de voz de cachorro: os americanos sempre emitindo rosnados por um lado da boca, e os ingleses alternando uivos entrecortados e latidos surdos.
A condição de consoante fricativa faz com que o erre, diferentemente do pê, por exemplo, possa se prolongar indefinidamente no tempo. Mas, seja na sua versão propriamente fricativa, em que a fricção se dá entre a língua e os dentes (como no italiano), seja na sua versão gutural, em que ele é antes uma aspiração forte (como no francês) ou não tão forte (como no português do Brasil, do Rio para o Norte - de São Paulo para o Sul, o erre brasileiro é semelhante ao italiano), esse prolongamento é o prolongamento de um som em que a voz não entra. Quando algo de voz participa do som distintivo do erre, isso soa, para nós, brasileiros, como algo ridículo. Há uma piada que leva seu narrador a imitar um coral de uma dessas cidades paulistas do interior onde vige o aleijão do erre sonoro (só numa área delimitada do Sudoeste brasileiro isso se dá), o qual, seguindo um maestro que fecha o compasso final de uma canção que termina com a palavra amor, demora-se na nota, não apoiado na vogal o, mas no horrível som engrolado do "erre" líquido e vibrante. Não obstante, Frank Sinatra - numa gravação dos anos 70 ou 80, é bem verdade - repete involuntariamente esse efeito cômico com um more ou before final. Mas é que isso é da natureza mesma da língua inglesa. Estamos antes inclinados a achar os erres escoceses algo inadequados.
Se bem que admiremos moderadamente os ingleses refinados que pronunciam os erres muito secos quando intervocálicos e quase aspirados quando finais - em oposição aos americanos mais rudes que comprazem-se em mascar longos erres cavernosos e supersalivados, seja qual for a situação em que eles se encontrem na palavra. Os poetas concretos divulgavam a paixão de Fenollosa e de Pound pelo chinês. A partir daí, induziam a uma valorização do inglês como língua mais próxima do sistema isolante do que as outras línguas ocidentais. A posição da palavra na frase sendo mais importante do que a flexão indicativa de função sintática. Assim, no extremo oposto do hiper-hierarquizado latim, estava o chinês. O inglês - com suas anteposições de nomes que se adjetivam e os milagres que faz com as preposições – estava próximo de ser, como o chinês, poesia o tempo todo. Era gostoso para nós, habituados a considerar as doces línguas meridionais como intrinsecamente mais poéticas do que as ríspidas línguas do Norte frio, passar a pensar que o inglês - sempre tão "prático" e pouco metafísico - é que era a mais poética das línguas ocidentais.
E isso não nos vinha do inglês de Shakespeare (a rigor, ele antes atrapalharia do que ajudaria esse arrazoado), mas justamente do inglês "prático'', do mero inglês coloquial. Hoje sinto prazer em reencontrar o potencial barroco das flexões latinas amolecidas no italiano, no espanhol e, mais ainda, no português. Agora excita-me mais pensar que o inglês jornalístico de Hemingway e dos autores de romances policiais revelou-se - quando transformado numa ortodoxia rasteira que atingiu toda a literatura ocidental - uma verdadeira deformação estilística. Muitos me perguntam em que medida a música inglesa me influenciou nesses anos londrinos. O fato é que a mais funda influência do pop inglês se dera antes de eu sonhar em ir a Londres: os Beatles no pré-tropicalismo. Os muitos shows de rock e pop que vi na Inglaterra mais serviram para, por um lado, desmistificar as produções do "primeiro mundo", e, por outro, para habituar-me com suas reais conquistas técnicas. Assim, pude me surpreender com o relativo amadorismo de algumas apresentações prestigiosas, mas quando voltei ao Brasil, dois anos e meio depois, eu sentia falta de certas condições básicas de som e luz, e de uma combinação de precisão e despojamento na performance - valores que fora assimilando, sem registrar conscientemente, enquanto assistia aos shows ingleses. A maior contribuição da Inglaterra para a minha formação musical, no entanto, foi a aceitação, por parte de produtores e ouvintes, do meu modo de tocar violão. Mostrei "London, London'' a Lou Reisner dizendo-lhe que, para o disco, pediríamos a Gil ou a algum guitarrista inglês que me acompanhasse.
Ele reagiu com veemência, argumentando que um bom músico de estúdio tiraria toda a graça especial da canção: "Ele pode tocar bem, mas não tocará como você. E quem lhe disse que você toca mal?". Quando eu tocava bossa nova, o despreparo do ouvido inglês (e americano) para julgar trabalhava a meu favor. O resultado é que me desembaracei e, embora saiba que não toco bem, posso hoje orientar grandes músicos a partir do que esboço no violão, coisa que jamais sonharia em fazer antes de Londres. E faço shows pelo Brasil e pelo mundo tocando meu violão. Não gosto de ouvir minhas gravações, sobretudo aquelas em que toco. Bom mesmo é João Bosco, Dori Cay mmi, Djavan. Sem falar em Gil.
Eu apenas consigo reproduzir rudimentos da grande arte de João Gilberto de forma canhestra. Mas com isso sublinho as intenções de composição e canto que me ocorrem e termino soando convincente para muitas pessoas. Embora, é claro, não satisfatório para muitos músicos. Mas houve uma descoberta importante no show business inglês para mim naquela estada: os Rolling Stones. Esse grupo, em que eu não prestava muita atenção enquanto estava no Brasil e que só conhecia de gravações, ao ser visto ao vivo me arrebatou. A bem dizer, minha opinião sobre os Stones, antes de eu deixar o Brasil, era semelhante à de Ned Rorem: igualmente comparativa e desfavorável em relação aos Beatles. Em Londres, vi de Led Zeppelin a Tiranosaurus Rex, de Incredible String Band a Pink Floy d, de John & Yoko a Hendrix, de Dy lan a The Who. Mas os shows dos Stones eram o teatro dionisíaco.
Eles entravam no palco e logo se estabelecia uma atmosfera que era a mais viva demonstração de entendimento do espírito da época e o mais forte estímulo para ampliar suas conquistas. Mick Jagger parecia uma labareda de significados cambiantes. Ele era uma mulher, um macaco, um bailarino, um atleta, um moleque, um poeta romântico, um tirano, um doce camarada. Sua presença de estrela superava a das estrelas convencionais que tinham refletores estratégicos, posição planejada, distância em relação à platéia. Levando mais longe do que ninguém a aventura de sugerir parceria com a multidão, de compartilhar com todos as ousadias estéticas e comportamentais. Supondo uma geração inteira de criadores, ele lograva ser mais diva do que qualquer Sinatra, do que qualquer Barbra Streisand. Ele se confundia com as pessoas, com as coisas. O grupo funcionava como um organismo. A inteligência saía pelos poros. Keíth e Mick nunca fizeram canções como as dos Beatles, nunca escreveram como Dy lan, nunca cantaram como Winwood ou Paul, mas no palco eles representavam o que havia de melhor e de mais forte em todos esses. Seu repertório, que antes me parecia apenas confuso, se iluminou para mim. Claro que "Satisfaction" tinha sido um hit no Brasil - e era evidentemente uma grande canção -, mas as tentativas de Their Satanic Majesties Request não combinavam com a bagunça do resto nem atingiam um nível razoável de acabamento, e isso esfriava meu interesse. A própria voz de Jagger me soava sem musicalidade e sem verdadeira selvageria.
Eu julgava encontrar esses dois elementos muito melhor desenvolvidos no canto de Paul do que no dele. No entanto, vendo-o no palco, seu timbre e sua dicção se revelaram originalmente ricos de algo que faltava em todos os outros, algo único que passei a reconhecer nas gravações. Por essa altura, eles estavam entre Beggars banquete Let it bleed. Os shows de rock não eram gigantescos como hoje. É irônico notar que, entre 69 na verdade, o auge dos Stones -, seus shows se dessem em salas para 2, 3 mil pessoas (o Liceum, a Round House), ao passo que hoje, quando se esperava que eles fossem "apenas história", eles tocam para plateias de 60, 70, 100 mil.
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