Há 30 anos, o Brasil perdeu o Rei do Baião. Pernambucano de Exu, Luiz Gonzaga morreu em 2 de agosto de 1989, aos 76 anos. Era um artista solto nos palcos – mas não tão à vontade com jornalistas. Dava poucas entrevistas. Numa delas, talvez um de seus últimos depoimentos à imprensa, conversou com o jornal O Globo no final de junho de 1985 – a entrevista foi publicada no dia 31.
A conversa ocorreu depois de um show no Pavilhão de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, local hoje chamado de Centro de Tradições Nordestinas Luiz Gonzaga. Seis grupos já tinham se apresentado no sábado quando Tito Santos, um dos mestres de cerimônia da noite, chamou ao palco do Pavilhão de São Cristóvão o homenageado especial do Forró in Rio: "Com vocês, o Rei do forró, Luiz Gonzaga".
Sob os aplausos delirantes, entrou em cena o mais famoso sanfoneiro do Brasil. Calça vermelha, camisa branca, capa de couro e chapéu de nordestino, Luiz Gonzaga avisou que não estava muito bom: uma bronquite e uma "lombeira" causada pela viagem que acabara de fazer de volta do Pará, para onde tinha ido na véspera.
Mas, aos primeiros acordes de sua sanfona prateada, a plateia foi tomada pelo ritmo marcado do forró de Luiz Gonzaga. Ninguém se importava com a voz rouca e cansada do sanfoneiro, nem com as falhas na acústica do Pavilhão. Mesmo sentado em seu banquinho ("Eu sou um velhote e já não aguento ficar de pé durante todo o show"), e cercado pelo balé das "Forró girls", Gonzagão se destacava e abraçava com sua música todo o Pavilhão.
Minutos antes de contagiar toda a plateia, Luiz Gonzaga falou de seu papel político no Brasil, de suas esperanças na Nova República, de sua preocupação com o Nordeste e da pouca atenção que os grandes centros dão aos sanfoneiros e à música dos "matutos" que cantam a realidade do Brasil Rural. “Meu trabalho é político”, declarou. “Como sanfoneiro, faço política com minha sanfona. Minhas músicas são protestos e advertências para que os governantes olhem para o Nordeste.”
Estávamos saindo da ditadura. Gonzagão nutria esperanças com o governo Sarney, mas viveria apenas os primeiros quatro anos da redemocratização. Não teve tempo de ver o ciclo progressista (2003-2016) que priorizou justamente sua região.
Confira abaixo trechos da entrevista:
O Globo: Como se sente o rei do forró em mais um show para angariar fundos para o Nordeste? Luiz Gonzaga: Estou aqui no Forró in Rio como um profissional. Não me sinto inteirado dessa causa porque não participei dessa promoção e não conheço as pessoas que estão promovendo este show. Faço votos que colha bons resultados. Mas, depois de 40 anos encabeçando movimentos pelo Nordeste e de tantas decepções ao perceber que os resultados nunca chegavam lá, não quero me envolver mais nesse tipo de promoções. Já sofri muito com isso e agora resolvi trabalhar pelo nordestino lá mesmo, no Nordeste. Isso não significa que eu esteja duvidando das intenções desse Forró in Rio.
O Globo: Descartadas as festas beneficentes como forma de ajudar os nordestinos carentes, em que se resume seu trabalho em favor de seus conterrâneos?LG: Meu trabalho é político. Como sanfoneiro, faço política com minha sanfona. Minhas músicas são protestos e advertências para que os governantes olhem para o Nordeste. É preciso que o Brasil tenha consciência do que é o sertão. Através da música, nós, os sanfoneiros, tentamos falar dos problemas da nossa terra e das carências da nossa gente.
O Globo: O senhor tem esperanças de que a Nova República modifique esse quadro? LG: Estou muito confiante no governo do Presidente Sarney. Ele, pelo menos, já nos deu um bom sinal de que está preocupado com os problemas do Nordeste e de seu povo, ao anunciar a aplicação de Cr$ 3 trilhões para recuperar a economia e restaurar as áreas nordestinas devastadas pelas enchentes. Acho que neste governo o Nordeste finalmente vai ter vez.
O Globo: E a cultura nordestina, vai conseguir sair de sua terra natal e ganhar os grandes centros? LG: Duvido muito. Acho muito difícil mudar isso. O forrozeiro e o sanfoneiro no Brasil são profissionais sem oportunidade de trabalho. Nós nos sentimos marginais porque os grandes centros como o Rio, por exemplo, não têm identificação com a nossa cultura rural, matuta, de roça. Com isso, nossa música raramente é tocada nas rádios cariocas.
Mas, por outro lado, os sanfoneiros também são perseguidos no Nordeste porque lá só são valorizados os que tiveram sucesso nos centros. O cara da terra, que fica lá, acaba desprestigiado, porque "se fosse bom, estava nas capitais". Como, para fazer sucesso no Nordeste, tem que ter uma temporada de sucesso aqui, e como aqui ninguém dá vez à cultura dos nordestinos, os pobres dos sanfoneiros ficam no meio do mundo sofrendo.
Eu, que sou um sanfoneiro bem-sucedido, não posso contar com os grandes centros. Se você reparar, aqui no Rio só deve ter uns dois forrós, e mesmo assim só na periferia, porque os do Centro da cidade são perfumaria, fachada pura. Você veja só uma coisa: eu sou o criador da música Asa Branca, não sou? Pois bem, aqui no Rio tem uma casa com esse nome, uma gafieira, e eu nunca fui convidado a cantar lá. É uma casa de luxo, com orquestra boa e tudo. Mas forró não tem.
O forró representa uma outra cultura que não interessa ao Rio. Agora, por exemplo, que é mês de festa junina, de música caipira, eu já estou com 20 contratos fechados lá na minha terra, mas aqui não me foi oferecido nenhum. Os meus discos de ouro, quem me dá é o Nordeste. Enquanto eu vendo 100 mil discos em Pernambuco, aqui no Rio a faixa de vendagem cai para 10 mil, 20 mil
O Globo: O senhor acha que o recém-criado Ministério da Cultura, embora ainda sem programa, poderia impulsionar a cultura nordestina no sentido de criar uma estratégia que dê mais espaço para ela nos grandes centros? LG: Sem dúvida, acho que o Ministério da Cultura poderia resolver esse problema de discriminação cultural contra o Nordeste. Mas, infelizmente não creio que a ideia do ministério vá vingar. Acho que vamos ficar mesmo é com uma secretaria e, aí a autonomia do titular vai ser bem menor.
0 comentários:
Postar um comentário