sábado, 29 de junho de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


Em linhas gerais, essas eram as relações que mantínhamos, no meio do período tropicalista, com as produções daquilo que era nosso pão e nosso circo: a música popular. Suponho que fui eu a decidir que devíamos fazer um disco-manifesto, um disco coletivo que explicitasse o caráter de movimento do nosso trabalho. De todo modo, uma vez lançada a idéia, assumi logo a liderança. Conversei com Gil, com Torquato, com Gal, com Bethânia, com Duprat. Gil vinha de sua experiência com Duprat e os Mutantes na feitura de seu primeiro LP tropicalista. Era um disco com muito mais unidade do que o meu e (como era de se esperar)
com maior domínio musical por parte do intérprete e autor das canções. Mas o meu tinha sido mais marcante "conceitualmente". Talvez apenas porque tivesse saído antes. Talvez porque, para compensar minhas carências propriamente musicais, eu tenha mesmo tido sempre que ser mais "conceitual". Eu amava o disco de Gil por sua concentração e seu pulso. Ele chegara a uma riqueza de sonoridades altamente sugestiva pela combinação madura de elementos tradicionalmente brasileiros com a música eletrificada. Eu adorava "Luzia Luluza", uma canção com uma letra remotamente beatlesesca, por ter como tema o cotidiano de uma pessoa comum (uma bilheteira de cinema, mas construída como uma trilha sonora de filme americano, terminando no Carnaval. Gil aparecia na capa do disco - projetada, como a do meu, por Rogério Duarte (aqui com a colaboração do pintor Antônio Dias) - trajando um fardão da Academia Brasileira de Letras, o que frisava a irreverência da atitude. Eu acreditava e não creio que estivesse errado - que a feitura do disco coletivo seria uma excelente oportunidade de somar as forças dos componentes do grupo para atingir resultados mais precisos. Sobretudo eu esperava poder assim fazer da perícia musical de Gil, de Duprat e dos Mutantes um veículo para minhas ideias. Queria pegar carona, tirar uma lasquinha: eu invejava o nível de resolução do disco de Gil. Embora não o considerasse satisfatório - se comparado ao dos discos de, por um lado, Jorge Ben e, por outro, ao dos de Roberto Carlos -, reconhecia-o muito superior ao do meu.
Bethânia tinha me encomendado uma canção para a qual ela já tinha o título e grande parte da idéia da letra: "Baby ", ela queria que a canção se chamasse. E fazia questão de que nela fosse feita referência a uma T-shirt em que se podia ler, em inglês, a frase "I love y ou". Ela dizia mesmo que a canção tinha que terminar dizendo: "Leia na minha camisa, baby, I love y ou". Era um modo de comentar, com amor e humor, a presença de expressões inglesas nas canções ouvidas - e nas roupas usadas - pelas pessoas comuns. Tratando-se de Bethânia, tenho certeza de que havia também uma razão factual e muito pessoal para tão precisas especificações. Fiz a música procurando recriar a cultura de cançonetas e camisetas, e, ao mesmo tempo, o clima pessoal de Bethânia. Julguei o resultado perfeitamente representativo da estética (e, dada a contribuição de Bethânia, da história) tropicalista, e combinei com ela que a canção entraria no disco coletivo em sua voz. Por sua vez, Nara Leão, cujas conversas conosco revelavam sua total independência em relação aos preconceitos anti-Tropicália exibidos por seus ex-companheiros de bossa-protesto e pela platéia de Pra Ver a Banda Passar (o programa que ela comandava ao lado de Chico Buarque na TV Record), encomendou-nos, a mim e a Gil, uma música que tivesse como tema ou inspiração um quadro do pintor Rubens Gerchman chamado Lindonéia, o qual representava, em traços distorcidos com dolorosa pureza, o que parecia ser a ampliação de um retrato três -por-quatro de uma moça pobre que - dizia o texto título - fora dada por perdida, emoldurada, à maneira kitsch dos retratos de sala de visitas suburbanas, por vidro espelhado com decoração floral. Gil fez a música – um bolero entrecortado de iê-iê-iê - e eu fiz a letra da canção, que manteve o nome "Lindonéia" e a história da suburbana desaparecida. O quadro de Gerchman, por ser uma espécie de crônica melancólica da solidão anônima feita em tom pop e metalingüístico, tinha parentesco direto com o tropicalismo musical, e a canção, nós supúnhamos, realimentaria sua carga poética. O quadro não fora o resultado de uma influência do tropicalismo sobre o pintor: este havia chegado ali resolvendo seus próprios problemas, dialogando com a arte pop. Nós tampouco conhecíamos o quadro antes de Nara nos chamar a atenção para ele.
Na verdade, o fato de eu ter pintado na infância e na adolescência terminou por afastar-me das artes plásticas com um misto de desencanto e timidez: a Tropicália é que me estava libertando para o convívio tateante com essa área da atividade artística, o interesse tendo ressuscitado - entusiasticamente - com a Bienal de São Paulo de 67, onde tomei contato com os artistas pop americanos - e com Edward Hopper -, que deram um sentido mais preciso às minhas caminhadas por supermercados e às conversas de Rogério e de Zé Agrippino.
Claro que Tropicália, o nome, tinha vindo de Hélio Oiticica, com quem, a essa altura, já tínhamos contato pessoal; e conhecíamos Antônio Dias, que já fizera a capa de Panamérica de Agrippino e colaborara com Rogério na feitura da capa do disco de Gil. Rogério, com quem eu sempre estava, era profissional de artes gráficas e ensinava na Escola de Desenho Industrial (tema sobre o qual escrevera um artigo importante na Revista Civilização Brasileira), tendo, portanto, contato permanente com toda a gente da área de artes visuais. Mas, se as conversas sobre literatura ou filosofia, cinema ou política (genérica) me soavam vivas, as referências a obras específicas ou aspectos técnicos das artes plásticas eram praticamente ignoradas por minha mente, que, quanto a isso, não se incomodava em ser ignorante. No auge do tropicalismo, nossas relações com os pintores foram fragmentárias e dispersas. Nosso intenso diálogo com Hélio Oiticica teve, a principio, as características generalistas das conversas de Rogério, pouco ou nada significando uma verdadeira assimilação, por nossa parte, das questões específicas da arte que ele elegera - e, o que é mais significativo, só nos anos 70 é que Hélio veio a fazer uma capa de disco para um de nós (Gal Costa). Assim, a sugestão de Nara forçou uma espécie de parceria interdisciplinar curiosa, sem precedente no tropicalismo. A idéia de incluir Nara no disco coletivo me pareceu certa não só porque ela havia feito essa ponte entre nós e a pintura de Gerchman, mas também por significar uma espécie de realização do sonho inicial de Gil de que o movimento fosse de toda a geração de músicos: Nara representava a bossa nova em sua origem e liderara a virada para a música participante - era, portanto, a música brasileira moderna em pessoa. Numa de minhas idas à Bahia - eu não passava mais de dois meses sem ir a Salvador - convidei Tom Zé para ir para São Paulo comigo. Tom Zé tinha sido nosso companheiro dos shows do Teatro Vila Velha. Quando comecei a frequentar os meios artísticos e boêmios de Salvador, ele já era uma figura conhecida dos estudantes universitários. Assim como Capinan - com quem, de resto, ele tinha colaborado em alguma peça do braço baiano do CPC da UNE -, Tom Zé tinha prestígio entre os artistas que eu conhecia: as pintoras Sônia Castro e Lena Coelho, a dançarina Laís Salgado, os professores Paulo e Rena Faria, todos me falavam dele. Quando afinal nos conhecemos, ele me cativou pelo seu ar de sertanejo, por suas observações pseudo-mal-humoradas expressas num sotaque rural que mais realçava do que escondia a elegância clássica de seu português culto e correto. Seu físico de duende mameluco, de personagem de lenda cabocla confirmava sua condição de pessoa especial. Tom Zé tem uns olhos muito vivos, como que a provar que uma intensíssima concentração de energia é a razão de ele ser tão miúdo. Essas indicações de excepcionalidade eram em parte confirmadas por suas canções satíricas feitas em tom deliberadamente folclórico. Consistindo em longas crônicas da vida urbana de Salvador e em retratos de personagens típicos ou de exceção, essas composições de sua primeira fase mostravam-se a um tempo atraentes e insatisfatórias aparentemente pela mesma razão de não estarem em sintonia com os interesses estéticos da bossa nova. Sua inteligência e originalidade pessoal asseguravam que sua produção não fosse simplesmente antiquada. E ele, diferentemente de mim e de Gil, estava estudando nos Seminários Livres de Música - que é como o reitor Edgar Santos e o professor e maestro Koellreutter decidiram chamar a escola de música - da Universidade da Bahia. Essa escola, como todas as escolas de arte fundadas por aquele reitor, trouxera para Salvador as informações da vanguarda internacional - o que, como já contei, nos modelou a todos os membros da geração. Tom Zé (como Djalma Correia e Alcivando Luz) decidira ter contato direto com o currículo, enquanto Bethânia e eu éramos apenas habitués dos concertos semanais no salão nobre da reitoria - e Gil e Gal, nem isso. Com a virada tropicalista, achei que a sofisticação anti-bossanovística de Tom Zé, a ligação direta que ele insinuava entre o rural e o experimental, encontraria lugar no mundo que descortinávamos. Um músico superdotado harmonicamente como Alcivando Luz, também um admirável companheiro do Vila Velha, não saberia se mover nesse novo ambiente. Diversas vezes pensei, nesses últimos anos, que,
se me fosse dado o talento e o temperamento para fazer algo como o que fizeram, nos anos 70, Milton Nascimento e seus companheiros do Clube da Esquina, e não o escândalo tropicalista, eu teria convidado Alcivando, em vez de Tom Zé, para ir para São Paulo.
Na Tropicália, Tom Zé mostrou-se, de fato, em casa. Inicialmente, no entanto, ele resistiu muito ao convite. Lembro de uma conversa nossa perto do Cine Guarany (atual Glauber Rocha), na praça Castro Alves, em que ele me dizia que a ideia era uma loucura. Eu e seu desejo profundo de assumir seu destino de músico o convencemos. A simples viagem de avião com Tom Zé de Salvador para São Paulo já deu o tom do que seria sua atuação. O Caravelle da Cruzeiro do Sul - aeronave cuja modernidade de linhas me encantava como um samba de Jobim ou um prédio de Niemey er -, voando em céu azul, parecia que ia explodir com a vibração da presença de Tom Zé. E isso chegou a exteriorizar-se até o conhecimento da aeromoça e quem sabe de outros passageiros. Não que ele se mostrasse nervoso por estar voando - embora sua ostentação de estranheza em relação a tudo o que se passava no avião indicasse (talvez enganosamente) que ele nunca tinha voado -, mas seu sotaque e suas expressões arcaicas pareciam agredir a realidade tecnológica da aviação e o conforto burguês dos "serviços" de consumo: ele estava me dizendo - e dizendo a si mesmo e ao mundo - que ia, sim, para São Paulo, mas que permaneceria irredutível quanto a certos princípios e certos traços de caráter. Ele lidava de modo inventivo - e bizarramente elegante
-com o medo da mudança de situação. Referia-se ao avião em que estávamos como "essa caravela", indicando intimidade e estranheza ao mesmo tempo, e, por trás dessa ironia, comentando o sentido de partida para outro continente que essa viagem tinha para ele. Quando a aeromoça se aproximou para perguntar o que queríamos beber, ele respondeu cortantemente: "Cachaça". Havia humor na obviedade de seu conhecimento de que não deviam servir cachaça a bordo. Mas a sinceridade de seu ar desafiador - embora não impolido - levava a pensar em como era ridícula a pretensão de refinamento da freguesia desses serviços (não havia, por exemplo, uma só aeromoça preta em qualquer companhia de aviação brasileira) tornados amorfamente "internacionais", e em como Tom Zé estava disposto a não contemporizar com isso. A esperada resposta da aeromoça - "Desculpe, não temos" - ele começou a desapertar o cinto de segurança e, fazendo menção de levantar-se, disse - dirigindo-se a mim, não a ela: "Então eu vou-me embora. Mande parar essa caravela". A verdade com que essas palavras foram ditas assustou-nos, a mim e à moça, pois, embora soubéssemos impossível obedecer a tão absurda ordem, sentíamos, na determinação com que esta fora dada, que ela se imporia de alguma maneira. Claro que Tom Zé não criou um caso dentro do avião, mas tampouco desconcertou-se ou deixou seu movimento se retrair: ele, que parecera por um instante que ia sair dali custasse o que custasse, agora desistia educadamente irritado, como quem achasse inútil o gesto, mantendo total independência até o fim.
Tudo isso sem que se perdesse o humor distanciado de quem diz ao mesmo tempo que tudo é uma brincadeira - e de quem sabe que tem charme. O disco coletivo era o veículo natural para as canções que Tom Zé tivesse trazido da Bahia ou viesse a compor em São Paulo. Eu tinha feito e dado para Gil musicar uma letra a que pus o nome de "Panis et circensis". Pensei em usar isso como subtítulo do disco que se chamaria - assumindo o titulo usurpado pela canção à obra de Oiticica como nome geral do movimento (mas, naturalmente, rejeitando o ismo) - Tropicália. Não fui verificar (àquela altura nem saberia onde) se a expressão "panis et circensis" estava na forma latina correta. Eu tinha uma vaga lembrança de uma conversa com Wanderlino Nogueira Neto, que foi quem, no curso clássico, me ensinou a famosa expressão, em que julguei ter aprendido que se tratava de dois substantivos no genitivo com função partitiva (como no francês "du pain et du cirque"). Tenho uma memória vívida desse solilóquio silencioso no 2002 e muitas vezes me envergonhei mais com essa lembrança do que com a constatação do erro em si. (Na verdade, a forma em que a expressão se fez famosa é "panis et circenses", esta última palavra sendo um adjetivo que, no plural, substantiva-se no significado de "coisas de circo").
Afinal, em meio à iconoclastia tropicalista, a reverência às letras clássicas era a última das exigências a ocorrer a alguém. Mas o reconhecimento íntimo de que a intenção seria a de sobrepor à colagem pop de uma letra de música banal - e, agora, de um disco de canções pop - uma citação latina (ademais muitíssimo conhecida) cuja correção deveria contribuir para o efeito de contraste, empresta uma dimensão de atroz ridículo ao momento de reflexão devotado à questão. Havia, no entanto, orgulho nesse desleixo. Sempre cri numa espécie de organicidade da assimilação de informações, e faço questão de tratar com naturalidade a acumulação de cultura, retendo dos livros, das aulas, das canções, somente o que me for congenial, e transmitindo somente o que já estiver por mim incorporado.
Uma vez disse a Maria Esther Stockler, a propósito das referências presentes no filme que dirigi já nos anos 80 (O cinema falado): "Só tem ali o que sai na urina". Lembro de Duda, em 65 em Salvador, me contando uma entrevista de Godard em que este dizia que, ao terminar de ler um livro, jogava-o pela janela. Eu me identificava com essa exibição de desprendimento intelectual. Quando menino ouvi louvarem muito os maus alunos inteligentes e ridicularizarem os cus-deferro. Hoje, embora eu mesmo não possa mais mudar substancialmente quanto a isso, valorizo os adolescentes estudiosos e os espíritos metódicos - e tento, na feitura deste livro por exemplo, assegurar um mínimo de precisão para além da atingida espontaneamente.
Tropicália ou Panis et circensis (o mau latim - que Décio Pignatari, nos anos 70, já chamava de "delicioso provincianismo de vanguarda" - agora soa cheio de charme "histórico"), nosso disco-manifesto, saiu em 68, contando com a participação de Nara e Tom Zé, além, é claro, do grupo-núcleo formado por Gil, Gal, Mutantes, Duprat e eu, mas sem a presença de Bethânia, que, por rejeitar intimamente a confusão de sua pessoa com grupos ou movimentos, deixou a canção "Baby ", que ela própria encomendara, para ser gravada por Gal, o que resultou no primeiro grande sucesso desta. Um sucesso, aliás, merecidíssimo, pois a faixa revelou-se, por causa da voz de Gal e do arranjo de Duprat, uma obra-prima do tropicalismo (se não há uma contradição absoluta entre esses termos) - e uma verdadeira realização dos sonhos de Guilherme (e dos meus planos com Rogério em relação a Gal. Minha alegria ao ouvir, no estúdio, a adequação do estilo de Gal à canção (sendo a um tempo bossa nova e rock'n'roll, mas sendo algo diferente disso) e, sobretudo, a graça e a inteligência do arranjo de Duprat, levou a um incidente profundamente desagradável. Nós saímos do estúdio para o Patachou, o restaurante com nome de cantora que freqüentávamos na rua Augusta, para jantar em clima comemorativo. Geraldo Vandré, que estava em outra mesa, veio até a nossa e, ao perceber nosso entusiasmo pela gravação, pediu que Gal lhe cantasse a canção recém-gravada. Quando tinha ouvido o suficiente para ter uma ideia do que era, ele a interrompeu bruscamente, batendo na mesa e dizendo: "Isso é uma merda!". Gal calou -se assustada e eu, indignado, disse a ele que saísse dali. Ele ainda quis argumentar dizendo que nós estávamos traindo a cultura nacional, mas não permiti que ele concluísse o discurso e, gritando, exigi que nos deixasse, ressaltando que ele ao menos deveria ter sido cortês com Gal, cujo canto suave ele interrompera de forma tão grosseira. Isso inaugurou uma inimizade pessoal que traduzia nossa divergência ideológica - mas não houve nenhuma outra discussão agressiva nem a desavença ganhou publicidade.
Nós sabíamos da rejeição que nossas idéias e ações encontravam por parte da esquerda nacionalista. Vandré estava apenas externando francamente o que muitos sentiam a nosso respeito. Mas isso foi possível, no seu caso, não apenas por uma natural combatividade apaixonada que o enobrece. Um aspecto tristemente mesquinho de sua personalidade contribuía igualmente para tais explosões. Tendo assumido o papel do cantor de protesto por excelência - depois de fazer conhecidas algumas belas canções "de amor" em parceria com o grande Carlos Lyra -, sobretudo agora que sua brilhantemente escrita (sobre música de Théo de Barros) "Disparada" tornara -se um marco na história dos festivais, Vandré desejava tornar-se a bola da vez com uma contrafação da música participante de língua espanhola, principalmente a chilena. O que nos parecia um atraso, se se levasse em conta a originalidade da canção de protesto brasileira tal como a iniciara - antes da onda internacional e com características totalmente diferentes - o próprio Vinicius de Moraes, e como a desenvolveram Nara e Ly ra. Nós, de nossa parte, queríamos, entre outras coisas, acabar com o hábito de se ter uma "bola" a cada vez, apostando numa pluralidade de estilos concorrendo nas mentes e nas caixas registradoras.
Uma das marcas da Tropicália - e talvez seu único sucesso histórico indubitável - foi justamente a ampliação do mercado pela prática da convivência na diversidade, alcançada com o desmantelamento da ordem dos nichos e com o desrespeito às demarcações de faixas de classe e de graus de educação. Essa saudável destruição de hierarquias está na origem do que alguns críticos chatos chamam de "complacência cínica pós-60". Ela explica também a "generosidade" exagerada que, nos anos 70, Augusto de Campos, de um lado, e Glauber, de outro, achavam tão difícil aceitar em mim: um e outro, enfatizando aspectos diferentes, exerciam alguma pressão para que eu fosse menos receptivo e mais discriminatório. Glauber chegava a ser demasiado cruel em seus comentários sobre colegas meus – coisa que Augusto nunca foi. Mas não só esses dois: vários outros amigos demonstravam impaciência semelhante. O próprio João Gilberto, quando passamos a nos falar, estranhava minha tolerância. No entanto, foi o grande esforço de superação da visão estreita de mercado que dominava a produção e o consumo de música no Brasil que me levou, não a ser tolerante, mas a me tornar sensível a virtudes de naturezas as mais diversas. Mais tarde, me
vi desaprovando Gil por achar que ele tinha deixado isso levá-lo a considerar de múltiplos pontos de vista qualquer questão que fosse, a ponto de anular a possibilidade de definir uma posição. (Embora, paradoxalmente, Gil tenha sido sempre mais seletivo em relação ao que ouvir, ao que aprender e do que gostar). No nascedouro desses problemas, Vandré tentava estancar a correnteza - que era, afinal, uma exigência da força da MPB - propondo a Guilherme, nosso empresário, que nos dissuadisse de entrar no páreo; alegava que o Brasil necessitava daquilo que ele, Vandré, estava fazendo (ou seja: canções "conscientizadoras das massas") e que, como o mercado não comportava mais de um nome forte de cada vez, nós todos deveríamos, para o bem do país e do povo, jogar todas as cartas nele. Essa estranha proposta de renúncia foi feita de fato a Guilherme por Vandré - e muitas vezes eu me perguntei se não seria isso um esboço dos prestígios oficiais de que gozam, em nome da história, figurões insossos de países comunistas.
Livres do perigo vermelho desde que nossos inimigos militares tomaram o poder, nós não víamos a mais remota probabilidade de realizar-se esse desejo de Vandré. E assim achávamos apenas maluco seu raciocínio e continuávamos admirando tudo o que nele era admirável. Eu, principalmente, apesar de ver Chico Buarque muitíssimo acima de Vandré - musical, poética e eticamente – tinha preferido de longe (e o manifestava) "Disparada" a "A banda". Gil se mostrou menos entusiasmado do que eu com os resultados das gravações do Tropicália ou  Pan is et circensis. Suponho que ele, saindo de um disco em que experimentara tantas combinações sonoras com Duprat e os Mutantes, desejasse seguir em frente em suas buscas, e o disco coletivo o segurava em terreno já explorado. Por outro lado, como eu estivesse na liderança e, ao contrário dele, deslumbrado com o mero fato de trabalhar com essa turma, eu não fazia as exigências de pureza técnica nas execuções e gravações que ele não tinha ânimo (ou tinha pudor) de cobrar de mim. Assim, quando o disco ficou pronto eu exultava de orgulho - e Gil só fazia se queixar dos metais desafinados logo na música de abertura.
É preciso, para entender essas minhas suposições, que se saiba melhor quem é, para mim, Gilberto Gil. Eu teria que me deter, mais cedo ou mais tarde, na apreciação dessa figura - tão central nesta história e tão unida à minha que, de certa forma constituímos, juntos, uma espécie de entidade - e eis que descubro que é aqui o lugar de fazê-lo.
Por volta de 62, 63, vi na TV Itapoan (a televisão só chegara a Salvador em 60) um rapaz preto que cantava e tocava violão como os melhores bossanovistas. Sua musicalidade exuberante, sua afinação, seu ritmo e sua fluência me entusiasmaram. Era excitante que pudesse haver por perto alguém tão especial. A TV dava a ilusão de distância, mas eu pensava, com o coração batendo, que, dado o tamanho da cidade - e, sobretudo, do grupo de pessoas da classe artística ou mesmo da classe média -, era provável que eu encontrasse em Salvador esse genial músico de sorriso alegre e sobrancelhas bem desenhadas. Minha mãe, que sempre gostou de música - e sempre gostou que eu gostasse de música -, me ouviu elogiá-lo, e, toda vez que ele aparecia na televisão, me chamava para vê-lo. Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele (pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo) dizendo: "Caetano, venha ver o preto que você gosta". Isso de dizer "o preto", sorrindo ternamente como ela o fazia (ou fez), tinha - teve, tem - um sabor esquisito que intensificava o encanto da arte e da personalidade do moço no vídeo. Era como se se somasse àquilo que eu via e ouvia uma outra graça, ou como se a confirmação da realidade daquela pessoa, dando-se assim na forma de uma bênção, intensificasse sua beleza. Eu sentia alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele - e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente. Era evidentemente um grande acontecimento a aparição dessa pessoa - eu via que se tratava de um músico de primeira linha, desde já um grande entre os grandes - e minha mãe festejava comigo a descoberta.
Falei sobre ele com todas as pessoas com quem eu encontrava na noite. Quase ninguém assistia televisão (eu próprio tivera a sorte de ver Gil porque a TV ficava ligada na sala de jantar durante as refeições). Seguramente a turma da crítica de cinema - Orlando Senna, Geraldo Portela, Carlos Alberto Silva - nunca tinha ouvido falar de "Beto". (O nome Gilberto Gil não é menos real do que Gal Costa. Sua eufonia algo pop - um tanto à Diana Dors, Marily n Monroe ou Brigitte Bardot - sugeria um pseudônimo inventado numa agência de publicidade para um pretendente a substituto de João Gilberto na crista da onda da bossa nova. Mas, sendo a escolha inevitável a partir dos quatro nomes constantes de seus documentos - Gilberto Passos Gil Moreira -, também revelava-se delicadamente belo em outro plano, mais nobre, em que a sílaba gil - um nome português com ecos arcaicamente literários por causa de Gil Vicente, o grande autor teatral do medievo lusitano - se repetia exata e limpidamente como que a prefigurar, para mim, o verso misterioso escrito no século XIX por Sousândrade e que eu só leria depois de 68: "Gil engendra em Gil rouxinol"). Acho que Laís Salgado e a turma da Escola de Dança já o tinham visto uma ou outra vez. Roberto Santana é que com certeza o conhecia pessoalmente. Santana - de uma família tradicionalmente de esquerda originária da cidade sertaneja de Irará - era um sarará da minha idade, machão e muito ativo, amigo de todo o mundo em Salvador. Ele prometeu que me apresentaria a Gil: "Você não conhece Beto? Ele é muito bom" (nessa época não havia as gírias "legal" ou "gente fina" ou "gente boa", e se dizia que alguém era "bom" num tom de leve desvio semântico, tanto para significar que esse alguém tinha boa posição política como para sugerir talento ou firmeza moral), "ele é bacana, você vai adorar ele". Fiquei intimidado com a possibilidade real do encontro: que graça poderia ter eu para "Beto"? E, dadas minhas limitações musicais e meu desinteresse por futebol ou outros temas masculinos, que assuntos em comum eu poderia ter com ele para sustentar uma conversa? Temi um encontro combinado resultando em minutos de silêncio constrangedor.





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