sábado, 15 de junho de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


ANTROPOFAGIA

Essa visão é a grande herança deixada pelo modernista Oswald de Andrade. Oswald foi, juntamente com Mário de Andrade, a liderança intelectual do movimento modernista brasileiro, lançado escandalosamente em São Paulo em 22, com uma semana de recitais e exposições que suscitaram admiração, susto e horror - e lançaram as bases de uma cultura nacional. As pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, o músico Villa-Lobos, e outros poetas e escritores como Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo também foram figuras centrais do movimento. Enquanto Mário de Andrade - cujo nome eu ouvia constantemente pronunciado pelos meus colegas nacionalistas - tinha sido a figura responsável, normativa e organizadora do modernismo, Oswald - cujo nome eu só ouvira ser pronunciado duas vezes: por meu colega de classe Wanderlino Nogueira Neto no curso secundário, e naquela conversa entre Rogério e Agrippino sobre Panamérica - representara a fragmentação radical, a força intuitiva e violentamente iconoclástica.
Meu encontro efetivo com esse autor se deu através da montagem de uma peça sua, inédita desde os anos 30, pelo grupo de teatro Oficina. Eu vira um espetáculo do Oficina - Os pequenos burgueses de Górki - em 65, na época em que Bethânia estava com o Opinião em São Paulo. A montagem me encantara. O estilo do diretor José Celso Martinez Corrêa era ao mesmo tempo mais tradicional e mais sutil do que o de Boal. Lembro que, ao sair do teatro, pensei em como era problemático que eu gostasse talvez mais daquilo do que do meu querido Arena conta Zumbi. O Zumbi era um passo, uma conquista, não havia dúvida, mas em Os pequenos burgueses do Oficina havia uma sensibilidade que me reportava aos espetáculos da Escola de Teatro da Bahia de Eros Martim Gonçalves e do Teatro dos Novos de João Augusto Azevedo. Uma sensibilidade que o Zumbi, muito mais esquemático, não mostrava. E foi a visão de Os pequenos burgueses de Zé Celso - muito cheio de nuances, muito "europeu" - que me deu a percepção de que o Zumbi de Boal era americano, broadway esco. Fui ver O rei da vela - a peça de Oswald de Andrade que o Oficina tirava de um ostracismo de trinta anos - cheio de grande expectativa. Mas não imaginava que iria encontrar algo que era ao mesmo tempo um desenvolvimento dessa sensibilidade e uma sua total negação.
Zé Celso se tornou, aos meus olhos, um artista grande como Glauber. Se a própria função de diretor de teatro indica um status menos autoral do que a de cineasta - e, de fato, aquela noite significou para mim mais um encontro com Oswald do que com Zé Celso -, era inegável que, possuidor, como Glauber, de uma intensa chama própria, Zé Celso tinha uma firmeza de mão no acabamento com que Glauber nem poderia sonhar. Seu desembaraço artesanal lhe permitia fazer o espectador sentir o espaço de acordo com a intenção poética profunda que lhe inspirara esta ou aquela disposição cênica, esta ou aquela movimentação de corpos, vozes e luz. O canhestro em Glauber muitas vezes intensifica a mensagem estética - Zé Celso produzia tais intensificações em acordo íntimo com seu gosto e sua capacidade de controle dos meios. A peça continha os elementos de deboche e a mirada antropológica de Terra em transe. O primeiro ato recebera um tratamento de gosto expressionista, com o anti-herói central, Abelardo I, atendendo em seu escritório, um a um, os devedores de seus empréstimos, que eram mantidos numa jaula e tratados às chicotadas pelo seu assistente, Abelardo II; as roupas eram escuras, as maquiagens marrons, à exceção dos dois Abelardos, que tinham os rostos pintados de branco, como palhaços. O segundo ato era uma chanchada: um painel berrantemente colorido representava em traços meio cubistas, meio infantis, a baía de Guanabara,no Rio, onde Abelardo confraternizava com a família de sua mulher Heloisa de Lesbos: a gorda mãe que ouve galanteios do genro; o irmão integralista (nazifascista); a irmãzinha menor com suas luvas de boxe; o irmão veado que deplora a família (e grita a toda hora que "seu destino é pescar nos penhascos"): a avó a quem Abelardo dedica versos de Lamartine (...Babo, o compositor de sensacionais marchinhas carnavalescas dos mesmos anos 30 em que a peça foi escrita); o visitante americano (numa primeira - e mais eficaz - versão do personagem caricato do agente imperialista que seria uma constante das peças do CPC da UNE nos anos 60; todos num palco giratório em que as boutades e as indicações das transações econômicas pessoais, familiares, de classes, nacionais e internacionais se sucediam numa agilidade e numa vivacidade de entontecer. O terceiro ato era em tom de ópera. Heloisa de Lesbos - que no primeiro ato aparecera de terno branco e fumando por uma longa piteira, e no segundo num
maiô futurista prateado que fazia a atriz (Itala Nandi) parecer um robô do filme Metrópolis, uma Barbarella, uma Modesty Blase - agora estava no centro do palco com um longo vestido negro cuja cauda ocupava o grande círculo que fora giratório no ato anterior, chorando a miséria em que caiu Abelardo (um arrivista com quem ela, "aristocrata" do café, se casara por conveniência econômica), vitima da sagacidade de seu assistente homônimo - e do imperialista americano. Muito da força visual do espetáculo se devia a Hélio Eichbauer-que, por isso mesmo, é uma figura de grande importância na história do tropicalismo -, o jovem cenógrafo carioca que estudara na Tcheco-Eslováquia com Swoboda. A unidade cênica de cada um desses atos só se tornou possível pela segurança técnica e imaginação inventiva desse grande artista brasileiro (cujos trabalhos enriquecem nosso teatro até hoje, e com quem tenho colaborado na criação de meus shows de música - tendo inclusive usado como ilustração de capa do meu disco Estrangeiro sua maquete para o cenário do segundo ato de O rei da vela). Mas havia uma tensão inevitável - e muito salutar para esse espetáculo inaugural da nova fase do Oficina - entre o temperamento apolíneo de Eichbauer e as ambições de Zé Celso de tornar-se mais e mais dionisíaco. Menos de um ano depois, já em 68, o diretor aceitaria a empreitada de montar Roda viva, peça juvenil de Chico Buarque sobre a engrenagem que cerca a criação de uma estrela de música popular, e faria disso uma experiência radical no sentido de um teatro de explosão do irracional. Muito do que se viu então foi de grande impacto e importância estética, mas, a não ser pela extraordinária montagem de Hamlet em 94, o nível de O rei da vela não foi atingido por nenhum outro espetáculo do Oficina que eu tenha visto (ele montou Na selva das cidades, de Brecht, e As três irmãs, de Tchekhov, durante meu exílio londrino) - ou do teatro brasileiro em geral.
Eu tinha escrito "Tropicália" havia pouco tempo quando O rei da vela estreou.
Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular. No texto de apresentação que fez imprimir no programa, Zé Celso dedicava o novo espetáculo a Glauber e à capacidade de responder à realidade da época que o Cinema Novo exibia - e de que o teatro estava carente. E se referia a Chacrinha como teatralmente criativo e inspirador. Isso confirmava minha percepção de que o que eu vira tinha tudo a ver com o que eu estava tentando fazer em música. Depois de ver a peça, conversei com Zé Celso, a quem fui apresentado já não lembro por quem. Estávamos num restaurante frequentado por gente de teatro e de música, e por artistas em geral. Contei-lhe sobre minha canção Tropicália e de como eu a achava semelhante ao que ele estava fazendo. Acho que ele pediu que eu cantasse um trecho (ou recitasse a letra) da canção, pois é nítida a memória de seu comentário em tom de pergunta (uma sua marca): "O que você acha parecido é esse modo cubista de fragmentar as imagens?". Comentei a concordância no interesse por Terra em transe e Chacrinha.  E nossa conversa animou-se com facilidade. Disse-lhe da profunda impressão que me causou o texto escolhido, e ele falou horas sobre Oswald de Andrade, ressaltando o fato de que aquela peça, mais moderna do que tudo o que se escreveu no teatro brasileiro depois dela - com sua visão erotizada da política, sua linguagem não linear, seu enfoque bruto de signos que falam por si na revelação de conteúdos-tabus da realidade brasileira -, parecia ter ficado reprimida pelas forças opressivas da sociedade brasileira - e de sua intelligentsia -, à espera de nossa geração.
Nos anos 70, li, porque o autor tinha sido meu colega na Faculdade de Filosofia, um livro do ensaísta baiano Carlos Nelson Coutinho intitulado O estruturalismo e a miséria da razão, em que, seguindo o pensamento de Georg Lukács, ele aponta uma ameaça à linhagem racional da filosofia ocidental - e à própria racionalidade da burguesia revolucionária ascendente -, ameaça essa vinda simultaneamente do "irracionalismo" e do "super-racionalismo" – ambos
representativos de uma fase decadente da mesma burguesia. Carlos Nelson é um pensador marxista respeitado e, a despeito de nos vermos com grande raridade e sempre com brevidade, meu amigo. Ou, de qualquer modo, alguém de quem gosto.
Seu livro me interessou primeiro porque eu queria ver como funcionava a cabeça de um intelectual conhecido se posta a trabalhar profissionalmente. Logo, no entanto, e à medida mesma que eu ia achando o livro mais e mais esquemático, impressionou-me o quanto me servia a carapuça. De fato, se eu fora rejeitado pelos sociólogos nacionalistas da esquerda e pelos burgueses moralistas da direita (ou seja, pelo caminho mediano da razão), tivera p apoio de - atrairá ou fora atraído por - irracionalistas (como Zé Agrippino, Zé Celso, Jorge Mautner) e "super-racionalistas" (como os poetas concretos e os músicos seguidores dos dodecafônicos). Uma figura, contudo - eu estava agora descobrindo em São Paulo entre 67 e 68 -, era visível por trás desses dois grupos que nem sempre se aceitaram mutuamente: Oswald de Andrade. Uma prova de que Oswald os (nos) unia aquém ou além da razão é que o racionalista Boal, a quem encontrei à saída do Oficina na noite da estréia de O rei da vela, tendo me perguntado se eu havia gostado, e tendo me ouvido dizer que sim, fez o seguinte comentário: "Não adianta, Oswald de Andrade está morto e enterrado.
Prefiro Vianninha", referindo-se a Oduvaldo Vianna Filho, o mais importante autor teatral saído do CPC da UNE. Boal queria dizer com isso que aquelas figuras caricatas - o "burguês decadente", o "agente do imperialismo" etc. - pelo menos faziam sentido nas peças panfletárias do CPC, onde, ainda que de forma simplista, elas eram postas numa perspectiva política, enquanto em Oswald elas serviam a uma visão anárquica de que só se depreendiam, no máximo, julgamentos morais (o burguês "corno", o jovem aristocrata "homossexual", o arrivista "filisteu" etc.). Ora, para mim Oswald estava apenas nascendo, e suas figuras pareciam disparatadas justamente porque, em vez de servir como ilustração para idéias supostamente indiscutíveis, instigavam a imaginação a uma crítica da nacionalidade, da história e da linguagem. Em breve eu descobriria que o teatro de Oswald de Andrade era a parte mais fraca de sua obra - e O rei da vela, talvez a parte mais fraca do seu teatro. Tudo o que eu vira ali, estava melhor posto em sua poesia, seus romances e seus manifestos.
Antes de Zé Celso, os poetas concretos vinham se encarregando de ressuscitar Oswald. Uma antologia de poemas introduzida por longo ensaio de Haroldo de Campos e um artigo de Décio Pignatari, "Marco Zero de Andrade", forçavam a reintrodução entre os protagonistas da literatura brasileira da figura de Oswald, até então envolta em silêncio ou lembrada apenas como a de um piadista inconsequente e um vanguardista datado. Quando eu disse a Augusto o efeito que o contato com Oswald tinha produzido em mim, ele logo animou-se a me passar os textos de Décio e Haroldo, e considerou o meu entusiasmo uma confirmação a mais das afinidades entre eles, concretos, e nós, tropicalistas. Através de Augusto e seus companheiros tomei conhecimento da poesia a um tempo solta e densa, extraordinariamente concentrada de Oswald. Também, pouco depois, da sua revolucionária prosa de ficção. Sobretudo recebi o tratamento de choque dos "manifestos" oswaldianos: Manifesto da poesia pau-brasil, de 24, e, principalmente, Manifesto antropófago, de 28. Esses dois textos de extraordinária beleza são ao mesmo tempo um aggiornamento e uma libertação das vanguardas europeias. Filhos, como os manifestos europeus, do futurismo de Marinetti, sendo o primeiro deles anterior aos surrealistas, eles eram também uma redescoberta e uma nova fundação do Brasil.
Mais violentamente ainda do que Antonio Candido décadas depois, Oswald se referia à literatura brasileira como "a literatura mais atrasada do mundo". Não era por deixar de observar isso que ele se sentia livre para dizer, no primeiro dos manifestos: "Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química. De mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas".
O segundo manifesto, o Antropófago, desenvolve e explicita a metáfora da devoração. Nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse de onde viesse, ou, nas palavras de Haroldo de Campos, assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá- la em termos nossos, com qualidades locais iniludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe confeririam, em principio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação. Oswald subvertia a ordem de importação perene - de formas e fórmulas gastas - (que afinal se manifestava mais como má seleção das referências do passado e das orientações para o futuro do que como medida da força criativa dos autores) e lançava o mito da antropofagia, trazendo para as relações culturais internacionais o ritual canibal. A cena da deglutição do padre d. Pero Fernandes Sardinha pelos índios passa a ser a cena inaugural da cultura brasileira, o próprio fundamento da nacionalidade.
A idéia do canibalismo cultural servia-nos. aos tropicalistas. como uma luva. Estávamos "comendo" os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos. Procurei também - e procuro agora - relê-la nos textos originais, tendo em mente as obras que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e tal poética surgiram. Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60. E, se Gil, com o passar dos anos, se retraiu na constatação de que as implicações "maiores" do movimento - e com isso Gil quer dizer suas correlações com o que se deu em teatro, cinema, literatura e artes plásticas - foram talvez fruto de uma superintelectualização, eu próprio desconfiei sempre do simplismo com que a idéia de antropofagia, por nós popularizada, tendeu a ser invocada.
O psicanalista italiano Contardo Calligaris escreveu, no início dos anos 90, um livro sobre o Brasil em que coloca a idéia de antropofagia cultural, que ele encontrou disseminada nos meios psicanalíticos brasileiros, como um mito que, além de nocivo, é sintoma da nossa doença congênita de não- filiação, de ausência de um "nome do pai", de falta de um "significante nacional brasileiro". Mas sua argumentação só me parece aceitável se considerarmos que ele está ali agredindo um uso que se fez de tal mito e que lhe pareceu contribuir para a manutenção de um estado de coisas lastimável, não a intuição mesma de Oswald em sua perspectiva própria. Trazer de volta - como ele fez - ao meramente orgânico o ato antropofágico ritual que Oswald emprestava dos índios (comer partes do corpo do inimigo admirado para adquirir-lhe a bravura, a destreza e as virtudes morais) como receita de um comportamento criativo em tudo diferente do que freqüentemente se faz no Brasil - os congressos psicanalíticos ou fora deles - era forçar a mão para, numa sanha diagnosticadora, meter num mesmo saco a mediocridade dos misturadores de informações mal assimiladas e o gesto audaz de um grande poeta. Era também agir como se a antropofagia fosse um programa prescrito por Oswald nos anos 20 e posto em prática até nossos dias com resultados desastrosos. Na verdade, são poucos os momentos na nossa história cultural que estão à altura da visão oswaldiana. Tal como eu a vejo, ela é antes uma decisão de rigor do que uma panacéia para resolver o problema de identidade do Brasil. A poesia límpida e cortante de Oswald é, ela mesma, o oposto de um complacente "escolher o próprio coquetel de referências". A antropofagia, vista em seus termos precisos, é um modo de radicalizar a exigência de identidade (e de excelência na fatura), não um drible na questão. Nós tínhamos certeza de que João Gilberto (que, ao contrário das "fusões" tipo maionese, para usar a palavra escolhida por Calligaris, criou um estilo novo, definido, fresco, inaugural por seus próprios méritos) era um exemplo claro de atitude antropofágica. E queríamos agir à altura. Detenho-me no comentário desse livrinho despretensioso, porque nele se formulou a mais decidida rejeição à moda antropofágica de que, como já disse, nós, tropicalistas, fomos os mais eficazes divulgadores. Calligaris diz que seu livro nasceu de uma paixão pelo Brasil (e por uma mulher brasileira...), país ausente de suas cogitações até que um convite profissional o trouxe aqui. E, psicanalista, observa que a melhor maneira de ajudar esse país amado a superar sua falência como projeto é jogar-lhe na cara sua desesperança fatal. "Brazil is hopeless", escrevia, sem demonstrar o mesmo desejo de ajudar de Calligaris (embora ela também estivesse aqui porque se apaixonara por uma mulher brasileira), a poetisa americana Elizabeth Bishop. No livro de Calligaris, de resto, há um tom agradável e observações úteis revelando uma inteligência responsável e generosa. A própria tese central do livro, se ele é considerado na condição provisória de um livro "de viagem", como pede o autor, ilumina o pensamento dos que têm tomado o Brasil como questão. O colonizador (que deixou a terra-mãe para exercer a potência do pai sem interdito na nova terra) e o colono (o imigrante que veio esperando do colonizador uma interdição paterna que fundasse uma nova nacionalidade, e só encontra um uso escravo do seu corpo, confundido pelo colonizador, como o corpo dos negros, com a terra que deve ser exaurida sem limites) são duas instâncias da mente brasileira que produzem a frase (ouvida por Calligaris num período em que ela parecia uma aberração aos próprios brasileiros, pois era então uma novidade - o que não quer dizer que não se possa tomá-la, como ele o fez, por um sintoma): "Este país não presta".
O nome mesmo do país, Brasil, lhe parece destituído de valor: "que eu saiba, o único que não designa nem uma longínqua origem étnica, nem lugar, mas um produto de exploração, o primeiro e completamente esgotado". Assim, tudo no Brasil - do rapaz que passa a mão na sua bunda no Carnaval da Bahia (sem que fique claro se ele está em busca de sexo ou de dinheiro) à divida externa; das crianças que são tratadas como majestades ou assassinadas nas ruas, aos blocos afros que buscam no Egito absurdo de suas canções uma origem que lhes dê sentido à existência - se explica pela falta do nome do pai, de um "significante nacional". O "antropofagismo", como Calligaris prefere, teria surgido como solução para esse problema. E é por ele criticado duramente por substituir pelo tubo digestivo (que todos sabem onde vai dar... )o UM que o Brasil nunca conseguiu se fazer. E essa substituição, afinal, seria uma sugestão do colonizador ao colono no sentido de tomar como UM nacional o corpo escravo que se oferece: o Brasil seria assim exótico não só para os turistas como também para os brasileiros.
Ora, tudo isso tem a ver com o tropicalismo. Mas se a psicanálise brasileira tivesse um João Gilberto a conversa seria outra. O livro de Calligaris presta como provocação. E, acima de tudo, revela uma vontade corajosa de conhecer o corpo e a alma desse país encontrado no caminho. A interpretação que ele dá do cinismo com que os livros didáticos brasileiros tratam as figuras históricas (sobretudo o episódio da vinda de d. João VI, que foi forçado a deixar Portugal quando Napoleão bloqueou a Inglaterra, a qual ele apoiava com corajosa fidelidade - e é resumido nos livros escolares a um mero "d. João tinha dívidas com a Inglaterra e interesses comerciais -,passando a ser conhecido no Brasil como "o rei fujão") como resultante da visão brasileira de que o "único motor da ação humana pudesse ser o apetite de um gozo direto da coisa" é excelente. Tanto o tom provocativo quanto a coragem de ir assim fundo no desvendamento do Brasil são aspectos que aproximam o livro de Calligaris do tropicalismo (que ele não cita) e da antropofagia (que ele desanca).
Seria o caso, no entanto, de perguntar como Calligaris interpretaria o fato de essa mesma antropofagia, que ele conheceu triunfante, ter sido, de todas as contribuições dadas pelos modernistas, a que encontrou maior resistência, na verdade uma rejeição total, ficando reprimida desde os anos 20 até o final dos anos 60. E mais: já que esses valores dos 60 estão desacreditados - o livro de Calligaris contribui muito para isso com sua mensagem anti-Paradise-Now, antiprincípio-do-prazer, seu realismo psicanalítico conservador -, ele deve talvez reconsiderar o diagnóstico. Se a antropofagia era tão mau sintoma, aparentemente o Brasil tem anticorpos poderosos contra ela, uma vez que foi o maior fracasso do movimento de 22, e o bom senso já a penaliza, mal ela ensaia uma volta no concretismo, no tropicalismo etc. Mas eu também sei ser realista - Oswald também sabia – e considero bem-vindo o refluxo conservador. Por isso aceito a provocação e valorizo esse livro tão amigo quanto discordante. Entendo que, sendo seu autor psicanalista, e tendo sua chegada ao Brasil coincidido com o final da voga neo-antropofágica desencadeada pelo tropicalismo (pelo visto ele encontrou os últimos estertores dessa onda nos meios psi), ele naturalmente reagiu ao que ouviu: aquilo pode ter ficado calado no inconsciente brasileiro desde sempre, mas foi "dito" - e o analista chegou a tempo de ouvir pelo menos o seu eco.
No entanto, há pertinência em notar na Tropicália (na esteira da Antropofagia) uma tendência a tornar o Brasil exótico tanto para turistas quanto para brasileiros. Sem dúvida eu próprio até hoje rechaço o que me parecem tentativas ridículas de neutralizar as características esquisitas desse monstro católico tropical, feitas em nome da busca de migalhas de respeitabilidade internacional mediana. Claro que reconheço que reflexos de um turbante de bananas não seriam particularmente úteis à cabeça de um pesquisador de física nuclear ou de letras clássicas que tivesse nascido no Brasil.
Apenas sei que este fato "Brasil" só pode liberar energias criativas que façam proliferar pesquisadores de tais disciplinas (ou inventores de disciplinas novas) se não se intimidar diante de si mesmo. E se puser seu gozo narcíseco acima da depressão de submeter-se o mais sensatamente possível à ordem internacional. Quando Orfeu do Carnaval estreou eu tinha dezoito anos. Assisti a ele no Cine Tupi (!), na Baixa dos Sapateiros (!), na Bahia. Eu e toda a platéia ríamos e nos envergonhávamos das descaradas inautenticidades que aquele cineasta francês se permitiu para criar um produto de exotismo fascinante. A critica que os brasileiros fazíamos a esse filme pode ser resumida assim: "Como é possível que os melhores e mais genuínos músicos do Brasil tenham aceitado criar obras-primas para ornar (e dignificar) uma tal enganação?". É notório que Vinicius de Moraes, autor da peça em que o filme se baseou, saiu irado da sala de projeção durante uma sessão promovida pelos produtores antes da estréia. O fascínio, sem embargo, funcionou com os estrangeiros: não só o filme pareceu (a pessoas dos mais diferentes níveis culturais) uma comovedora versão moderna e popular do mito grego como também uma revelação do país paradisíaco em que ela era encenada. Quando o tropicalismo chegou, o filme já estava esquecido no Brasil.
Mas quando chegamos a Londres em 69, os executivos de gravadoras, os hippies e os intelectuais que conhecemos, todos, sem exceção, se referiam entusiasticamente a Orfeu do Carnaval tão logo eram informados de que éramos brasileiros. Sentíamos ainda um pouco de vergonha, mas atender ao pedido de cantar "Manhã de Carnaval" muitas vezes compensava. Ainda hoje não param de se repetir as narrativas de descobertas do Brasil por estrangeiros (cantores de rock, romancistas de primeira linha, sociólogos franceses, atrizes debutantes), todas marcadas pelo inesquecível filme de Marcel Camus. Elizabeth Bishop, em
suas cartas do Rio, num primeiro momento - possivelmente por ser poeta e por morar por muito tempo no Brasil - esforçou-se para convencer seus amigos americanos (Robert Lowell incluído) de que o filme era, ao contrário do que lhes parecia, mau, embora a música fosse excelente: mas em breve ela se distanciava dos brasileiros no seu julgamento, ao desmerecer as canções do filme (a principio louvadas) por não serem a "autêntica" música das favelas cariocas. John Updike, em parte por causa desse Orfeu, escreveu um livro chamado Brazil, com o qual não se saiu muito melhor do que o cineasta Camus. Só Jean-Luc Godard escreveu, à época mesma do lançamento do filme, um artigo critico em tudo justo com o cinema, a poesia, o mito de Orfeu e a cidade do Rio de janeiro. Um artigo que os tropicalistas gostariam de assinar. Mas só vim a tomar conhecimento desse artigo já nos anos 70, de volta à Bahia. Nesse meio tempo, a revisão crítica tropicalista que o filme sofreu dizia respeito sobretudo a um aprofundamento do estudo do olhar do estrangeiro sobre nós - e das sutilezas de amor e guerra com o exotismo.
Surpreendi-me escrevendo, para a introdução deste livro, que o Brasil é, para mim como para os brasileiros tal como os vejo e sinto, antes de tudo um nome. (Isso foi o que me fez lembrar do livro do psicanalista italiano). Todos os brasileiros temos a impressão de que o país simplesmente não tem senso prático. É como um pai de coração bom e nome honrado a quem respeitamos mas que não consegue dinheiro ou um trabalho estável, perde grandes oportunidades, se embriaga e se mete em complicações. O nome do Brasil não apenas me parece, por todos os motivos, belo, como tenho dele desde sempre uma representação interna una e satisfatória. O analista italiano diz que é característico do brasileiro ser nomeado irresponsavelmente, sem vinculo simbólico com, por exemplo, o santo correspondente ao dia do seu nascimento. Meu nome é Caetano porque nasci no dia de são Caetano, em louvor do qual minha mãe manda celebrar missa todos os anos, mesmo na minha ausência. Nunca me senti uma exceção por causa disso. Santo Amaro não tinha ricos nem pobres e era bem urbanizada e tinha estilo próprio: todos se orgulhavam com naturalidade de ser brasileiros. Achávamos a língua portuguesa bela e clara. Dizíamos de bom grado que O francês (que aprendíamos no ginásio) era talvez uma língua ainda mais bela, e que o italiano (que ouvíamos freqüentemente nos filmes) seguramente o era (o espanhol dos filmes mexicanos nos parecia bastante ridículo). Julgávamos o inglês fácil como matéria de estudo por possuir verbos pouco flexionados, mas implicávamos com as discrepâncias entre escrita e pronúncia, e lhe achávamos a sonoridade antes canina do que humana, embora os filmes e as canções nos atraíssem mais e mais para ele. Quase todo o mundo era visivelmente mestiço.
Que o país fosse pobre não era uma vergonha (embora eu passasse depois a torcer para que ele enriquecesse). Supúnhamos que éramos pacíficos, afetivos e limpos. Era inimaginável que alguém nascido aqui quisesse viver em outro país. O tropicalismo começou em mim dolorosamente. O desenvolvimento de uma consciência social, depois política e econômica, combinada com exigências existenciais, estéticas e morais que tendiam a pôr tudo em questão, me levou a pensar sobre as canções que ouvia e fazia. Tudo o que veio a se chamar de tropicalismo se nutriu de violentações de um gosto amadurecido com firmeza e defendido com lucidez. Chico Buarque conta que, em sua adolescência de menino paulista de alta classe média, ele se sentiu atraído por Elvis e pelo folclore urbano da "juventude transviada". Sua rebeldia de episódico ladrão de automóvel revela essa identificação. A bossa nova trouxe-o para uma maturidade que fez dessa fase uma sua pré-história artística e pessoal. Eu me sentia num país homogêneo cujos aspectos de inautenticidade - e as versões de rock sem dúvida representavam um deles - resultavam da injustiça social que distribuía a
ignorância, e de sua macromanifestação, o imperialismo, que impunha estilos e produtos. Eu ouvia e aprendia tudo no rádio, mas à medida que, ainda na infância, ia formando um critério, ia deixando de fora uma tralha cuja existência eu mais perdoava do que admitia. Chegou uma altura em que, em meu íntimo, eu não gostava nem de saxofone: achava-lhe o timbre vulgar, sem a nobreza do trombone ou da trompa, sem sequer a respeitabilidade do trompete - e sem, por outro lado, a doçura pastoral da flauta e das madeiras ou a suavidade celestial das cordas. Tínhamos um piano em casa e aprendíamos rudimentos de música com
uma velha professora que sabia ensinar a ler as notas mas não os ritmos. Veio a moda nacional do acordeão. Em casa, todos, de meu pai a Bethânia - mas eu mais que todos -, achávamos esse instrumento de extremo mau gosto (exceto em sua utilização por Luiz Gonzaga na estilização da música regional nordestina). A bateria sempre me pareceu uma aberração: um apanhado grotesco de instrumentos de percussão marcial ligados por porcas e parafusos para que um homem pudesse tocá -los sozinho, como uma atração de circo. Sendo que tudo isso dentro da limitação timbrística da percussão marcial européia, dura e brilhante, sem as sutilezas e a organicidade dos sons da tumbadora ou do bongô cubanos, da cuíca e do atabaque brasileiros (quando tomei conhecimento da percussão indiana, da balinesa, da japonesa e das muitas africanas, esse julgamento recrudesceu). Quando a bossa nova chegou, senti minhas exigências satisfeitas – e intensificadas. Uma das coisas que mais me atraíram na bossa nova de João Gilberto foi justamente o desmembramento da bateria (a rigor não há bateria em seus discos: há percussão tocada na caixa ou no seu aro, depois, vassourinha sobre catálogo telefônico). A ausência de solos de sax também contribuiu muito. A volta da bateria como "instrumento", que ocorreu já nos anos 60 no Beco das Garrafas e no Fino da Bossa, com suas viradas usando pratos e tudo, me soou de uma vulgaridade extraordinária. Eu não era um extraterrestre por ter tais gostos. Apenas radicalizava dentro de mim - como João Gilberto finalmente radicalizou para todos – uma tendência de definição de estilo brasileiro nuclear, predominante. Eu sei que o próprio João adora bateria e bons bateristas e que os brasileiros em geral não os desprezam, mas não é a forma idiossincrática com que essa visão se manifestou em mim que revela seu significado: apenas, a intuição de um estilo nacional novo e definido em música popular passou por esses extremos em minha fantasia. Imagine-se com que força eu não tive que pensar contra mim mesmo para chegar a ouvir Roberto e Beatles e Rolling Stones - e mesmo Elis - com amor. Zé Celso gostava de dizer que havia um forte componente masoquista no tropicalismo. 
De fato havia como que uma volúpia pelo antes considerado desprezível. Mas eu - que como já contei, terminei passeando entre pilhas de latas de supermercado por prazer estético -não me entreguei a essa volúpia sem dedicar-lhe à interpretação todas as minhas horas de crescente insônia. E se, por um lado, eu não tinha tido contato direto com a arte pop americana (curiosamente Rogério nunca mencionara ou mostrara trabalhos de Warhol ou Lichtenstein), por outro, eu não contava com a fórmula antropofágica de Oswald. As aventuras da sensibilidade se deram num grande vazio. Pois, enquanto Gil parecia ter uma identificação natural com o material vulgar da publicidade - identificação de que eu não participava, bastando dizer que ele fazia jingles desde 63 em Salvador, e eu, até hoje, não apareci em um anuncio sequer, nem mesmo permiti que qualquer canção minha fosse usada para fins publicitários -, as idéias de Rogério e de Agrippino, à medida que iam passando a servir de orientação para ações reais minhas, tiveram que se submeter a um crivo interno terrível, não sendo raras as vezes em que, na solidão, eu me permitia desconfiar da autenticidade de suas reações, freqüentemente prometendo a mim mesmo que nunca aceitaria neles - ou em mim - a exibição de heresias e heterodoxias apenas como escândalo, sem que isso estivesse organicamente vinculado à regeneração do ambiente de música popular no Brasil.
O encontro com as idéias de Oswald se deu quando todo esse processo já estava maduro e o essencial da produção já estava pronto. Seus poemas curtos espantosamente abrangentes, a começar pelos ready -mades extraídos da carta de Caminha e de Outros pioneiros portugueses na América, convidavam a repensar tudo o que eu sabia sobre literatura brasileira, sobre poesia brasileira, sobre arte brasileira, sobre o Brasil em geral, sobre arte, poesia e literatura em geral.
Oswald de Andrade, sendo um grande escritor construtivista, foi também um profeta da nova esquerda e da arte pop: ele não poderia deixar de interessar aos criadores que eram jovens nos anos 60. Esse "antropófago indigesto", que a cultura brasileira rejeitou por décadas, e que criou a utopia brasileira de superação do messianismo patriarcal por um matriarcado primal e moderno, tornou-se para nós o grande pai.
Glauber parece ter sido o único a não partilhar do culto oswaldiano: talvez tivesse medo de ser assimilado a uma figura com tantos pontos em comum com ele próprio. De resto, ele já tinha feito sua escolha entre os modernistas: Villa-Lobos, com seu nacionalismo retumbante e a conquista de renome internacional, com seu talento exuberante, com seu temperamento e seus caprichos, parecia-lhe uma identificação mais adequada. A Bachiana nº 5 ficara de tal modo vinculada ao travelling circular do beijo entre Corisco e Rosa em Deus e o Diabo na Terra do Sol, que era natural que Glauber defendesse Villa-Lobos como a si mesmo.
Antonio Candido define o barroco como a atitude estética em que "a palavra é considerada algo maior que a natureza, capaz de sobrepor -lhe as suas formas próprias"; no romantismo ela "é considerada menor que a natureza, incapaz de exprimi-la, abordando-a por tentativas fragmentárias"; enquanto o classicismo a considera "equivalente à natureza, capaz de criar um mundo de formas ideais que exprimam objetivamente o mundo das formas naturais". A luz dessa classificação, que me parece clara e bela, Glauber, cuja fama de barroco fingi endossar (ou melhor, endossei de fato por estar ali tomando o termo barroco em sua acepção menos rigorosa de "extravagante" ou "sobrecarregado" ou ainda "irregular" linhas acima, seria antes um romântico. De fato, ele não apenas sonhava em filmar a vida de Castro Alves: ele se identificava com a figura desse poeta romântico baiano que um dia entrou no teatro da ópera de Salvador a cavalo. Seu sonho de filmar O Guarani, romance "indianista" de José de Alencar (partindo da ópera verdiana de Carlos Gomes, o outro nome da música brasileira tornado internacional - assim como o fato de ele dizer preferir Alencar ao indiscutível Machado de Assis -, indica sua verdadeira linhagem. Seus filmes, irregulares e fora de controle sugerem uma intuição da realidade demasiado genial para ser reordenada numa peça coerente. A genialidade dessa intuição é confirmada e complementada pelos gestos exteriores ao filme, pela visão messiânica, pelo sofrer na carne a aventura da afirmação de um cinema nacional, e, através dele, de uma afirmação da nação no mundo. Não se trata de uma hipotética "poesia de exportação", mas de uma encarnação da vontade de exportar. Há um gosto de destino em tudo isso. O que o leva a eleger como patrono a figura de Villa-Lobos, não a de Oswald de Andrade, com cuja agressividade antiprovinciana Glauber tinha (talvez demasiados, como já afirmei) pontos de identificação. A mim, se me fosse dado o talento necessário, eu ambicionaria superar essa tensão. O problema já foi equacionado por João Gilberto: depois dele, na minha profissão não se pode aceitar nada menos do que fazer a massa mundial comer o biscoito fino que se fabrica no Brasil.
O Cinema Novo nasceu de uma ambição bífida. No inicio dos anos 60, jovens intelectualizados e politicamente engajados quiseram apresentar uma visão do Brasil que valesse por uma intervenção transformadora da nossa realidade social. Quiseram, por outro lado, implantar uma indústria cinematográfica entre nós. Não se podem conceber desejos mais conflitantes. Seria o caso de hoje nos admirarmos e mesmo maravilharmos do fato de os frutos da empreitada daí saída não serem nem parcos nem modestos. Ao contrário, é moda na imprensa brasileira atacar o Cinema Novo como paradigma da nossa falência como nação e povo. Pior: a julgar pelo que se lê nos jornais, o moderno cinema brasileiro é a única razão para nos envergonharmos do nosso atraso cultural. Escarnece-se dos filmes inaugurais da fase heróica por não terem comunicabilidade popular, e dos muitos que, já nos anos 70, conseguiram essa comunicabilidade, por serem medíocres - tendo ambos os grupos de filmes sido dirigidos pelo mesmo time pioneiro de diretores. No entanto, o cinema brasileiro teve presença marcante no panorama internacional nos anos 60 - tendo Glauber influenciado diretores importantes e tão dispares quanto Pasolini e Sergio Leone, Herzog e Coppola - e o mercado interno chegou a parecer sólido e estável nos anos 70, com uma série de sucessos de bilheteria (Toda nudez será castigada, Xica da Silva, A dama do lotação, Eu te amo, Chuvas de verão, Os sete gatinhos, Pixote etc. etc. - sendo que Elia Kazan elogiou Os herdeiros, e Susan Sontag e muito mais gente louva ainda hoje By e by e Brasil, ambos de Carlos Diegues), série essa coroada com o fato de Dona Flor e seus dois maridos ter suplantado na bilheteria o próprio Tubarão de Spielberg no ano de seu lançamento.
A criação da Embrafilme, empresa estatal de financiamento, produção e distribuição cinematográfica, numa manobra dos cineastas do Cinema Novo com o poder do regime militar, é criticada hoje, não por uma esquerda revanchista que considere a aproximação desses diretores com a ditadura demasiadamente promíscua, mas por neoconservadores em nome do horror a estatais nacionalistas e reservas de mercado, em nome, em suma, do amor à chamada liberdade econômica. Eu, que reconheço no tropicalismo uma reverência à livre competitividade e uma desconfiança dos Estados centralizados, prefiro contabilizar as conquistas do Cinema Novo e louvar a capacidade de seus criadores de ir tão longe tanto no impor linguagens novas quanto na formação de plateias. Só uma personalidade especial como a de Glauber poderia ter liderado a marcha de ambições tão dificultosas em direção a tais conquistas. Só seu temperamento de articulador astuto aliado à identificação romântica com a figura do "gênio" poderia ser o núcleo gerador da Embrafilme, do prestígio do Cinema Novo na Europa e do surgimento do cinema marginal. E só uma eleição do modelo Villa-Lobos estimularia esse tipo de feito: não se pode imaginar Oswald de Andrade participando da fundação da Embrafilme, e Mário de Andrade - que talvez o fizesse - era uma figura sensata demais (até hoje ninguém parece se sentir à vontade para dizer que ele era veado - e os veados militantes preferem Oswald, apesar de este ter dado mostras do que hoje se chama horrivelmente de "homofobia"; e essa preferência só é abonadora para a nossa "comunidade gay "). Mas o Glauber dessacralizador e demolidor que se fez ouvir na Bahia quando se tinha que defender a vanguarda e a experimentação contra o acanhamento provinciano, esse Glauber era Oswald - e foi esse mesmo Glauber-Oswald que escarneceu da Embrafilme ao fazer, pouco antes de morrer, A Idade da Terra, espetacular gesto marginal e perdulário em todos os sentidos, que desconcertou o coro dos contentes e o dos descontentes. O que só aumenta nossa honra em vê-lo cantando, no filme de Godard Vento leste, em resposta à pergunta "Para onde vai o cinema do terceiro mundo?", o refrão de "Divino, maravilhoso", canção feita em 68 por Gil e por mim.
Nós outros, os tropicalistas propriamente ditos, que tínhamos no Glauber de Terra em transe um inspirador comum, não precisávamos, como ele, conter, esconder ou evitar o deslumbramento com a descoberta de Oswald. Para mim, pessoalmente, era um modo de redimensionar minhas admirações literárias. O culto a João Cabral de Melo Neto não se abalou. Antes terá acontecido o que Augusto conta que se passou com os próprios concretistas: o rigor construtivo de Cabral encontrou, para eles como para mim, complementaridade na abertura oswaldiana para "a contribuição milionária de todos os erros". A deslumbrante prosa barroca de Guimarães Rosa tampouco se ressentiu do trauma. O mesmo não se pode dizer da minha admiração por Sartre ou por Clarice Lispector. Não que os textos filosóficos ou ensaísticos de Sartre tenham perdido o brilho aos meus olhos. Mas lembro de ouvir uma repreensão de Rogério por eu ter lhe declarado, no Solar da Fossa em 66, que considerava As palavras o melhor dos livros já escritos. (Anos depois li idêntica opinião externada por Simone de Beauvoir, mas ela, naturalmente, tinha razões muito pessoais para isso...).
Rogério não apenas me disse que para ele não era assim, ele também detectou nesse julgamento uma distorção de perspectiva que denotava ignorância. Dei-lhe razão sem poder alcançar- lhe a visão. O encontro com Oswald como que me deu a dimensão dessa crítica. Quanto a Clarice, eu a idolatrava desde 59 quando, em Santo Amaro, li na revista Senhor o conto "A imitação da rosa". Nos primeiros anos 60, segui lendo tudo o que ela escreveu e escrevia, meu irmão Rodrigo sempre me comprando seus livros. Ao chegar ao Rio para morar, em 66, como tinha conseguido (com o ator José Wilker) seu número de telefone, decidi ligar para ela. Passei a fazê-lo com alguma regularidade. Desde a primeira vez, ela sempre parecia estar junto ao telefone esperando a ligação pois atendia mal soava o primeiro toque. Sua emissão de voz dava a impressão de imediatez de pensamento e sentimento, e suas palavras indicavam igual imediatez de percepção. Nunca nos víamos, mas mantivemos uma amizade telefônica que se desfez com um desinteresse que evidentemente surgiu nela e que coincidiu com minha mudança para São Paulo. Hoje amo sua literatura como quando eu tinha dezessete anos mas no meio da Tropicália, sob o impacto de Oswald, ela me pareceu demasiadamente psicologizante, subjetiva e, num certo mau sentido, feminina. Esta é a primeira vez que digo isso - e talvez só o faça porque já não penso ou sinto mais assim (não preciso pensar e sentir assim).
Na altura, nem para Augusto - que talvez aprovasse a crítica - confessei essa mudança, já em 68, por causa do assassinato do estudante Edson Luis por policiais, houve uma reunião ampla de artistas e intelectuais para exigir do governador da Guanabara uma atitude condizente. Eu viera de São Paulo só para isso e me encontrava em meio a uma pequena multidão de notáveis na ante-sala do palácio do governo, quando senti um toque em meu ombro e, voltando-me, ouvi a voz inconfundível, com seus erres guturais mesmo quando intervocálicos: "Rapaz, eu sou Clarice Lispector". Fiquei sem palavras: encontrávamo -nos justamente quando meu crescimento intelectual tinha me afastado de sua literatura. Ela, que agora podia me reconhecer por causa da TV e das fotografias (quando nos falávamos ao telefone eu tinha uma ou duas canções lançadas por outros cantores, mas era, pessoalmente, um desconhecido), percebeu logo a natureza do desencontro e voltou-se naturalmente, deixando-me sem jeito e um tanto triste. Muitas vezes penso ainda hoje em como é significativo que o tropicalismo tenha me custado, entre outras coisas, o diálogo com Clarice.




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