domingo, 16 de junho de 2019

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Em 1979 é lançado pela gravadora PolyGram o álbum “Angela Ro Ro”. Ao encostar a agulha no vinil, embala-nos um piano acompanhado por uma voz bamboleante. Somado a isso, um arroubo de versos impetuosos delineiam a profundidade do amor e do seu fracasso. Angela Ro Ro compõe um álbum autoral e autobiográfico, com letras que a tornam uma poeta maldita, pelo lado escuro da vida que percorreu para a construção de sua obra.

Em seu disco de estreia emplaca sua canção primeira, que ainda hoje encerra seus shows como um dos grandes destaques de sua carreira. “Amor, meu grande amor” demonstra o caráter instrutivo daquela que ama: “Me chegue assim bem de repente, sem sentir o que não sente”. Para essa relação que deverá ser intensa, a honestidade será uma tônica, pois através do acaso uma outra corresponderá de modo genuíno, sem fingimentos. Na música regravada pelo Barão Vermelho, em 1996, há, entre outros tantos, um pedido fundamental: “E quando me quiser que seja de qualquer maneira”. Desde aí já se impõe a necessidade de aceitação, que implica a condição marginal daquela que canta.


O desejo fica marcado em “Cheirando a amor”, que ambienta uma das cenas amorosas de Cazuza, em O tempo não pára. Na ocasião ele, um grande fã da cantora, é representado no filme em uma relação homoafetiva, dando amplitude a um verso conclusivo da canção: “Que preconceito barato que o cão caça o gato”. Para o amor não há regras que devam podar “delirantes formas de amar”, sejam elas quais forem. O que importa é transpirar essa ânsia quando a pessoa amada estiver em sintonia com esse querer: “Quero cheirar a amor. Quero exalar suor. Pro dia que você for ficar com seu melhor”.

A idealização se desenha com cada “Gota de Sangue” da voz poética transfigurada em “forma verbal”. Há um caminho a ser construído para que essa relação se concretize: “Não se perturbe nem fique à vontade. Tira do corpo essa roupa e maldade”. Nela muitos traços ainda não estão acertados, o que impede quem ama de “embriagar a razão” e se entregar. Na letra da canção gravada também em 1979 por Maria Bethânia, em seu disco Mel, faz-se um pedido crucial: “Nunca confunda carinho e desejo”, pois a paixão se faz elemento essencial, enquanto o afeto, sem ela, não é suficiente para a conformação do amor que ali se busca.

Desse modo, ocorrem por vezes desilusões, como mostra em “Tola foi Você” e pelo pedido de agradecimento que revela a rejeição sofrida: “Agradeço por você não ter me dado o seu amor”. Tal rechaço tematiza também “Mares da Espanha”, em que a voz poética vive uma procura angustiante por um amor que está “tecendo pra outra seu corpo com manha”. Nesta empreitada, cogita inclusive rastejar até o Leblon para encontrar aquela que foi responsável pelo seu abandono. Mas sabe ser inútil também o sacrifício, o que gera seu desespero e consequente embriaguez: “Você quando acorda tem gente do lado, mas eu quando durmo é um sono abafado de uísque e vergonha – por nunca encontrar você”.

A sofreguidão desponta também em “Me acalmo danando”, sendo ocasionada justamente pela incompatibilidade: “Como é duro amar sem ser amada”. As marcas do desamor são pungentes “pra quem tudo na vida sentiu, disse e fez” e ficam impressas nos versos de “Não há cabeça”. Na música também cantada por Marina no seu disco de estreia, de 1979 – Simples como fogo –, se reitera a tentativa de livrar-se através do álcool da ausência que se arrasta: “Não há bebida que beba a saudade”.


Essa postura transviada e transgressora da artista fica evidente em “Agito e uso”, quando se declara “uma moça sem recato” que conduz a vida de um jeito não “tido como forma popular”. O que a caracteriza na “Balada da arrasada” como uma mulher “acabada, maltratada, torturada, desprezada, liquidada, sem estrada pra fugir”. Sua falta de rumo a encurrala de tal modo que ocorre uma cisão inclusive com a figura materna: “Sua voz tão difícil de calar não me diz mais nada”, representada em “Minha mãezinha”. Contraditoriamente, é justo uma ligação da mãe na iminência de morrer – no final dos 90’s –, que faz com que Angela abandone a bebida e as drogas e, possivelmente, o caminho que culminaria em sua própria morte, devido a seus excessos e intensidade arrebatadora. Na ocasião, ela foi orientada a ter autoestima, pois estava, de acordo com a mãe, parecendo um lixo. “Abre o Coração” e, nesta música que encerra sua obra, aconselha: “Se a covardia bate, vai bem fundo, não desate. Esse nó no peito a natureza fez”. Compreende ser necessário seguir, ainda que carregando as desventuras sofridas.

É vital, assim, uma mudança: “Começo uma nova história e aviso: não vai ter lugar pra você, onde sobra juízo”. “A Mim e a Mais Ninguém” reforça a impossibilidade de se manter racional quando se trata do amor, fazendo com que a poeta, mesmo tão afeita ao lado escuro da vida, vislumbre um longevidade para si mesma: “Todo canto e pranto meu e tudo que sou eu por certo vai vingar”. Por sua profundidade poética e musical, Angela Ro Ro certamente vinga. E isso ocorre precocemente, visto que já em seu primeiro álbum ela compõe o que se tornaria uma grande obra da Música Popular Brasileira.

LADO A
1.”Cheirando a Amor” (Angela Ro Ro)
2.”Gota de Sangue” ( Angela Ro Ro)
3.”Tola Foi Você” ( Angela Ro Ro)
4.”Não Há Cabeça”( Angela Ro Ro)
5.”Amor, Meu Grande Amor” (Ana Terra, Angela Ro Ro)
6.”Me Acalmo Danando” (Angela Ro Ro)

LADO B
7.”Agito e Uso” (Angela Ro Ro)
8.”Mares da Espanha” (Angela Ro Ro)
9.”Minha Mãezinha” (Angela Ro Ro)
10.”Balada da Arrasada” (Angela Ro Ro)
11.”A Mim e a Mais Ninguém” (Sérgio Bandeyra, Angela Ro Ro)
12.”Abre o Coração” (Angela Ro Ro)


Fonte: irenenoceu

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