sábado, 22 de junho de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso



PANIS ET CIRCENSIS

Além de Mahalia Jackson e de Jorge Ben, nós continuávamos ouvindo os Beatles e passamos a ouvir Mothers of Invention (um favorito de Agrippino) e James Brown e John Lee Hooker e Pink Floy d e The Doors e O que fosse. Mas não tínhamos deixado de ouvir e reouvir João Gilberto, e naturalmente ouvíamos tudo o que saía dos nossos colegas brasileiros, os mais próximos e os menos próximos. Muitos dos que eram íntimos tinham se afastado por causa da revolta que lhes inspirava o tropicalismo. Mas como a maioria morava no Rio de Janeiro, quase não dava para perceber. Ouvíamos histórias, mas não nos preocupávamos demasiadamente. Tínhamos certeza de que ninguém sairia diminuído desse
episódio. E que, com o tempo, todos perceberiam vantagens gerais advindas do nosso gesto.
Tínhamos comprado também uma vitrola antiga, de dar corda, e uma espetacular coleção de discos em 78 rotações, com um repertório predominantemente brasileiro. Talvez mais do que o estéreo do quarto do som, esse gramofone era usado com volúpia de curiosidade e prazer estético. Foi assim que entrei em contato com as gravações de Orlando Silva dos anos 30, que tinham sido a base da formação de João Gilberto e constituíam sua mais entusiasmada admiração musical. Bethânia e eu, desde Salvador, gostávamos imensamente do LP Carinhoso, que Orlando lançara nos anos 50, com regravações de seus antigos sucessos. Mas pouco conhecíamos das famosas gravações da primeira fase, em comparação às quais, para nossa inicial incredulidade, uma unanimidade de opiniões considerava sem valor nenhum o disco que conhecíamos. Nunca aceitei a desvalorização excessiva do LP dos anos 50, mas realmente foi um acontecimento em minha vida ouvir com cuidado a celestial suavidade do jovem Orlando, seu fraseado inventivo e sua milagrosa naturalidade musical. A ligação subterrânea com o estilo de João Gilberto se fez mais perceptível.
Orlando Silva - a quem João Gilberto chama de "o maior cantor do mundo" - conhecera um tipo de popularidade no Brasil dos anos 30 sem paralelo em nenhum outro país. Sem se tornar um emblema nacional, como acontecera com Gardel na Argentina, sem sequer carregar nas costas um estilo característico, como era o tango (o samba que tinha se tornado o "ritmo brasileiro" por excelência – já tinha seus expoentes e, de todo modo, nunca chegou a monopolizar a brasilidade tanto quanto o tango monopolizava a argentinidade), Orlando teve o tipo de sucesso propriamente pop que Frank Sinatra veio a ter algum tempo depois, com as moças desmaiando à sua aparição ou tentando tirar-lhe um pedaço do paletó em apresentações de auditórios de rádio e, por vezes, ao ar livre, onde chegavam a se concentrar 60 mil pessoas para vê-lo. Um mulato claro (desses que no Brasil nem são chamados de mulatos) muito magro, Orlando não era um galã. Tinha, no máximo, um ar misterioso nos olhos puxados e uma intensa virilidade natural no núcleo de sua delicadeza de maneiras. O que fazia dele um personagem irresistível era o seu canto. De origem muito humilde (carioca da Zona Norte, tinha sido até trocador de bonde), fora descoberto para o sucesso casualmente por causa do seu talento evidentíssimo. Dono de uma voz bela e poderosa, ele não impunha exibicionisticamente sua potência vocal, antes amaciando a emissão nos agudos, o que, combinado com seu senso do fraseado, suas divisões rítmicas inventivas e a clareza da dicção, fazia dele um músico da canção. A suavidade das notas alongadas nunca chegava ao meio-falsete demasiado doce dos tenores populares americanos aflautados dos anos 30: ele era másculo e sóbrio o bastante para evitar esses derramamentos, sua sensibilidade era já naturalmente muito moderna e ele criou de fato um estilo original, único. Era um excelente cantor de sambas: suas jogadas rítmicas e variações cheias de balanço faziam a melodia flutuar, e ele nunca repetia a mesma divisão quando voltava à primeira parte; mas era nas canções lentas, nos sambas-canções e nas valsas de seresta que a fluência de sua música se manifestava mais encantadoramente.
O fato de João Gilberto ter partido dele - e não de Bing Crosby ou Sinatra, como fizeram Lúcio Alves e Dick Farney - para criar uma maneira de cantar e tocar samba (e de o ter feito algo à maneira dos instrumentistas e cantores do cool jazz - mas, ao contrário de seu predecessor Johnny Alf e de seus sucessores do Beco das Garrafas, sem fazer jazz), e de ter sempre creditado a ele a inspiração profunda da invenção da bossa nova (João, nesses quarenta anos, deu raríssimas - e breves - entrevistas, mas em quase todas se referiu a Orlando Silva), aliado à circunstância de Orlando ter sido ao mesmo tempo um fenômeno de massas e um artista do maior refinamento, fazia dele um ponto central de reflexão para quem queria enfrentar a questão da arte de massas e manter-se à altura da bossa nova.
Não que Orlando tivesse sido o maior sucesso popular pelo período mais longo na história da música brasileira - este posto foi de Francisco Alves (o Rei da Voz), seu contemporâneo e um dos seus descobridores, homem de vozeirão, talento e carisma mas de fraseado quadrado e sentimento forçado se comparado a Orlando (esse posto hoje pertence, como em 68 já pertencia, a Roberto Carlos, um cantor de iê-iê-iê a quem também chamamos de Rei, mas cujo estilo está mais próximo de João-Orlando do que de Francisco Alves); tampouco fixou-se um prestigio de Orlando Silva como artista intelectualmente superior - Silvio Caldas, também seu contemporâneo (vivo e ativo ainda hoje, maio de 95), com sua pele mulata, seu repertório perfeito, sua voz forte exalando inteligência, e sobretudo seu despojamento de quem sabe que faz boa música e faz história, e portanto não precisa ser ou parecer uma estrela, manteve por várias décadas uma respeitabilidade e foi olhado com uma reverência que Orlando pareceu deixar de merecer desde que, nos anos 40, sucumbiu ao uso de drogas pesadas como não aconteceu com nenhum outro cantor brasileiro antes dos anos 70. Mas não apenas João Gilberto rende-lhe uma perpétua homenagem: a qualidade do seu canto mostra de novo sua força agora, quando, de todos os discos dos selos independentes Revivendo e Collector's, que vêm lançando em CD coletâneas de grandes nomes do passado em versões remasterizadas, os seus são recorde de vendas. Eu próprio sugeriria a qualquer amante da música popular brasileira, em qualquer parte do mundo, que procurasse ouvir esses CDS com as gravações de Orlando Silva nos anos 30, para entender melhor (e tirar maior prazer d') o mistério do som de nevoeiro da língua portuguesa sobre a paisagem rítmica afroameríndia. Assim como é preciso, para os brasileiros, ouvir as raríssimas gravações de João feitas para um 78 rotações em 52, em que ele canta - de maneira assombrosamente bonita - ainda imerso no estilo de Orlando, mas já reconhecivelmente João Gilberto, pois é o Orlando Silva de João Gilberto, o Orlando Silva que a bossa nova nos manda ouvir no velho Orlando (no sentido que Jorge Luis Borges dá à ideia de "inventar uma tradição" e "influenciar seus precursores") , o Orlando que se ouve nessa primeira voz de João. Sem dúvida, a modernidade de Orlando está submetida às conquistas estilísticas de Bing Crosby. Não que haja verdadeiras semelhanças individuais – e Orlando se descrevia a si mesmo como um mediador entre a grande voz de Francisco Alves e a interpretação de Sílvio Caldas. Ele criara um estilo moderno brasileiro de canto com todas as firulas do choro, a ginga dos capoeiras e o sentimento latino -, mas a própria renovação tecnológica (o microfone elétrico) que propiciara o surgimento de Crosby (e de Charles Trenet), se deu primeiro nos Estados Unidos. E Orlando, homem de pouquíssimas letras, tendo pegado a possibilidade no ar, desenvolveu uma técnica que nada devia à do cantor americano.
Nos anos 40, Dick Farney e Lúcio Alves, homens muito mais ricos e mais cultos do que Orlando, adaptaram conscientemente procedimentos de Bing Crosby (e, a essa altura, de Sinatra) à canção brasileira. Mas há mais Bing Crosby em Orlando Silva (que possivelmente ouviu o cantor americano, mas na certa muito pouco e sem poder tomar intimidade com seu trabalho) do que nesses importadores ostensivos. Ou seja, há mais saber cantar moderno, mais naturalidade, mais sutileza, mais balanço, mais urbanidade, mais entendimento do microfone e do mundo que o produziu. Mas ele não é, em nenhuma medida, um epígono de Bing Crosby - e sua compreensão da modernidade instaura uma liberdade inventiva que transcende todas as questões de dependência cultural. Foi essa chama viva que o gênio de João retomou, e é no sentido profundo desse gesto que se deve entender o acontecimento da bossa nova - e suas relações com a antropofagia.
Depois que Orlando Silva desabou sob a morfina e o álcool, ficou muitos anos sem ser visto e sem cantar. Sua volta nos anos 50 embora ele tivesse ocupado o horário nobre do meio-dia na Rádio Nacional em substituição a Francisco Alves, que morrera num acidente de automóvel na estrada Rio-São Paulo - aparentemente só serviu para alimentar o mito de que ele tinha "perdido a voz". Na verdade, poucos envelheceram com a capacidade de cantar bem tão bem preservada quanto a dele, mas a lembrança da sonoridade milagrosa de sua voz jovem fazia com que qualquer coisa aquém da perfeição soasse como um desastre. Sua voz tornara-se muito mais grave, os agudos suavíssimos se foram, mas é significativo que, embora ele cantasse melhor do que todos os seus contemporâneos ainda na ativa, em nenhum destes últimos se deplorava nenhuma decadência. Em 68, quando o ouvíamos no gramofone do apartamento de São Paulo, ele ainda estava vivo e, num daqueles festivais da TV Record, nós o vimos dividir por alguns segundos o palco com Roberto Carlos, tendo um deles se seguido imediatamente ao outro na apresentação das canções. A presença de ambos era especial na ocasião, pois nem um nem outro pertencia ao ambiente da moderna música popular brasileira, àquilo que se estava começando a chamar de MPB: Orlando da velha-guarda. Roberto da Jovem Guarda. Era uma visão muito emocionante para um tropicalista.
Quem mais competia em constância com Orlando Silva no prato dessa vitrolinha era Carmen Miranda. Ela própria um emblema tropicalista, um signo sobrecarregado de afetos contraditórios que eu brandira na letra de "Tropicália", a canção-manifesto, Carmen Miranda surgia nesses discos como uma reinventora do samba. Cheia de frescor e impressionantemente destra, ela, sem ser sempre cuidadosa ou capaz na definição das notas, era um espanto de clareza de intenções. A dicção rápida e a comicidade alegre no trato com o ritmo faziam dela uma mestra, para além da própria significação histórica. O fato de ela ter se tornado, com o sucesso em Holly wood, uma figura caricata de que a gente crescera sentindo um pouco de vergonha, fazia da mera menção de seu nome uma bomba de que os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão. Mas o lançar -se tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pela aceitação desafiadora tanto da cultura de massas americana (portanto da Holly wood onde Carmen brilhara) quanto da imagem estereotipada de um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal (que era a versão que Carmen levava ao extremo) - aceitação que se dava por termos descoberto que tanto a mass culture quanto esse estereótipo eram (ou podiam ser) reveladores de verdades mais abrangentes sobre cultura e sobre Brasil do que aquelas a que
estivéramos até então limitados. (A fotografia de Carmen, de sexo literalmente à mostra, sorrindo nos braços de César Romero, que vim a ver publicada nos anos 70 na revista Interview, parecia a subversiva confirmação do aspecto profundo tanto da caricatura que ela se tornara quanto da cultura que a divulgou). Claro que, a essa altura, depois de ter sido uma das mulheres melhor pagas do mundo do show business americano, e passados mais de dez anos de seu enterro apoteótico no Rio, Carmen era mais uma ausência do que uma referência nas conversas sobre música popular no Brasil pós-bossa nova. Embora não se possa dizer que ela estivesse esquecida (pois seus filmes eram às vezes revistos e ela exercia sobre alguns brasileiros o mesmo fascínio que vinha exercendo sobre tantos estrangeiros - de Wittgenstein a Ken Russell com sua imagem camp), não era como um estilo musical vivo que sua obra ou sua persona vinham à lembrança. O aspecto travesti da sua imagem sem dúvida também importava muito para o tropicalismo, uma vez que tanto o submundo urbano noturno quanto as trocas clandestinas de sexo, por um lado, e, por outro, tanto a homossexualidade enquanto dimensão existencial quanto a bissexualidade na forma de mito do andrógino eram temas tropicalistas (não fosse este um movimento típico da segunda metade dos anos 60). Mas a Carmen Miranda que surgia desses 78 rotações excitava nossa imaginação e suscitava nossa admiração num nível que se situa além dessas temáticas todas e as atravessa: o da formação da música popular brasileira como uma tradição rica e esteticamente potente. Sua gravação de "Adeus, batucada" uma obra-prima da história do samba (e do disco no Brasil) tornou-se o tema do 2002.
Uma gravação que já não sei se ouvíamos no gramofone ou no estéreo - pois havia alguns LPS de antiguidades brasileiras (e não brasileiras) no quarto do som mas que rivalizava com as melhores de Carmen, era "Camisa amarela", de Ary Barroso, com Aracy de Almeida. Aracy, uma lenda então bem viva era uma mulher explosiva e de jeito malandro de quem se dizia ter sido a intérprete favorita de Noel Rosa, o genial compositor de sambas carioca dos anos 30 que morrera aos 26 anos deixando uma obra vasta e extraordinariamente complexa.
De todo modo, Aracy tinha sido o veículo para o renascimento de seu prestigio nos anos 50, quando Noel passou a ser considerado o maior compositor popular brasileiro de todos os tempos. Mas muitas interpretações do maravilhoso Sílvio Caldas, de Francisco Alves, de Carlos Galhardo, de Augusto Calheiros e tantos outros coabitaram conosco na esquina da Ipiranga com a São Luís durante todo o ano que passamos vivendo ali. Entre as novidades do pop anglo-americano que nos eram apresentadas - lembro do pintor Antônio Peticov, então um garoto, me mostrando uma seleção do que ele supunha interessante nessa área -, dois nomes, dois estilos, mais do que marcaram o que viemos a produzir depois, ficaram para sempre vinculados, na lembrança, à atmosfera do 2002: Jimi Hendrix e Janis Joplin. Gil sobretudo estava apaixonado por Hendrix. Na verdade, ele só tinha se mostrado apaixonado assim, antes, por Jorge Ben e pelos Beatles e depois por mais ninguém.
Eu me impressionava com a modernidade de Hendrix (e disse isso a Augusto na entrevista para o Balanço da bossa): seu canto falado, sempre meio escondido atrás dos sons dos instrumentos, sua guitarra meio blues meio Stockhausen sua figura marginal, tudo fazia dele um emblema da época, tudo levava a pensar que nele os temas fundamentais se radicalizavam. Mas havia, para meu gosto, muita confusão em seu som, muito prato de bateria, muito "jazz". Por um lado, eu não conseguia gostar mais daquilo do que gostava dos Beatles, e, por outro, sentia-me atraído por James Brown e seus gritos limpidamente rasgados sobre o suingue enxuto de sua banda. Jimi Hendrix, comparado com ele, parecia algo importante e sério, embora ingênuo. Mas a música de puro entretenimento de Brown, além de me ser mais facilmente agradável, era representativa de uma tradição americana de precisão que me interessa grandemente. Os estilos criados por negros nesse ambiente de culto da nitidez são absolutamente maravilhosos: havia em James Brown um encanto que reencontro em Stevie Wonder, Prince e Michael Jackson.
Janis Joplin era a branca negra, a garota da nossa geração que sintetizava os Estados Unidos da liberdade, da aventura e da rebeldia. Os Estados Unidos da América fatalmente mestiça, fatalmente comprometida, em todas as suas prospecções, com os não-brancos que a colonização dizimou ou escravizou. Ela era também um exemplo entusiasmante de como uma sociedade abundante como a norte-americana, com seu altíssimo grau de competitividade, pode produzir artistas em que a aspereza do inculto é atingida com cultivadíssima precisão. Passamos a assistir ao espetáculo das lâmpadas coloridas em volta da boneca de fibra de vidro segundo os sons da gravação de "Summertime" na voz de Janis. A inconsistência musical do Big Brother and the Holding Company mais realçava do que atrapalhava a beleza do canto dessa menina que surgia como uma figura nuclear no novo mundo dos universitários californianos, dos radicalismos dos panteras negras, da oposição à guerra do Vietnã e do show business recém-transtornado pelo neo-rock'n'roll.
Bob Dy lan não era um fenômeno comercial como os Beatles, mas, de certa forma era mais conhecido do que os Rolling Stones no Brasil quando essas novidades nos foram apresentadas. Os Stones podiam ter tido "Satisfaction" nas paradas, mas Dy lan já tinha admiradores seletos havia muito mais tempo. 
Lembro mesmo de ouvir um lado inteiro de um LP seu com Toquinho, em sua casa, na época em que saíamos, ele, Chico e eu, por São Paulo, antes de eu me mudar para lá. Toquinho queria minha opinião, pois lhe parecia demasiadamente enfadonho um disco - segundo lembro de ouvi-lo frisar - com todas as músicas cantadas e tocadas no mesmo tom. Achei curiosa a voz fanha e o jeito sujo de tocar violão e gaita. Não entendia nada das letras e terminei por me aborrecer também. Agora, o tropicalismo estabelecido, eu ouvia e reouvia maravilhado Bringing it all back borne, que Peticov me recomendara. Até hoje, esse é o disco de Dy lan que mais me emociona. Eu continuava a não entender quase nada das letras, mas a atmosfera a emissão vocal, o bem captado desleixo, o timbre geral de seu trabalho me enriqueciam com sugestões inqualificáveis. O que mais me ficava era a impressão de riqueza de textura, de sofisticação alcançada sem o esforço de elaboração dos Beatles. Lembro de muitas vezes ter entendido erradamente o texto das canções e, sabendo que ele não estava dizendo o que eu supunha ouvir, ter chegado a frases e idéias que me soavam maravilhosas, algumas das quais eu talvez tenha usado como sugestão para letras de minhas próprias canções. Mas não se pode dizer que eu preferisse Dy lan aos Beatles. Eu sabia de sua respeitabilidade e seu som sugeria uma mente mais culta do que a dos melhores roqueiros ingleses, mas, comparados à verbosidade de suas canções caudalosas e à retórica que se adivinhava do que era inteligível nas letras (meu inglês era meramente ginasial), os Beatles pareciam muito mais construtivos e enxutos. Por outro lado, o experimentalismo ostensivo de Sargent Pepper's Lonely Hearts Club Band estava mais próximo não só do que fazíamos como dos grandes artistas que eu admirava, fossem eles Godard, Oswald, Augusto de Campos, João Cabral, Joy ce, Lewis Carroll ou e. e. cummings. Embora os Beatles fossem obviamente mais ingênuos, Dy lan parecia atrelado a uma concepção romântica do poeta, sem as incursões (explícitas) pela metalinguagem, pelo atonalismo e pelo concretismo que os Beatles apresentavam. Além disso, nunca me senti atraído pelo ambiente country americano, do qual ele tanto se aproximou.
Até hoje, no entanto, a densidade de Dy lan me interessa e sua personalidade artística me apaixona. Observo que o ouço hoje mais do que ouço os Beatles – e para maior proveito. Recentemente vi, por acaso, um número do seu Acústico MIV (era "With God on our side)" e fiquei fundamente comovido. Ele é uma figura a um tempo central e à parte no panorama dos anos 60 - e um traço forte do século. Um dos mais impressionantes exemplos da pujança criativa da cultura popular americana, da cultura americana tout court. No momento em que os ingleses dominavam o jogo com sua versão do rock'n'roll do lado de lá do Atlântico, do lado de cá Dy lan já apresentava o espessamento desse caldo em que Beatles e Rolling Stones beberam, mostrando onde está a nascente e de onde jorra a energia. E a gente sabe que Hendrix deve a ele tudo o que não deve aos grupos ingleses (embora deva "tudo" ao público inglês).





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