Naturalmente não foi difícil entender que o bluesman que ligava o mais tradicional ao pop e cujo canto parecia ser o de Nat King Cole virado pelo avesso (o de Johnny Mathis, ao contrário, era como que o verniz de sua superfície polida) desdenhasse o que lhe chegou aos ouvidos sob a rubrica de bossa nova - e perdoar-lhe a referência displicente a um genérico "ritmo latino"; tampouco tive dificuldade em entender o desprezo do criador da bossa nova (um estilo refinadamente contido) pelo que deveria parecer-lhe uma mistura do "característico" com o comercial. O que era talvez um pouco difícil para mim, era saber como julgar o fato de eu gostar tão profunda e sinceramente da música de ambos. A extraordinária cantora de fados portuguesa Amália Rodrigues já era conhecida desde muito antes de a bossa nova surgir e parecia eterna; Judy Garland e Edith Piaf, além de serem - e soarem como - coisa do passado, não chegavam a me atingir tão profundamente quanto a Bethânia; Billie Holiday era uma novidade vinda do passado - mas era cool como os mais cool. Ray Charles nos arrebatava e oferecia alimento para a nossa fome de modernidade com um estilo em tudo diferente do de João ou Jimmy Giuffe ou Chet Baker ou David Brubeck. Lembro de uma tarde que passei ouvindo repetidas vezes a gravação de Ray Charles de "Georgia on my mind" no nosso apartamento de Salvador, chorando com saudades de Santo Amaro - saudades transcendentais, a experiência da beleza do canto fazendo os conteúdos que tinham se tornado matéria de memória estarem mais presentes do que jamais estiveram, vivenciados com mais verdade do que da primeira vez: algo que vim a ver luminosamente representado pelas palavras no grande livro de Proust, que li alguns anos depois, e adequadamente analisado no livro de Gilles Deleuze sobre Proust, que li muitos anos depois - o que me levou a poder escrever a canção "Jenipapo absoluto", em que se diz: "Cantar é mais do que lembrar/ Mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo".
Mas eu mantive minha hierarquia: João era a informação principal, a primeira referência - além de ser a fonte central de fruição estética. De fato, quando chegou para mim a hora de Guimarães Rosa ou de Proust, a hora de Godard a hora de Eisenstein, de Stendhal, de Lorca ou de Joy ce e de Webern e Bach e Mondrian e Velásquez e Ly gia Clark - mas também a hora de Warhol e da revisão de Hitchcock, a hora de Dy lan, de Lennon e de Jagger -, foi sempre aos valores estéticos que extraí de minha paixão por João Gilberto que me reportei para construir uma perspectiva.
Possivelmente Bethânia gostava de Ray Charles tanto quanto eu, mas não se dedicava a ouvi-lo com tanta assiduidade nem dava às audições o caráter de quase pesquisa que eu me inclinava a lhes atribuir. Quando chegou a hora do tropicalismo - em que vários estilos extrovertidos foram convocados, e o estilo cool da bossa nova aparecia apenas eventualmente como um elemento a mais nas canções-colagens -, um dos seus primeiros anúncios foi feito por Bethânia chamando-me a atenção para o que ela considerava a "vitalidade" de Roberto Carlos e seus colegas de Jovem Guarda, e um dos principais elos de ligação entre o que fazíamos e o que estávamos passando a fazer consistia em meu gosto pela
música de Ray Charles.
Ninguém encontrará nada que mereça ser considerado sequer um resquício de influência de Ray Charles na produção tropicalista. E Maria Bethânia deve ter parecido representar a principio uma resistência contra o tropicalismo. Mas não é na área das semelhanças que se devem buscar as razões de esses dois nomes aparecerem juntos aqui neste jeito encontrado por mim para começar a historiar o movimento.
Bethânia já era famosíssima quando essas idéias que vieram desembocar no tropicalismo começaram a surgir em torno de nós. Ela havia sido chamada para substituir a cantora Nara Leão no espetáculo Opinião, um grande sucesso no Rio em 64. Eu estava passando as férias de verão daquele ano na fazenda da família de meu amigo Pedro Novis, no vale do Iguape, entre Santo Amaro e Cachoeira. Eu adorava Pedrinho e estava maravilhado com a fazenda. Mas com poucos dias de estadia vi-me de súbito obcecado pelo pensamento de Maria Bethânia. Eu simplesmente imaginava que ela precisava de mim com urgência e que isso tinha nexo com os shows do Vila Velha. Pedrinho mostrou-se duplamente incrédulo ao ouvir tal historia: não existem premonições e eu só poderia estar envergonhado de dizer que não queria mais ficar na fazenda. Eu, ao contrário, me sentia talvez na obrigação de deixá-la contra a minha vontade. De todo modo não havia meios de ir para Salvador: ele jamais diria a seu pai que uma viagem inesperada teria que ser feita por um motivo tão absurdo. Dormi inquieto. Na manhã seguinte chegaram de surpresa uns parentes de Pedrinho. Eles almoçariam e seguiriam viagem: estavam ali de passagem para Salvador. Decidi ir com eles, mas Pedrinho não aceitou. Sua indignação e a inconsistência do meu motivo me paralisaram. Vendo a caminhonete partindo tive certeza de que Bethânia tinha que me ter ao seu lado. Mas Pedrinho, ainda zangado, frisou o fato de que eu havia perdido a única oportunidade de pôr em prática a ideia sem sentido. De noite, à mesa do jantar, dr. Renato, o pai de Pedrinho, comunicou meio solenemente que teria de ir a Salvador e que partiria na manhã seguinte bem cedo. Era uma decisão nada usual: ao chegar no Iguape, ninguém da família queria sequer pensar em Salvador antes da data da volta aos estudos ou ao trabalho. Mas dr. Renato ficara febril de repente e estava preocupado. Ouvindo isso, falei nervosamente, quase sem pensar - e sem olhar absolutamente para Pedrinho: "Eu vou com o senhor". De manhãzinha eu partia do Iguape, onde deixava meu amigo entre irado e perplexo. Já na estrada, percebi o tamanho do ridículo da situação e intimamente quis voltar - o que eu nem imaginava comunicar a dr. Renato. Como a estrada passava por dentro de Santo Amaro, decidi saltar ali e ir visitar minha irmã Mabel, já que, agora totalmente cético, não queria chegar a Salvador. Surpreso dr. Renato fez a parada e se despediu de mim sorrindo intrigado. Quando me vi andando em direção à casa de Mabel, imaginei que na verdade Bethânia estaria ali e era por isso que eu não tinha seguido para Salvador. Mabel me recebeu surpresíssima de me ver à sua porta de manhã tão cedo. Perguntei-lhe logo se Bethânia estava com ela. Com o olhar espantado ela me informou que claro que não, que Bethânia nem sequer tinha planos de vir para Santo Amaro.
Relaxei - meio aliviado, meio decepcionado – e resolvi de uma vez por todas não pensar mais no assunto. Mas pouco antes do almoço - para renovada surpresa de Mabel - Bethânia chegou. Logo perguntei o que tinha havido, se ela precisava falar comigo. Ela achou minha pergunta um pouco difícil de entender: afinal, ela decidira vir para Santo Amaro de repente, sem nenhuma razão especial. Durante o almoço recebemos um telefonema da atriz (da Escola de Teatro) Nilda Spencer que queria transmitir um recado a Bethânia: Os produtores do Opinião convidavam-na para ir ao Rio. Fomos juntos para Salvador, onde já nos esperava um par de passagens de avião. No dia seguinte - mantendo o respeito à exigência de meu pai - eu estava no Rio tomando conta de Maria Bethânia.
Alguns meses depois da "revolução" - como era chamado oficialmente o golpe de Estado que tinha instaurado o governo militar-, o musical Opinião reunia um compositor de morro (Zé Kéti), um compositor rural do Nordeste (João do Vale) e uma cantora de bossa nova da Zona Sul carioca (Nara Leão) num pequeno teatro de arena de Copacabana, combinando o charme dos shows de bolso de bossa nova em casa noturna com a excitação do teatro de participação política. O espetáculo ao mesmo tempo coroava a tendência de alguns bossanovistas (Nara Leão entre eles) de promover a aproximação entre a música moderna brasileira de boa qualidade e a arte engajada - O movimento teve como precursor e incentivador O próprio Vinícius de Moraes, o primeiro e principal letrista da bossa nova, e apresentou, por vezes, excelentes resultados, tendo o Brasil, por causa disso, criado talvez a forma mais graciosa de canção de protesto do mundo -, e inaugurava o show de música teatralizado, entremeado de textos escolhidos na literatura brasileira e mundial ou escritos especialmente para a ocasião, que veio a desenvolver-se como uma das formas de expressão mais influentes na subseqüente historia da musica popular brasileira. A canção "Carcará", de João do Vale, era já o clímax do show na interpretação de Nara, mas Bethânia, com um talento dramático que Nara estava longe de possuir, parecia dar corpo à canção, que descrevia a vidência natural com que um gavião do tipo que habita o Nordeste - o carcará - ataca os borregos recém-nascidos. O refrão "pega, mata e come" era repetido a intervalos com crescente intensidade. Uma sugestão de comparação - "carcará, mais coragem do que homem" - era suficiente, no contexto, para transformar a canção num vago mas poderoso argumento revolucionário. Até hoje considero essa uma lindíssima canção, composta num modo menor muito freqüente na música nordestina – a primitiva Banda de "Pífanos" de Caruaru, mesmo nas versões que faz de canções tonais conhecidas, atua sempre dentro desse modo - que parece transmitir a paisagem da região tanto quanto o sentimento básico dos seus habitantes: um misto de melancolia e firmeza. À primeira audição ela me impressionou, mas me deixou por muito tempo intrigado com o sentido de sua mensagem. A recriação da cena de rapina era magistralmente lograda pela composição, e a altivez do grande pássaro ainda vinha elevada à categoria do mito pela linha "sai voando e cantando carcaráááááá", quando, na canção, se canta o canto da ave, que lhe dá nome.
Mas tudo me punha diante de pistas falsas: em meio a tantas outras canções em que se condenava o latifúndio e a exploração, a idéia da rapina parecia adequar-se á caracterização do explorador: no entanto, louvava-se a saúde da ave rapace e mesmo sugeria-se que do seu ato se extraísse uma lição. No meio do número, enquanto o trio acompanhante (violão, baixo e bateria) executava uma série ascendente de modulações (com os músicos repetindo, cada vez meio tom acima, a palavra carcará) a cantora recitava informações estatísticas sobre a crescente emigração de nordestinos para as grandes cidades do Sul, o que confirmava o caráter de protesto social da canção, ou pelo menos transformava em ameaça de revolução sangrenta a retomada do refrão uns dois tons mais alto: "pega, mata e come". Imediatamente percebi que Bethânia faria daquilo um numero extraordinariamente eficaz. E de fato, desde a reestreia do Opinião, "Carcará" com Bethânia se tornou um culto de plateias, politizadas e, desde que saiu num compacto, um sucesso de massas. Se alguma coisa se perdeu, na passagem da interpretação de Nara para a de Bethânia, foi o destaque do longo grito "carcaráááááá" que, frisando o vôo alto do pássaro, Nara fazia uma oitava acima - o que, em sua voz aguda e frágil, tornava-se quase lírico -, efeito que o contralto áspero de Bethânia não poderia (e ela sabia que não deveria tentar). No mais, a canção simplesmente revelou-se. E, como se tratasse, tanto para o público em geral quanto para os próprios autores e diretores do show, de uma revelação também daquela cantora, tendeu-se a atribuir a adequação da canção à intérprete mais ao fato de esta ser baiana - o que, do Rio para baixo, se confunde facilmente com ser nordestina - do que ao seu especial talento dramático e à sua personalidade guerreira. Eu, que conhecia a predileção de Bethânia por Noel Rosa e pelas canções de dor-de-cotovelo do final dos anos 50, sabia que o "Carcará" seria episódico em sua carreira: dessem-lhe uma canção "literária" à francesa ou um bolero de puteiro, contanto que tivessem potencial dramático e poder de identificação com sua sensibilidade, e ela faria - como de fato veio a fazer muitas vezes com exatamente esse tipo de material - arrebatadores números de palco, a música servindo ao drama como na ópera.
Mas, para todos que só começaram a conhecê-la então, Bethânia chegou com uma marca de regionalismo que para nós foi motivo, a princípio de surpresa curiosa e, em breve, de embaraços e mal- entendidos que, na verdade, nunca se desfizeram de todo. É óbvio que se o "Carcará" tivesse caído nas mãos da gaúcha Elis Regina, esta teria podido dar-lhe um tratamento mais próximo ao que lhe deu Bethânia do que àquele que lhe tinha dado Nara - enquanto a baiana Gal Costa teria ficado mais perto desta.
Isso, naturalmente, não era possível de ser pensado pelos produtores do show - um grupo de homens de teatro e intelectuais de esquerda -, que tinham, entre outras coisas, de arranjar uma linha de imagem para a nova estrela lançada. É curioso constatar que, para nós, a primeira experiência com as falsidades do marketing tenha sido proporcionada por um grupo de artistas anticapitalistas. Nara era uma moça típica da Zona Sul do Rio de Janeiro - branca, bonitinha e moderna. Era também uma celebridade da bossa nova quando Opinião foi idealizado: seu tipo, em contraste com os dois homens negros e semi-iletrados que dividiriam o palco com ela, tinha sido parte integrante da própria concepção do espetáculo. Bethânia, se não levarmos em conta a seleta platéia que frequentava o pequeno Teatro Vila Velha em Salvador, era desconhecida do público - e não era uma típica menina branca da classe média. Seus cabelos crespos e de cor indefinida, sua magreza, sua testa alta encimando um nariz aquilino, a própria voz de contralto, e até mesmo a difícil caracterização por faixa etária (Bethânia tinha dezessete anos, mas não parecia uma adolescente, embora as vezes parecesse uma menina) - criaram problemas para o diretor Augusto Boal, os autores e produtores Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar, Paulo Pontes e Armando Costa. Eles devem ter tido muita dificuldade em encontrar um modo de vesti-la, penteá-la e mesmo apresentá-la ao público. Em algum momento devem ter achado que seria preferível que a cantora indicada pela própria Nara - porque a indicação fora sua para a substituição - tivesse sido ou mais facilmente adequada ou muito menos talentosa.
As decisões que chegavam até nós de marcar uma prova de roupa ou um corte de cabelo, vinham carregadas de ansiedade e, se isso me tocava de modo algo desconfortável - a mim, que tinha 21 anos e estava ali apenas continuando a cumprir o compromisso que assumira com meu pai -, deve ter abalado Bethânia em áreas profundas de sua pessoa, mexendo com a vaidade, a insegurança, o orgulho íntimo. Mas ela reagiu heroicamente.
Era tranqüilo entre nós o sentimento de que sua integridade – nossa integridade - seria mantida em todos os níveis. Mas histórias como a de que ela, em Santo Amaro, teria sido ponta-esquerda - naturalmente frisando a palavra esquerda - de um time de futebol, o que não era verdade, apareceram nos informes biográficos que acompanharam a divulgação da estreante na imprensa. E o cabelo preso atrás num penteado que neutralizava as questões racial, etária e de beleza pessoal, e dava um ar de seriedade digna e um tanto dessexualizada, foi uma criação da equipe do show, mas passou a ser visto como algo que tinha vindo da Bahia com ela. Durante muito tempo. Bethânia teve dificuldades de se desvencilhar publicamente desse penteado (e da imagem de cantora de protesto nordestina) e, ao voltar ao Rio depois de uma temporada em São Paulo, onde trabalhou em outros espetáculos dirigidos pelo mesmo Augusto Boal do Opinião - e de um período de respiração na Bahia -, ela usou, em shows, uma peruca de longos cabelos lisos, e foi, pela primeira vez (porque isso se repetiu em diversas ocasiões ao longo dos anos), criticada por deixar as canções revolucionárias de "sua" região por um punhado de sambas-canções, boleros e baladas sentimentais. Um compacto duplo que ela gravou com musicas de Noel Rosa passou quase despercebido e, ao menos uma vez, eu mesmo ouvi de uma moça bem informada do Rio - a mulher de um produtor e diretor de cinema – o comentário (que já soava repetido) de que Bethânia não podia cantar Noel por ser baiana e ter uma sensibilidade de gente do sertão. Na verdade Bethânia veio a tornar-se - e é até hoje - uma rainha da canção brasileira, sobretudo pela densidade com que canta baladas de amor intenso, embora ela também cante, e com grande brilho, sambas "de escola" do Rio, sambas-de-roda da Bahia e eventualmente canções típicas do Nordeste.
Não foi como uma especialista em música nordestina que Maria Bethânia revelou-se a Nara Leão uma cantora de talento de quem ela se lembrou quando foi preciso encontrar alguém para substituí-la. Ela estava na Bahia no fim de uma viagem de passeio que era também, em parte, uma expedição de pesquisa. Nara era uma adorável criatura do tipo que só a Zona Sul do Rio pode produzir. Mas era também alguém especial dentro desse mundo. Sentia-se nela o gosto da liberdade que tinha sido conquistada com dificuldade e decisão. Por isso todos os
seus gestos e todas as suas palavras pareciam nascer de um realismo direto e sério, mas resultavam delicados e graciosos como os de uma menina tímida e passiva. Não se pode esquecer que ela, a essa altura, devia ter vinte anos. Seu nome estava ligado ao nascimento da bossa nova (dizia-se - e se diz até hoje - que o movimento nasceu em seu apartamento de Copacabana) e, embora a essa altura ela ainda não fosse um sucesso de massas, na Bahia nós conhecíamos sua lenda. E ela, por sua vez, fora informada da nossa existência, e marcou, através de Roberto Santana - que então produzia os nossos shows semi-amadores no Vila Velha e que parecia estar namorando com ela -, de vir assistir a um nosso ensaio.
Ensaio não houve, que eu lembre, mas ela veio nos encontrar num local próximo ao teatro e nós conversamos e cantamos. Havia já algum tempo que Nara vinha tentando ultrapassar o horizonte temático da bossa nova e fazer a música entrar na discussão dos problemas sociais e políticos que o novo teatro brasileiro e o Cinema Novo abordavam com frequência e paixão - e com isso realizar, para além de sua mitológica relação com a gênese da bossa nova, uma intervenção em nossa música popular de que ela fosse realmente a protagonista. E assim foi.
O próprio espetáculo Opinião fora inspirado em seu gesto de voltar a atenção para o samba de morro e a musica do sertão nordestino - e para as novas canções de cunho social que ela, mais do que ninguém, instigava os compositores a fazer. Mais ainda, foi um disco seu intitulado Opinião (o nome de um samba de Zé Kéti) que sugeriu o nome e o formato do show. Entre nós, na Bahia, sua presença revelou-se encantadora e um tanto enigmática: ela fazia perguntas muito diretas em voz muito mansa e falava de seus interesses entusiasmantes num tom cético que nós interpretávamos creio que acertadamente como um
misto de discrição e precaução.
No dia em que ela veio nos ver, íamos ouvir uma gravação do mais recente de uma série de shows que tínhamos apresentado no Vila Velha desde a sua inauguração. Antes de o Opinião ser concebido, nós tínhamos inventado, em Salvador, nossa própria versão de show de música com conceito, ideologia e literatura. Diferentemente do Opinião, nossos espetáculos pretendiam, além de fazer referências às questões políticas e sociais, criar uma perspectiva histórica que nos situasse no desenvolvimento da música popular brasileira. Os títulos dizem muito: Nós, por exemplo, o primeiro, era um concerto de apresentação de jovens músicos quase todos absolutamente desconhecidos - o "por exemplo" aí queria dizer não que nós éramos um modelo a ser seguido, um exemplo, mas que tínhamos certeza de que havia muitos outros, toda uma geração a que nós, "por exemplo", pertencíamos, e que devia sua existência ao aparecimento da bossa nova. O título do segundo show, Nova bossa velha, velha bossa nova, mostra nossa intenção de inserir o movimento numa visão de longo alcance da história da canção no Brasil.
Tínhamos acolhido a sugestão de João Gilberto naquilo que ela parecia ter de mais profundo: não nos satisfazíamos com a visão demasiadamente simplificada e imediatista dos que propunham, fosse uma disparada de falsa modernização jazzificante da nossa música, fosse uma sua utilização política propagandística, fosse uma mistura das duas coisas. Aceitávamos e incentivávamos tudo isso e, mais importante, admirávamos e amávamos muitas das obras que nasciam desses desdobramentos da bossa nova. Mas toda a perspectiva crítica nos parecia empobrecida pelo esquecimento de uma linha evolutiva que tinha possibilitado o surgimento de João, Jobim e Vinícius pela desatenção à nobilíssima linhagem a que eles se filiavam. Esse segundo espetáculo era quase didático quanto a isso.
Fazíamos shows coletivos, com números individuais que caracterizavam bem o estilo de cada um de nós, e alguns números de grupo - um duo de Bethânia e Gal; um vocal com todos os participantes modernizando um samba-maxixe arcaico: o "Samba da bênção" de Baden e Vinícius distribuído entre os participantes, que substituíam as partes faladas por textos novos condizentes consigo, com a turma e com suas pretensões etc -, mas já planejávamos realizar espetáculos individuais. Ao lado de Nara, naquele dia, tentávamos ouvir algo da precária gravação que alguém tinha feito do Nova bossa velha, velha bossa nova, e começávamos a projetar o espetáculo solo de Bethânia - éramos unânimes na opinião de que esta, por sua potência cênica, deveria iniciar a série dos individuais. Nara não só mostrou- se interessada por tudo o que fazíamos e dizíamos como ofereceu a Bethânia canções inéditas de sambistas do Rio, sambas que ela própria tinha acabado de gravar e que lhe pareceram adequados às intenções de Bethânia. Entre essas canções, estava "Opinião", o samba de Zé Kéti que inspiraria o famoso show. Um outro samba magnífico, também de Zé Kéti, "Acender as velas", foi transmitido por Nara a Bethânia. Assim, entre sambas-canções de Noel Rosa e de Antônio Maria, algum baião, alguma marchinha antiga de Carnaval cantada em ritmo lento e novidades compostas por nós mesmos, Bethânia, em seu primeiro show individual, cantou alguns dos temas centrais do espetáculo para o qual ela seria convidada e que a tornaria nacionalmente famosa.
O desprendimento de Nara nesse episódio pode ser em parte explicado pela atmosfera de busca coletiva e de mútua colaboração que marcou as relações entre 05 criadores de música popular no Brasil desde o final do período áureo da bossa nova até o final do período áureo do tropicalismo - e que é ainda marca distintiva da MPB -, mas o que ressalta aqui são as características pessoais de Nara, sua maneira espiritualmente aristocrática de ser prática e objetiva, as delicadas cintilações de seu antiestrelato. Claro que ela foi, então e depois, uma estrela verdadeira - ao lado de Chico Buarque no lançamento de "A banda", ao lado dos tropicalistas na hora da primeira batalha ou sozinha primeiro mudando e depois relendo a bossa nova, e mesmo afastada da profissão para dedicar-se ao casamento e a uma nova vida de estudante universitária (com sua graça de menina, ela não contrastava com suas colegas dez ou quinze anos mais novas): Nara brilhou no Brasil até morrer de um câncer no cérebro em 89. Diante do temperamento de Bethânia, ela costumava reagir com um humor percebia carinho e prova de conhecimento íntimo do estilo pessoal da outra, e no qual o tema da competição era apenas um tempero a mais na composição cômica da caricatura. Ela dizia, por exemplo: "Quando venho te ver, Bethânia, penso logo em velas acesas, rosas vermelhas e tapetes especiais", e Bethânia ria desse seu retrato de prima-dona, sabendo que a eterna menina em sua frente, para quem tudo era simples e claro, sabia que ela própria era um gigante da história da nossa musica - e que o Brasil sempre saberia disso.
Apesar do entusiasmo com que eu atuava nos shows do Teatro Vila Velha - cantando, tocando um pouco de violão e, sobretudo, concebendo e fazendo a "direção geral" (a direção musical ficava por conta de Gilberto Gil e Alcivando Luz) -, não estava nos meus planos profissionalizar-me em música popular. Ter ido para o Rio com Bethânia, no entanto, tornou isso quase inevitável. Minha canção "De manhã", que, entre algumas outras composições do grupo baiano, ela cantou a pedido dos produtores do Opinião, foi a escolhida por estes para representar o ambiente musical de onde ela vinha, e assim entrou no repertório do show e virou lado B do compacto best-seller do "Carcará". Muita gente de música apreciava a canção - para minha surpresa, pois eu, embora a achasse bela, a considerava muito primária - e ela acabou sendo gravada pela mais clássica - e classuda - das cantoras tradicionais brasileiras, a divina Elisete Cardoso, e pelo mais popularesco dos filhos jazzísticos da bossa nova, o musicalíssimo Wilson Simonal.
Curiosamente essa canção delicada, cuja letra que fala de um amor puro ao nascer do dia me fora sugerida por um samba-de- roda de Santo Amaro, foi composta sobre a alternância de um lá menor com um ré sétima, o que a leva para o modo menor nordestino, que aparece também no "Carcará". Esse modo nada ten a ver com o samba-de-roda que inspirou a letra - nem com os sambas-de-roda eu geral ou com toda a música do recôncavo da Bahia (na verdade o modalismo nordestino chegava a nós mais através do carioca Edu Lobo do que da divisa da Bahia com Pernambuco) -, mas a sua mistura com a bossa nova trazia para esta um charme diferente e isso contribuiu tanto para a atração que essa minha canção exerceu sobre os músicos quanto para a caracterização das origens musicais de Bethânia que os autores do Opinião buscavam. O fato é que, a partir daí, a ilusão de que a música seria algo provisório em minha vida passou a ser reiteradas vezes desfeita.
Quando o Opinião foi para São Paulo, eu segui acompanhando Bethânia, mas já tinha em mente tentar convencer meu pai a permitir que ela ficasse sob a responsabilidade de Augusto Boal, o diretor do espetáculo, em quem eu confiava. Meu pai não era de modo nenhum um homem rígido - e de fato mostrou-se extremamente receptivo às escolhas, limitações e peculiaridades tanto profissionais quanto existenciais dos filhos, exigindo apenas que tudo sempre se desse com respeito e honestidade. Ele e minha mãe, ambos nascidos em Santo Amaro no início do século e tendo vivido sempre ali, nunca reagiram às mudanças comportamentais por que o mundo passou enquanto nós crescíamos, embora nunca tivessem se identificado - nem permitido que nós nos identificássemos - com a vulgaridade que vinha no bojo dessas transformações. As restrições às saídas noturnas de Bethânia no início de sua adolescência e a exigência de minha permanência junto a ela no início de sua vida profissional foram o modo de meu pai, tomando o máximo de cuidado, permitir que nós fizéssemos o que tínhamos que fazer. Depois da temporada em São Paulo, quando o Opinião veio se apresentar na Bahia, eu lhe falei sobre a possibilidade de deixar Bethânia sob a responsabilidade de Boal, e ele, que então conheceu o diretor pessoalmente, concordou. Mas Boal planejava, para depois de encerrada a carreira do Opinião, fazer um espetáculo novo com Bethânia e, desta vez, com seus companheiros de grupo. Voltei, portanto, para São Paulo, onde vivi uma experiência sofrida mas muito ilustrativa. O governo militar que se instaurara com o golpe em 64 só é sentido como não ditatorial em retrospecto e se comparado à dureza do regime que passou a vigorar a partir de 68. Em 65 procurava-se meios de gritar "abaixo a ditadura" e, bem antes de começarem a crescer os movimentos estudantis que levaram multidões à rua, a produção cultural, sobretudo o teatro, tomava a si a responsabilidade de veicular o protesto. O critico literário e poeta Roberto Schwarz, um intelectual de formação marxista, escreveu, em 68, um ensaio em que, ao lado de uma tentativa de interpretação do tropicalismo, descreve o tipo de cumplicidade entre palco e platéia que tinha se desenvolvido no período, e mostra o quanto a posição de esquerda era hegemônica no meio cultural brasileiro.
Augusto Boal, o carioca diretor do grupo paulista Teatro de Arena, era um expoente desse teatro participativo e, embora o seu Opinião, apesar de muito bom, não me tivesse parecido melhor do que os nossos próprios shows do Vila Velha, ele era um homem brilhante e falava sobre a personalidade teatral que mais interessava aos brasileiros de então - Bertolt Brecht - com mais segurança e sinceridade do que qualquer outro que eu tivesse ouvido antes, sobretudo ele acabara de estrear um novo espetáculo em São Paulo - Arena conta Zumbi -, que me encantara. O Zumbi também era um musical, mas, diferentemente do Opinião, não era um apanhado de canções diversas entremeadas de textos e apresentadas por cantores, e sim uma peça concebida em conjunto com um compositor cujas canções inéditas eram cantados por atores. Nesse sentido, se o Opinião se assemelhava aos shows de bolso dos clubes noturnos, o Zumbi se assemelhava aos musicais da Broadway. Não que ele não fosse também "de bolso": na arena do minúsculo teatro do grupo no centro de São Paulo, com um elenco de cerca de dez pessoas, todas com roupas idênticas na forma e variando apenas na cor, os personagens passando de ator a ator - o sistema do curinga - , Arena co ta Zumbi era um primor de economia de meios, uma lição de como obter efeitos com o máximo de despojamento. Mas os efeitos almejados e assim obtidos, bem como as licenças de estilização tanto da cena quanto da música, eram da natureza dos encontradiços nos musicais convencionais: o resultado era, para mim como para o imenso publico que lotou o teatrinho por longos meses, irresistível. Recentemente a atriz Fernanda Montenegro, freqüentemente considerada a maior atriz brasileira e, de todo modo, uma grande artista que além de encantar-nos com o que faz ainda da exemplos de sabedoria orientando-nos com uma visão sempre equilibrada mas nunca medíocre das coisas, disse numa entrevista que fala-se muito na importância do teatro tropicalista de José Celso Martinez Corrêa e que a memória sempre celebra sua montagem de O rei da vela mas que o espetáculo mais importante da modernização do teatro brasileiro tinha sido Arena conta Zumbi. A mera demonstração do desejo de compensar essa injustiça histórica de que o Zumbi era vítima apresentou-se -me como algo louvável: senti uma grande e imediata alegria diante das palavras de Fernanda. De fato, não é pouca coisa que se tenha realizado um musical coerente e bem amarrado no Brasil - algo que ainda hoje parece uma meta inalcançável para os brasileiros. Noel Rosa e Ary Barroso, Dorival Caymmi e Lamartine Babo sonharam com isso - Edu Lobo, o jovem autor da música do Zumbi, conseguiu realizar o sonho em 65, na sua colaboração com Boal e Gianfrancesco Guarnieri, os autores do texto. Mas depois esquecemos, voltamos a lamentar o fato de termos tantos compositores populares maravilhosos e não conseguirmos organizar uma tradição de musicais no teatro ou no cinema que nos enriqueça a vida com encantamentos. As tentativas de Chico Buarque nesse sentido, ainda que louváveis, antes atestam esse esquecimento do que retomam o viço das conquistas. O teatro de Arena contava a história de Zumbi dos Palmares, o líder escravo negro que criou o maior e mais famoso quilombo - aldeia de ex-escravos rebelados - da história da escravidão no Brasil. A ideia de um território livre conquistado por ex-cativos corajosos se prestava naturalmente a todo tipo de alusão ao governo militar e à nossa falta de liberdade sob ele. Mas a glamourização da heroicidade do personagem central - que, no entanto, era representado rotativamente por cada um dos atores, numa homenagem às ideias coletivistas -, realçada pela graça da música, abria como que uma clareira agradável em nossas mentes. À época, teria soado como uma verdadeira blasfêmia - ou um esnobismo - alguém dizer bem do Zumbi nesses termos: eu próprio me dava motivos politicamente mais corretos do que esses para meu entusiasmo, embora não escondesse totalmente de mim mesmo a importância profunda desses aspectos "frívolos" e gostasse do Zumbi como quem gosta de The sound of music ou do Peter Pan de Disney. Um espectador culto de esquerda teria preferido uma desaprovação da peça motivada pela irresponsabilidade historiográfica dos autores ou pela simplificação "maniqueísta" (a palavra aparecia muito no período) dos enfrentamentos do povo heróico com seus algozes do que esse tipo de louvor.
A liberdade de gostar do Zumbi do modo como eu gostava, ao mesmo tempo aproximou-me e afastou-me de Boal. Para o espetáculo que planejou fazer conosco - cujo título seria Arena canta Bahia -, ele nos encomendou canções especiais, uma seleção de canções já existentes relativas à Bahia e sugestões para um roteiro.
Considerei, e ainda considero, perfeitamente justa a sua recusa da misteriosa e esquisita história infantil que, em conjunto, escolhemos como base para a criação da peça: levados pela insinuação de Boal de que deveríamos partir de uma ideia folclórica baiana para chegar a uma peça moderna temperada com muita crítica social - e também pela confusão de tentar escrever em grupo -, nós optamos por uma adaptação da macabra história da menina enterrada viva pela madrasta e que, de por sob a terra onde brotam seus cabelos como capim sedoso, canta todos os dias para o capineiro que tenta em vão dar fim ao teimoso capinzal que renasce diariamente à sombra de uma frondosa figueira: "Capineiro de meu pai/não me corte meus cabelos/ que minha mãe penteava/ e minha madrasta me enterrou/ pelo figo da figueira/ que o passarinho bicou". Era uma história fascinante e que, como Boal tinha sugerido, aparentemente só era conhecida por nós, baianos (na verdade, curiosamente li há pouco tempo que a mãe de Heinrich e Thomas Mann - que era brasileira da cidade litorânea fluminense de Parati - contava uma variante dessa história aos filhos, traduzindo-a para o alemão, exceto pela canção que, ao que parece, era a única coisa que ela havia guardado do português de sua infância), mas não sei que tipo de crítica social nós tínhamos a esperança de enfiar nela. O resultado foi uma tolice que nada tinha a ver com o mundo de Boal. Antes de mostrar a ele nossos esboços eu já sabia que nada daquilo seria do seu interesse ou teria consistência para, mesmo não o sendo, impressioná-lo: o único procedimento que me ocorreu para enriquecer o material foi tentar enfeitá-lo com imitações canhestras das aparências do estilo de Lorca. Boal considerou - com extrema delicadeza - que tendíamos para uma atmosfera demasiado lírica e, abandonando de todo as nossas ideias de enredo, passou a escolher, entre as canções que selecionamos, um repertório que lhe permitisse encenar algo condizente com o seu prestigiado teatro de luta. Duas coisas me saltaram à vista: ele não aceitou uma só canção de Dorival Caymmi, de quem, naturalmente, tínhamos sugerido muitas; e, diante das minhas restrições aos arranjos cheios de tiques - nitidamente inspirados nos números de Elis Regina no programa de TV O Fino da Bossa - que encontravam nele fácil acolhida quando sugeridos pelos músicos, ele se justificou dizendo mais ou menos o seguinte: "Você pensa em termos de buscar uma pureza regional e por isso reage a esses efeitos, eu penso em toda uma juventude urbana que eu preciso atingir e que entende essa linguagem". Dois anos mais tarde, no meio do furacão tropicalista, eu muitas vezes encontrava na lembrança dessas palavras argumento para reafirmar minha posição.
Enquanto Boal, em defesa das opções estéticas da esquerda, desancava o nosso trabalho num manifesto assinado e distribuído à entrada de uma faculdade em São Paulo aonde nós, os tropicalistas, tínhamos sido chamados para um debate sobre o movimento. O fato é que, em 65, participei com entusiasmo do Arena canta Bahia, pois era estimulante observar a mestria de Boal em compor desenhos moventes com nossos corpos, e era uma felicidade estar ao lado de Bethânia, Gil, Gal, Tom Zé e Piti, mas disse a todos eles - e repeti inúmeras vezes para mim mesmo – que devia haver algo fundamentalmente errado em se montar um musical sobre a Bahia em que não havia lugar para uma canção de Caymmi. As canções escolhidas tinham em comum uma caracterização nordestina que as afastava do estilo propriamente baiano - da graça, do gosto, da visão de mundo que vige na região do recôncavo e na Cidade do Salvador. Mas o Nordeste do "Carcará" era já marca da persona pública de Bethânia e da música de protesto em geral. Eu, no entanto, sonhava a nossa intervenção na música popular brasileira radicalmente vinculada à postura de João Gilberto para quem Caymmi era o gênio da raça. João, embora nascido e criado no sertão baiano vizinho a Pernambuco, sugeria uma linha mestra do desenvolvimento do samba que tinha sua origem no samba -de-roda do recôncavo e seu ponto de maturação no samba urbano carioca - e recusava estrategicamente exotismos regionais. Mas a voz de um vaqueiro gemendo ou a vida estridente de um caipira estavam mais próximas do gosto que eu atribuía a João Gilberto do que a subsofisticada volta ao samba ruidoso via bateria jazzística ou as composições pretensiosas a partir de escalas nordestinas.
Doía-me ouvir a voz crua de Bethânia empacotada nas convenções de samba-jazz do Beco das Garrafas (a rua de Copacabana onde se desenvolveu o estilo de que O Fino da Bossa era, na TV Record de São Paulo, extensão e ponto de divulgação).
Arena canta Bahia estreou num teatro relativamente grande, o TBC, antigo palco do Teatro Brasileiro de Comédia, a grande e bem-sucedida empreitada paulista dos anos 50 no sentido de criar uma companhia de alto nível técnico e intelectual para o teatro brasileiro, mas não teve nem de longe o sucesso de Arena conta Zumbi. A diferença na receptividade do público era merecida: nosso espetáculo era limpo e simpático, e os valores individuais apareciam como promessas excitantes (lembro com ternura da admiração que Nara Leão externou pelos meus dotes cênicos), mas via-se que o que movia os artistas em cena era uma mistura das marcas dadas pelo diretor como algo abstrato com uma emoção cuja natureza esse mesmo diretor não parecia captar. Sobretudo, se as estilizações musicais ao gosto da época não atrapalhavam o Zumbi, eram mortais para um espetáculo em que quatro autores e duas cantoras novos e chegados da província com idéias originais eram apresentados a um público de teatro que já tinha seus favoritos na música popular - ainda que essas estilizações não estivessem aqui tão marcadamente presentes e algo do nosso próprio gosto tivesse sido timidamente introduzido. O Zumbi era, se quisermos esquecer a força de sua resultante originalidade, uma espécie de musical off-Broadway à beira de passar a on-Broadway: o Arena canta Bahia só nos levava a pensar que um show singelo como os do Vila Velha teria sido um nosso melhor cartão de visita.
Lembro de um começo de discussão com Boal por causa de um outro espetáculo musical que tinha estreado no Rio e a respeito do qual nossas opiniões divergiam diametralmente. Era o inesquecível Rosa de Ouro, que revelou Paulinho da Viola (aos 24 anos) e Clementina de Jesus (aos sessenta), e trouxe de volta a veterana Araci Cortes. Para Boal, esse espetáculo que me comovia pelo modo poético como apresentava músicos autênticos da mais refinada tradição de samba carioca, era "folclórico". Naturalmente eu era tímido demais para argumentar contra Boal, a quem respeitava e admirava - e ele demasiadamente despreocupado das minhas opiniões para encorajar uma verdadeira discussão. Mas me pareceu que descartar um espetáculo como aquele seria jogar fora uma oportunidade rara de ver exposto claramente o que sugerimos como beleza possível para nós. E também que o nacionalismo dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reação ao imperialismo norte-americano, pouco ou nada tinha a ver com gostar das coisas do Brasil ou - o que mais me interessava - com propor, a partir do nosso jeito próprio, soluções originais para os problemas do homem e do mundo. A solução única já era conhecida e chegara aqui pronta: alcançar o socialismo. E para isso todo truque era bom. Qualquer interesse em refinar-se a sensibilidade - fosse no aprofundamento do contato com nossas formas populares tradicionais, fosse na atitude vanguardista experimental - era considerado um desvio perigoso e irresponsável.
Esta lembrança é vaga e diminuta, mas persistente: uma noite, no apartamento da atriz-cantora Marilia Medalha, alguém mencionou o nome de Décio Pignatari (talvez tenham dito que ele falara mal do Zumbi) e, respondendo a uma pergunta minha, Boal descreveu em poucas palavras cheias de desprezo uma "alienada" teoria de revolucionar pela forma que, a julgar pelo seu tom, deveria naturalmente me parecer tão digna de esquecimento quanto a ele. Por causa do sobrenome Pignatari - o mesmo de uma família de imigrantes italianos que se tornou famosa pelo acúmulo de riquezas - julguei que o poeta Décio fosse um milionário. Só me lembro desse episódio porque justamente o esboço de teoria "formalista" que aparecera na crítica me intrigou e me atraiu. Essas discrepâncias com o gosto e as posições de Boal eram um fator a mais a trazer infelicidade à minha estada em São Paulo. Eu não apenas estava numa cidade que me parecia feia e inóspita: eu também descobria que minha visão das coisas nem sequer poderia insinuar-se nos ambientes geradores de cultura, e que a chegada de Bethânia ao estrelato, se tinha aberto portas para mim no terreno profissional, não necessariamente significava que a intervenção estética que me parecia correta se fazia possível. Isso tudo, no entanto - e apesar de todo o sofrimento - , mostra, a meu ver, a riqueza da experiência com Boal. Ela serviu como estágio de sociabilidade num grande centro, além de ter sido um período de adestramento cênico. As divergências de visão e de atitude que aí aparecem em embrião desenvolveram-se e aprofundaram-se muito em dois anos, e durante o tropicalismo tínhamos posições ostensivamente antagônicas, mas em nenhum momento perdi de vista a grandeza e a importância de Boal e do Arena. E estou seguro de que o que quer que Boal tenha visto em mim que o levou a imaginar uma montagem de Hamlet com ênfase no aspecto político e comigo no papel-título - porque ele me sugeriu isso - não se perdeu para sempre dentro dele.
É tocante também pensar como Bethânia, que a essa altura já tinha conhecido um grande sucesso nacional - e cujo temperamento levou sempre muita gente a atribuir-lhe um estrelismo de diva de ópera - , dividiu o palco com seus companheiros desconhecidos do público, obedecendo a uma decisão corajosa de Boal, sem criar embaraços ou demonstrar ansiedade. De fato, depois da carreira de Arena canta Bahia, Boal dirigiu outro musical - Tempo de guerra -, tendo Bethânia à frente do mesmo elenco de baianos. Exceto eu, que, com saudades da Bahia e de minha namorada que ficara lá - Dedé, uma estudante de dança com quem me casaria dois anos depois, em pleno tropicalismo -, deixei São Paulo e as dúvidas a respeito das posições estéticas de Boal para trás, e voltei a Salvador para morar, namorar e planejar preguiçosamente um futuro de cineasta ou professor: minha incapacidade de orientar os arranjos segundo o meu gosto e minhas idéias, o que sempre atribuí à mediocridade de um talento musical que cria impossível desenvolver, me fazia sonhar outra vez com um futuro afastado da música. Embora a essa altura - e justamente por causa dos problemas que tive de enfrentar em São Paulo - já não me parecesse contraditório que eu gostasse de João Gilberto e de Ray Charles com quase igual intensidade e, desejando que meus antigos colegas da música também pudessem saltar de um a outro de
preferência a ficarem presos a um sub-pré-bebop homogeneizado, eu me preparasse para estar à altura de acolher a próxima futura sugestão de Bethânia no sentido de prestar mais atenção em Roberto Carlos.
Mas eu mantive minha hierarquia: João era a informação principal, a primeira referência - além de ser a fonte central de fruição estética. De fato, quando chegou para mim a hora de Guimarães Rosa ou de Proust, a hora de Godard a hora de Eisenstein, de Stendhal, de Lorca ou de Joy ce e de Webern e Bach e Mondrian e Velásquez e Ly gia Clark - mas também a hora de Warhol e da revisão de Hitchcock, a hora de Dy lan, de Lennon e de Jagger -, foi sempre aos valores estéticos que extraí de minha paixão por João Gilberto que me reportei para construir uma perspectiva.
Possivelmente Bethânia gostava de Ray Charles tanto quanto eu, mas não se dedicava a ouvi-lo com tanta assiduidade nem dava às audições o caráter de quase pesquisa que eu me inclinava a lhes atribuir. Quando chegou a hora do tropicalismo - em que vários estilos extrovertidos foram convocados, e o estilo cool da bossa nova aparecia apenas eventualmente como um elemento a mais nas canções-colagens -, um dos seus primeiros anúncios foi feito por Bethânia chamando-me a atenção para o que ela considerava a "vitalidade" de Roberto Carlos e seus colegas de Jovem Guarda, e um dos principais elos de ligação entre o que fazíamos e o que estávamos passando a fazer consistia em meu gosto pela
música de Ray Charles.
Ninguém encontrará nada que mereça ser considerado sequer um resquício de influência de Ray Charles na produção tropicalista. E Maria Bethânia deve ter parecido representar a principio uma resistência contra o tropicalismo. Mas não é na área das semelhanças que se devem buscar as razões de esses dois nomes aparecerem juntos aqui neste jeito encontrado por mim para começar a historiar o movimento.
Bethânia já era famosíssima quando essas idéias que vieram desembocar no tropicalismo começaram a surgir em torno de nós. Ela havia sido chamada para substituir a cantora Nara Leão no espetáculo Opinião, um grande sucesso no Rio em 64. Eu estava passando as férias de verão daquele ano na fazenda da família de meu amigo Pedro Novis, no vale do Iguape, entre Santo Amaro e Cachoeira. Eu adorava Pedrinho e estava maravilhado com a fazenda. Mas com poucos dias de estadia vi-me de súbito obcecado pelo pensamento de Maria Bethânia. Eu simplesmente imaginava que ela precisava de mim com urgência e que isso tinha nexo com os shows do Vila Velha. Pedrinho mostrou-se duplamente incrédulo ao ouvir tal historia: não existem premonições e eu só poderia estar envergonhado de dizer que não queria mais ficar na fazenda. Eu, ao contrário, me sentia talvez na obrigação de deixá-la contra a minha vontade. De todo modo não havia meios de ir para Salvador: ele jamais diria a seu pai que uma viagem inesperada teria que ser feita por um motivo tão absurdo. Dormi inquieto. Na manhã seguinte chegaram de surpresa uns parentes de Pedrinho. Eles almoçariam e seguiriam viagem: estavam ali de passagem para Salvador. Decidi ir com eles, mas Pedrinho não aceitou. Sua indignação e a inconsistência do meu motivo me paralisaram. Vendo a caminhonete partindo tive certeza de que Bethânia tinha que me ter ao seu lado. Mas Pedrinho, ainda zangado, frisou o fato de que eu havia perdido a única oportunidade de pôr em prática a ideia sem sentido. De noite, à mesa do jantar, dr. Renato, o pai de Pedrinho, comunicou meio solenemente que teria de ir a Salvador e que partiria na manhã seguinte bem cedo. Era uma decisão nada usual: ao chegar no Iguape, ninguém da família queria sequer pensar em Salvador antes da data da volta aos estudos ou ao trabalho. Mas dr. Renato ficara febril de repente e estava preocupado. Ouvindo isso, falei nervosamente, quase sem pensar - e sem olhar absolutamente para Pedrinho: "Eu vou com o senhor". De manhãzinha eu partia do Iguape, onde deixava meu amigo entre irado e perplexo. Já na estrada, percebi o tamanho do ridículo da situação e intimamente quis voltar - o que eu nem imaginava comunicar a dr. Renato. Como a estrada passava por dentro de Santo Amaro, decidi saltar ali e ir visitar minha irmã Mabel, já que, agora totalmente cético, não queria chegar a Salvador. Surpreso dr. Renato fez a parada e se despediu de mim sorrindo intrigado. Quando me vi andando em direção à casa de Mabel, imaginei que na verdade Bethânia estaria ali e era por isso que eu não tinha seguido para Salvador. Mabel me recebeu surpresíssima de me ver à sua porta de manhã tão cedo. Perguntei-lhe logo se Bethânia estava com ela. Com o olhar espantado ela me informou que claro que não, que Bethânia nem sequer tinha planos de vir para Santo Amaro.
Relaxei - meio aliviado, meio decepcionado – e resolvi de uma vez por todas não pensar mais no assunto. Mas pouco antes do almoço - para renovada surpresa de Mabel - Bethânia chegou. Logo perguntei o que tinha havido, se ela precisava falar comigo. Ela achou minha pergunta um pouco difícil de entender: afinal, ela decidira vir para Santo Amaro de repente, sem nenhuma razão especial. Durante o almoço recebemos um telefonema da atriz (da Escola de Teatro) Nilda Spencer que queria transmitir um recado a Bethânia: Os produtores do Opinião convidavam-na para ir ao Rio. Fomos juntos para Salvador, onde já nos esperava um par de passagens de avião. No dia seguinte - mantendo o respeito à exigência de meu pai - eu estava no Rio tomando conta de Maria Bethânia.
Alguns meses depois da "revolução" - como era chamado oficialmente o golpe de Estado que tinha instaurado o governo militar-, o musical Opinião reunia um compositor de morro (Zé Kéti), um compositor rural do Nordeste (João do Vale) e uma cantora de bossa nova da Zona Sul carioca (Nara Leão) num pequeno teatro de arena de Copacabana, combinando o charme dos shows de bolso de bossa nova em casa noturna com a excitação do teatro de participação política. O espetáculo ao mesmo tempo coroava a tendência de alguns bossanovistas (Nara Leão entre eles) de promover a aproximação entre a música moderna brasileira de boa qualidade e a arte engajada - O movimento teve como precursor e incentivador O próprio Vinícius de Moraes, o primeiro e principal letrista da bossa nova, e apresentou, por vezes, excelentes resultados, tendo o Brasil, por causa disso, criado talvez a forma mais graciosa de canção de protesto do mundo -, e inaugurava o show de música teatralizado, entremeado de textos escolhidos na literatura brasileira e mundial ou escritos especialmente para a ocasião, que veio a desenvolver-se como uma das formas de expressão mais influentes na subseqüente historia da musica popular brasileira. A canção "Carcará", de João do Vale, era já o clímax do show na interpretação de Nara, mas Bethânia, com um talento dramático que Nara estava longe de possuir, parecia dar corpo à canção, que descrevia a vidência natural com que um gavião do tipo que habita o Nordeste - o carcará - ataca os borregos recém-nascidos. O refrão "pega, mata e come" era repetido a intervalos com crescente intensidade. Uma sugestão de comparação - "carcará, mais coragem do que homem" - era suficiente, no contexto, para transformar a canção num vago mas poderoso argumento revolucionário. Até hoje considero essa uma lindíssima canção, composta num modo menor muito freqüente na música nordestina – a primitiva Banda de "Pífanos" de Caruaru, mesmo nas versões que faz de canções tonais conhecidas, atua sempre dentro desse modo - que parece transmitir a paisagem da região tanto quanto o sentimento básico dos seus habitantes: um misto de melancolia e firmeza. À primeira audição ela me impressionou, mas me deixou por muito tempo intrigado com o sentido de sua mensagem. A recriação da cena de rapina era magistralmente lograda pela composição, e a altivez do grande pássaro ainda vinha elevada à categoria do mito pela linha "sai voando e cantando carcaráááááá", quando, na canção, se canta o canto da ave, que lhe dá nome.
Mas tudo me punha diante de pistas falsas: em meio a tantas outras canções em que se condenava o latifúndio e a exploração, a idéia da rapina parecia adequar-se á caracterização do explorador: no entanto, louvava-se a saúde da ave rapace e mesmo sugeria-se que do seu ato se extraísse uma lição. No meio do número, enquanto o trio acompanhante (violão, baixo e bateria) executava uma série ascendente de modulações (com os músicos repetindo, cada vez meio tom acima, a palavra carcará) a cantora recitava informações estatísticas sobre a crescente emigração de nordestinos para as grandes cidades do Sul, o que confirmava o caráter de protesto social da canção, ou pelo menos transformava em ameaça de revolução sangrenta a retomada do refrão uns dois tons mais alto: "pega, mata e come". Imediatamente percebi que Bethânia faria daquilo um numero extraordinariamente eficaz. E de fato, desde a reestreia do Opinião, "Carcará" com Bethânia se tornou um culto de plateias, politizadas e, desde que saiu num compacto, um sucesso de massas. Se alguma coisa se perdeu, na passagem da interpretação de Nara para a de Bethânia, foi o destaque do longo grito "carcaráááááá" que, frisando o vôo alto do pássaro, Nara fazia uma oitava acima - o que, em sua voz aguda e frágil, tornava-se quase lírico -, efeito que o contralto áspero de Bethânia não poderia (e ela sabia que não deveria tentar). No mais, a canção simplesmente revelou-se. E, como se tratasse, tanto para o público em geral quanto para os próprios autores e diretores do show, de uma revelação também daquela cantora, tendeu-se a atribuir a adequação da canção à intérprete mais ao fato de esta ser baiana - o que, do Rio para baixo, se confunde facilmente com ser nordestina - do que ao seu especial talento dramático e à sua personalidade guerreira. Eu, que conhecia a predileção de Bethânia por Noel Rosa e pelas canções de dor-de-cotovelo do final dos anos 50, sabia que o "Carcará" seria episódico em sua carreira: dessem-lhe uma canção "literária" à francesa ou um bolero de puteiro, contanto que tivessem potencial dramático e poder de identificação com sua sensibilidade, e ela faria - como de fato veio a fazer muitas vezes com exatamente esse tipo de material - arrebatadores números de palco, a música servindo ao drama como na ópera.
Mas, para todos que só começaram a conhecê-la então, Bethânia chegou com uma marca de regionalismo que para nós foi motivo, a princípio de surpresa curiosa e, em breve, de embaraços e mal- entendidos que, na verdade, nunca se desfizeram de todo. É óbvio que se o "Carcará" tivesse caído nas mãos da gaúcha Elis Regina, esta teria podido dar-lhe um tratamento mais próximo ao que lhe deu Bethânia do que àquele que lhe tinha dado Nara - enquanto a baiana Gal Costa teria ficado mais perto desta.
Isso, naturalmente, não era possível de ser pensado pelos produtores do show - um grupo de homens de teatro e intelectuais de esquerda -, que tinham, entre outras coisas, de arranjar uma linha de imagem para a nova estrela lançada. É curioso constatar que, para nós, a primeira experiência com as falsidades do marketing tenha sido proporcionada por um grupo de artistas anticapitalistas. Nara era uma moça típica da Zona Sul do Rio de Janeiro - branca, bonitinha e moderna. Era também uma celebridade da bossa nova quando Opinião foi idealizado: seu tipo, em contraste com os dois homens negros e semi-iletrados que dividiriam o palco com ela, tinha sido parte integrante da própria concepção do espetáculo. Bethânia, se não levarmos em conta a seleta platéia que frequentava o pequeno Teatro Vila Velha em Salvador, era desconhecida do público - e não era uma típica menina branca da classe média. Seus cabelos crespos e de cor indefinida, sua magreza, sua testa alta encimando um nariz aquilino, a própria voz de contralto, e até mesmo a difícil caracterização por faixa etária (Bethânia tinha dezessete anos, mas não parecia uma adolescente, embora as vezes parecesse uma menina) - criaram problemas para o diretor Augusto Boal, os autores e produtores Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar, Paulo Pontes e Armando Costa. Eles devem ter tido muita dificuldade em encontrar um modo de vesti-la, penteá-la e mesmo apresentá-la ao público. Em algum momento devem ter achado que seria preferível que a cantora indicada pela própria Nara - porque a indicação fora sua para a substituição - tivesse sido ou mais facilmente adequada ou muito menos talentosa.
As decisões que chegavam até nós de marcar uma prova de roupa ou um corte de cabelo, vinham carregadas de ansiedade e, se isso me tocava de modo algo desconfortável - a mim, que tinha 21 anos e estava ali apenas continuando a cumprir o compromisso que assumira com meu pai -, deve ter abalado Bethânia em áreas profundas de sua pessoa, mexendo com a vaidade, a insegurança, o orgulho íntimo. Mas ela reagiu heroicamente.
Era tranqüilo entre nós o sentimento de que sua integridade – nossa integridade - seria mantida em todos os níveis. Mas histórias como a de que ela, em Santo Amaro, teria sido ponta-esquerda - naturalmente frisando a palavra esquerda - de um time de futebol, o que não era verdade, apareceram nos informes biográficos que acompanharam a divulgação da estreante na imprensa. E o cabelo preso atrás num penteado que neutralizava as questões racial, etária e de beleza pessoal, e dava um ar de seriedade digna e um tanto dessexualizada, foi uma criação da equipe do show, mas passou a ser visto como algo que tinha vindo da Bahia com ela. Durante muito tempo. Bethânia teve dificuldades de se desvencilhar publicamente desse penteado (e da imagem de cantora de protesto nordestina) e, ao voltar ao Rio depois de uma temporada em São Paulo, onde trabalhou em outros espetáculos dirigidos pelo mesmo Augusto Boal do Opinião - e de um período de respiração na Bahia -, ela usou, em shows, uma peruca de longos cabelos lisos, e foi, pela primeira vez (porque isso se repetiu em diversas ocasiões ao longo dos anos), criticada por deixar as canções revolucionárias de "sua" região por um punhado de sambas-canções, boleros e baladas sentimentais. Um compacto duplo que ela gravou com musicas de Noel Rosa passou quase despercebido e, ao menos uma vez, eu mesmo ouvi de uma moça bem informada do Rio - a mulher de um produtor e diretor de cinema – o comentário (que já soava repetido) de que Bethânia não podia cantar Noel por ser baiana e ter uma sensibilidade de gente do sertão. Na verdade Bethânia veio a tornar-se - e é até hoje - uma rainha da canção brasileira, sobretudo pela densidade com que canta baladas de amor intenso, embora ela também cante, e com grande brilho, sambas "de escola" do Rio, sambas-de-roda da Bahia e eventualmente canções típicas do Nordeste.
Não foi como uma especialista em música nordestina que Maria Bethânia revelou-se a Nara Leão uma cantora de talento de quem ela se lembrou quando foi preciso encontrar alguém para substituí-la. Ela estava na Bahia no fim de uma viagem de passeio que era também, em parte, uma expedição de pesquisa. Nara era uma adorável criatura do tipo que só a Zona Sul do Rio pode produzir. Mas era também alguém especial dentro desse mundo. Sentia-se nela o gosto da liberdade que tinha sido conquistada com dificuldade e decisão. Por isso todos os
seus gestos e todas as suas palavras pareciam nascer de um realismo direto e sério, mas resultavam delicados e graciosos como os de uma menina tímida e passiva. Não se pode esquecer que ela, a essa altura, devia ter vinte anos. Seu nome estava ligado ao nascimento da bossa nova (dizia-se - e se diz até hoje - que o movimento nasceu em seu apartamento de Copacabana) e, embora a essa altura ela ainda não fosse um sucesso de massas, na Bahia nós conhecíamos sua lenda. E ela, por sua vez, fora informada da nossa existência, e marcou, através de Roberto Santana - que então produzia os nossos shows semi-amadores no Vila Velha e que parecia estar namorando com ela -, de vir assistir a um nosso ensaio.
Ensaio não houve, que eu lembre, mas ela veio nos encontrar num local próximo ao teatro e nós conversamos e cantamos. Havia já algum tempo que Nara vinha tentando ultrapassar o horizonte temático da bossa nova e fazer a música entrar na discussão dos problemas sociais e políticos que o novo teatro brasileiro e o Cinema Novo abordavam com frequência e paixão - e com isso realizar, para além de sua mitológica relação com a gênese da bossa nova, uma intervenção em nossa música popular de que ela fosse realmente a protagonista. E assim foi.
O próprio espetáculo Opinião fora inspirado em seu gesto de voltar a atenção para o samba de morro e a musica do sertão nordestino - e para as novas canções de cunho social que ela, mais do que ninguém, instigava os compositores a fazer. Mais ainda, foi um disco seu intitulado Opinião (o nome de um samba de Zé Kéti) que sugeriu o nome e o formato do show. Entre nós, na Bahia, sua presença revelou-se encantadora e um tanto enigmática: ela fazia perguntas muito diretas em voz muito mansa e falava de seus interesses entusiasmantes num tom cético que nós interpretávamos creio que acertadamente como um
misto de discrição e precaução.
No dia em que ela veio nos ver, íamos ouvir uma gravação do mais recente de uma série de shows que tínhamos apresentado no Vila Velha desde a sua inauguração. Antes de o Opinião ser concebido, nós tínhamos inventado, em Salvador, nossa própria versão de show de música com conceito, ideologia e literatura. Diferentemente do Opinião, nossos espetáculos pretendiam, além de fazer referências às questões políticas e sociais, criar uma perspectiva histórica que nos situasse no desenvolvimento da música popular brasileira. Os títulos dizem muito: Nós, por exemplo, o primeiro, era um concerto de apresentação de jovens músicos quase todos absolutamente desconhecidos - o "por exemplo" aí queria dizer não que nós éramos um modelo a ser seguido, um exemplo, mas que tínhamos certeza de que havia muitos outros, toda uma geração a que nós, "por exemplo", pertencíamos, e que devia sua existência ao aparecimento da bossa nova. O título do segundo show, Nova bossa velha, velha bossa nova, mostra nossa intenção de inserir o movimento numa visão de longo alcance da história da canção no Brasil.
Tínhamos acolhido a sugestão de João Gilberto naquilo que ela parecia ter de mais profundo: não nos satisfazíamos com a visão demasiadamente simplificada e imediatista dos que propunham, fosse uma disparada de falsa modernização jazzificante da nossa música, fosse uma sua utilização política propagandística, fosse uma mistura das duas coisas. Aceitávamos e incentivávamos tudo isso e, mais importante, admirávamos e amávamos muitas das obras que nasciam desses desdobramentos da bossa nova. Mas toda a perspectiva crítica nos parecia empobrecida pelo esquecimento de uma linha evolutiva que tinha possibilitado o surgimento de João, Jobim e Vinícius pela desatenção à nobilíssima linhagem a que eles se filiavam. Esse segundo espetáculo era quase didático quanto a isso.
Fazíamos shows coletivos, com números individuais que caracterizavam bem o estilo de cada um de nós, e alguns números de grupo - um duo de Bethânia e Gal; um vocal com todos os participantes modernizando um samba-maxixe arcaico: o "Samba da bênção" de Baden e Vinícius distribuído entre os participantes, que substituíam as partes faladas por textos novos condizentes consigo, com a turma e com suas pretensões etc -, mas já planejávamos realizar espetáculos individuais. Ao lado de Nara, naquele dia, tentávamos ouvir algo da precária gravação que alguém tinha feito do Nova bossa velha, velha bossa nova, e começávamos a projetar o espetáculo solo de Bethânia - éramos unânimes na opinião de que esta, por sua potência cênica, deveria iniciar a série dos individuais. Nara não só mostrou- se interessada por tudo o que fazíamos e dizíamos como ofereceu a Bethânia canções inéditas de sambistas do Rio, sambas que ela própria tinha acabado de gravar e que lhe pareceram adequados às intenções de Bethânia. Entre essas canções, estava "Opinião", o samba de Zé Kéti que inspiraria o famoso show. Um outro samba magnífico, também de Zé Kéti, "Acender as velas", foi transmitido por Nara a Bethânia. Assim, entre sambas-canções de Noel Rosa e de Antônio Maria, algum baião, alguma marchinha antiga de Carnaval cantada em ritmo lento e novidades compostas por nós mesmos, Bethânia, em seu primeiro show individual, cantou alguns dos temas centrais do espetáculo para o qual ela seria convidada e que a tornaria nacionalmente famosa.
O desprendimento de Nara nesse episódio pode ser em parte explicado pela atmosfera de busca coletiva e de mútua colaboração que marcou as relações entre 05 criadores de música popular no Brasil desde o final do período áureo da bossa nova até o final do período áureo do tropicalismo - e que é ainda marca distintiva da MPB -, mas o que ressalta aqui são as características pessoais de Nara, sua maneira espiritualmente aristocrática de ser prática e objetiva, as delicadas cintilações de seu antiestrelato. Claro que ela foi, então e depois, uma estrela verdadeira - ao lado de Chico Buarque no lançamento de "A banda", ao lado dos tropicalistas na hora da primeira batalha ou sozinha primeiro mudando e depois relendo a bossa nova, e mesmo afastada da profissão para dedicar-se ao casamento e a uma nova vida de estudante universitária (com sua graça de menina, ela não contrastava com suas colegas dez ou quinze anos mais novas): Nara brilhou no Brasil até morrer de um câncer no cérebro em 89. Diante do temperamento de Bethânia, ela costumava reagir com um humor percebia carinho e prova de conhecimento íntimo do estilo pessoal da outra, e no qual o tema da competição era apenas um tempero a mais na composição cômica da caricatura. Ela dizia, por exemplo: "Quando venho te ver, Bethânia, penso logo em velas acesas, rosas vermelhas e tapetes especiais", e Bethânia ria desse seu retrato de prima-dona, sabendo que a eterna menina em sua frente, para quem tudo era simples e claro, sabia que ela própria era um gigante da história da nossa musica - e que o Brasil sempre saberia disso.
Apesar do entusiasmo com que eu atuava nos shows do Teatro Vila Velha - cantando, tocando um pouco de violão e, sobretudo, concebendo e fazendo a "direção geral" (a direção musical ficava por conta de Gilberto Gil e Alcivando Luz) -, não estava nos meus planos profissionalizar-me em música popular. Ter ido para o Rio com Bethânia, no entanto, tornou isso quase inevitável. Minha canção "De manhã", que, entre algumas outras composições do grupo baiano, ela cantou a pedido dos produtores do Opinião, foi a escolhida por estes para representar o ambiente musical de onde ela vinha, e assim entrou no repertório do show e virou lado B do compacto best-seller do "Carcará". Muita gente de música apreciava a canção - para minha surpresa, pois eu, embora a achasse bela, a considerava muito primária - e ela acabou sendo gravada pela mais clássica - e classuda - das cantoras tradicionais brasileiras, a divina Elisete Cardoso, e pelo mais popularesco dos filhos jazzísticos da bossa nova, o musicalíssimo Wilson Simonal.
Curiosamente essa canção delicada, cuja letra que fala de um amor puro ao nascer do dia me fora sugerida por um samba-de- roda de Santo Amaro, foi composta sobre a alternância de um lá menor com um ré sétima, o que a leva para o modo menor nordestino, que aparece também no "Carcará". Esse modo nada ten a ver com o samba-de-roda que inspirou a letra - nem com os sambas-de-roda eu geral ou com toda a música do recôncavo da Bahia (na verdade o modalismo nordestino chegava a nós mais através do carioca Edu Lobo do que da divisa da Bahia com Pernambuco) -, mas a sua mistura com a bossa nova trazia para esta um charme diferente e isso contribuiu tanto para a atração que essa minha canção exerceu sobre os músicos quanto para a caracterização das origens musicais de Bethânia que os autores do Opinião buscavam. O fato é que, a partir daí, a ilusão de que a música seria algo provisório em minha vida passou a ser reiteradas vezes desfeita.
Quando o Opinião foi para São Paulo, eu segui acompanhando Bethânia, mas já tinha em mente tentar convencer meu pai a permitir que ela ficasse sob a responsabilidade de Augusto Boal, o diretor do espetáculo, em quem eu confiava. Meu pai não era de modo nenhum um homem rígido - e de fato mostrou-se extremamente receptivo às escolhas, limitações e peculiaridades tanto profissionais quanto existenciais dos filhos, exigindo apenas que tudo sempre se desse com respeito e honestidade. Ele e minha mãe, ambos nascidos em Santo Amaro no início do século e tendo vivido sempre ali, nunca reagiram às mudanças comportamentais por que o mundo passou enquanto nós crescíamos, embora nunca tivessem se identificado - nem permitido que nós nos identificássemos - com a vulgaridade que vinha no bojo dessas transformações. As restrições às saídas noturnas de Bethânia no início de sua adolescência e a exigência de minha permanência junto a ela no início de sua vida profissional foram o modo de meu pai, tomando o máximo de cuidado, permitir que nós fizéssemos o que tínhamos que fazer. Depois da temporada em São Paulo, quando o Opinião veio se apresentar na Bahia, eu lhe falei sobre a possibilidade de deixar Bethânia sob a responsabilidade de Boal, e ele, que então conheceu o diretor pessoalmente, concordou. Mas Boal planejava, para depois de encerrada a carreira do Opinião, fazer um espetáculo novo com Bethânia e, desta vez, com seus companheiros de grupo. Voltei, portanto, para São Paulo, onde vivi uma experiência sofrida mas muito ilustrativa. O governo militar que se instaurara com o golpe em 64 só é sentido como não ditatorial em retrospecto e se comparado à dureza do regime que passou a vigorar a partir de 68. Em 65 procurava-se meios de gritar "abaixo a ditadura" e, bem antes de começarem a crescer os movimentos estudantis que levaram multidões à rua, a produção cultural, sobretudo o teatro, tomava a si a responsabilidade de veicular o protesto. O critico literário e poeta Roberto Schwarz, um intelectual de formação marxista, escreveu, em 68, um ensaio em que, ao lado de uma tentativa de interpretação do tropicalismo, descreve o tipo de cumplicidade entre palco e platéia que tinha se desenvolvido no período, e mostra o quanto a posição de esquerda era hegemônica no meio cultural brasileiro.
Augusto Boal, o carioca diretor do grupo paulista Teatro de Arena, era um expoente desse teatro participativo e, embora o seu Opinião, apesar de muito bom, não me tivesse parecido melhor do que os nossos próprios shows do Vila Velha, ele era um homem brilhante e falava sobre a personalidade teatral que mais interessava aos brasileiros de então - Bertolt Brecht - com mais segurança e sinceridade do que qualquer outro que eu tivesse ouvido antes, sobretudo ele acabara de estrear um novo espetáculo em São Paulo - Arena conta Zumbi -, que me encantara. O Zumbi também era um musical, mas, diferentemente do Opinião, não era um apanhado de canções diversas entremeadas de textos e apresentadas por cantores, e sim uma peça concebida em conjunto com um compositor cujas canções inéditas eram cantados por atores. Nesse sentido, se o Opinião se assemelhava aos shows de bolso dos clubes noturnos, o Zumbi se assemelhava aos musicais da Broadway. Não que ele não fosse também "de bolso": na arena do minúsculo teatro do grupo no centro de São Paulo, com um elenco de cerca de dez pessoas, todas com roupas idênticas na forma e variando apenas na cor, os personagens passando de ator a ator - o sistema do curinga - , Arena co ta Zumbi era um primor de economia de meios, uma lição de como obter efeitos com o máximo de despojamento. Mas os efeitos almejados e assim obtidos, bem como as licenças de estilização tanto da cena quanto da música, eram da natureza dos encontradiços nos musicais convencionais: o resultado era, para mim como para o imenso publico que lotou o teatrinho por longos meses, irresistível. Recentemente a atriz Fernanda Montenegro, freqüentemente considerada a maior atriz brasileira e, de todo modo, uma grande artista que além de encantar-nos com o que faz ainda da exemplos de sabedoria orientando-nos com uma visão sempre equilibrada mas nunca medíocre das coisas, disse numa entrevista que fala-se muito na importância do teatro tropicalista de José Celso Martinez Corrêa e que a memória sempre celebra sua montagem de O rei da vela mas que o espetáculo mais importante da modernização do teatro brasileiro tinha sido Arena conta Zumbi. A mera demonstração do desejo de compensar essa injustiça histórica de que o Zumbi era vítima apresentou-se -me como algo louvável: senti uma grande e imediata alegria diante das palavras de Fernanda. De fato, não é pouca coisa que se tenha realizado um musical coerente e bem amarrado no Brasil - algo que ainda hoje parece uma meta inalcançável para os brasileiros. Noel Rosa e Ary Barroso, Dorival Caymmi e Lamartine Babo sonharam com isso - Edu Lobo, o jovem autor da música do Zumbi, conseguiu realizar o sonho em 65, na sua colaboração com Boal e Gianfrancesco Guarnieri, os autores do texto. Mas depois esquecemos, voltamos a lamentar o fato de termos tantos compositores populares maravilhosos e não conseguirmos organizar uma tradição de musicais no teatro ou no cinema que nos enriqueça a vida com encantamentos. As tentativas de Chico Buarque nesse sentido, ainda que louváveis, antes atestam esse esquecimento do que retomam o viço das conquistas. O teatro de Arena contava a história de Zumbi dos Palmares, o líder escravo negro que criou o maior e mais famoso quilombo - aldeia de ex-escravos rebelados - da história da escravidão no Brasil. A ideia de um território livre conquistado por ex-cativos corajosos se prestava naturalmente a todo tipo de alusão ao governo militar e à nossa falta de liberdade sob ele. Mas a glamourização da heroicidade do personagem central - que, no entanto, era representado rotativamente por cada um dos atores, numa homenagem às ideias coletivistas -, realçada pela graça da música, abria como que uma clareira agradável em nossas mentes. À época, teria soado como uma verdadeira blasfêmia - ou um esnobismo - alguém dizer bem do Zumbi nesses termos: eu próprio me dava motivos politicamente mais corretos do que esses para meu entusiasmo, embora não escondesse totalmente de mim mesmo a importância profunda desses aspectos "frívolos" e gostasse do Zumbi como quem gosta de The sound of music ou do Peter Pan de Disney. Um espectador culto de esquerda teria preferido uma desaprovação da peça motivada pela irresponsabilidade historiográfica dos autores ou pela simplificação "maniqueísta" (a palavra aparecia muito no período) dos enfrentamentos do povo heróico com seus algozes do que esse tipo de louvor.
A liberdade de gostar do Zumbi do modo como eu gostava, ao mesmo tempo aproximou-me e afastou-me de Boal. Para o espetáculo que planejou fazer conosco - cujo título seria Arena canta Bahia -, ele nos encomendou canções especiais, uma seleção de canções já existentes relativas à Bahia e sugestões para um roteiro.
Considerei, e ainda considero, perfeitamente justa a sua recusa da misteriosa e esquisita história infantil que, em conjunto, escolhemos como base para a criação da peça: levados pela insinuação de Boal de que deveríamos partir de uma ideia folclórica baiana para chegar a uma peça moderna temperada com muita crítica social - e também pela confusão de tentar escrever em grupo -, nós optamos por uma adaptação da macabra história da menina enterrada viva pela madrasta e que, de por sob a terra onde brotam seus cabelos como capim sedoso, canta todos os dias para o capineiro que tenta em vão dar fim ao teimoso capinzal que renasce diariamente à sombra de uma frondosa figueira: "Capineiro de meu pai/não me corte meus cabelos/ que minha mãe penteava/ e minha madrasta me enterrou/ pelo figo da figueira/ que o passarinho bicou". Era uma história fascinante e que, como Boal tinha sugerido, aparentemente só era conhecida por nós, baianos (na verdade, curiosamente li há pouco tempo que a mãe de Heinrich e Thomas Mann - que era brasileira da cidade litorânea fluminense de Parati - contava uma variante dessa história aos filhos, traduzindo-a para o alemão, exceto pela canção que, ao que parece, era a única coisa que ela havia guardado do português de sua infância), mas não sei que tipo de crítica social nós tínhamos a esperança de enfiar nela. O resultado foi uma tolice que nada tinha a ver com o mundo de Boal. Antes de mostrar a ele nossos esboços eu já sabia que nada daquilo seria do seu interesse ou teria consistência para, mesmo não o sendo, impressioná-lo: o único procedimento que me ocorreu para enriquecer o material foi tentar enfeitá-lo com imitações canhestras das aparências do estilo de Lorca. Boal considerou - com extrema delicadeza - que tendíamos para uma atmosfera demasiado lírica e, abandonando de todo as nossas ideias de enredo, passou a escolher, entre as canções que selecionamos, um repertório que lhe permitisse encenar algo condizente com o seu prestigiado teatro de luta. Duas coisas me saltaram à vista: ele não aceitou uma só canção de Dorival Caymmi, de quem, naturalmente, tínhamos sugerido muitas; e, diante das minhas restrições aos arranjos cheios de tiques - nitidamente inspirados nos números de Elis Regina no programa de TV O Fino da Bossa - que encontravam nele fácil acolhida quando sugeridos pelos músicos, ele se justificou dizendo mais ou menos o seguinte: "Você pensa em termos de buscar uma pureza regional e por isso reage a esses efeitos, eu penso em toda uma juventude urbana que eu preciso atingir e que entende essa linguagem". Dois anos mais tarde, no meio do furacão tropicalista, eu muitas vezes encontrava na lembrança dessas palavras argumento para reafirmar minha posição.
Enquanto Boal, em defesa das opções estéticas da esquerda, desancava o nosso trabalho num manifesto assinado e distribuído à entrada de uma faculdade em São Paulo aonde nós, os tropicalistas, tínhamos sido chamados para um debate sobre o movimento. O fato é que, em 65, participei com entusiasmo do Arena canta Bahia, pois era estimulante observar a mestria de Boal em compor desenhos moventes com nossos corpos, e era uma felicidade estar ao lado de Bethânia, Gil, Gal, Tom Zé e Piti, mas disse a todos eles - e repeti inúmeras vezes para mim mesmo – que devia haver algo fundamentalmente errado em se montar um musical sobre a Bahia em que não havia lugar para uma canção de Caymmi. As canções escolhidas tinham em comum uma caracterização nordestina que as afastava do estilo propriamente baiano - da graça, do gosto, da visão de mundo que vige na região do recôncavo e na Cidade do Salvador. Mas o Nordeste do "Carcará" era já marca da persona pública de Bethânia e da música de protesto em geral. Eu, no entanto, sonhava a nossa intervenção na música popular brasileira radicalmente vinculada à postura de João Gilberto para quem Caymmi era o gênio da raça. João, embora nascido e criado no sertão baiano vizinho a Pernambuco, sugeria uma linha mestra do desenvolvimento do samba que tinha sua origem no samba -de-roda do recôncavo e seu ponto de maturação no samba urbano carioca - e recusava estrategicamente exotismos regionais. Mas a voz de um vaqueiro gemendo ou a vida estridente de um caipira estavam mais próximas do gosto que eu atribuía a João Gilberto do que a subsofisticada volta ao samba ruidoso via bateria jazzística ou as composições pretensiosas a partir de escalas nordestinas.
Doía-me ouvir a voz crua de Bethânia empacotada nas convenções de samba-jazz do Beco das Garrafas (a rua de Copacabana onde se desenvolveu o estilo de que O Fino da Bossa era, na TV Record de São Paulo, extensão e ponto de divulgação).
Arena canta Bahia estreou num teatro relativamente grande, o TBC, antigo palco do Teatro Brasileiro de Comédia, a grande e bem-sucedida empreitada paulista dos anos 50 no sentido de criar uma companhia de alto nível técnico e intelectual para o teatro brasileiro, mas não teve nem de longe o sucesso de Arena conta Zumbi. A diferença na receptividade do público era merecida: nosso espetáculo era limpo e simpático, e os valores individuais apareciam como promessas excitantes (lembro com ternura da admiração que Nara Leão externou pelos meus dotes cênicos), mas via-se que o que movia os artistas em cena era uma mistura das marcas dadas pelo diretor como algo abstrato com uma emoção cuja natureza esse mesmo diretor não parecia captar. Sobretudo, se as estilizações musicais ao gosto da época não atrapalhavam o Zumbi, eram mortais para um espetáculo em que quatro autores e duas cantoras novos e chegados da província com idéias originais eram apresentados a um público de teatro que já tinha seus favoritos na música popular - ainda que essas estilizações não estivessem aqui tão marcadamente presentes e algo do nosso próprio gosto tivesse sido timidamente introduzido. O Zumbi era, se quisermos esquecer a força de sua resultante originalidade, uma espécie de musical off-Broadway à beira de passar a on-Broadway: o Arena canta Bahia só nos levava a pensar que um show singelo como os do Vila Velha teria sido um nosso melhor cartão de visita.
Lembro de um começo de discussão com Boal por causa de um outro espetáculo musical que tinha estreado no Rio e a respeito do qual nossas opiniões divergiam diametralmente. Era o inesquecível Rosa de Ouro, que revelou Paulinho da Viola (aos 24 anos) e Clementina de Jesus (aos sessenta), e trouxe de volta a veterana Araci Cortes. Para Boal, esse espetáculo que me comovia pelo modo poético como apresentava músicos autênticos da mais refinada tradição de samba carioca, era "folclórico". Naturalmente eu era tímido demais para argumentar contra Boal, a quem respeitava e admirava - e ele demasiadamente despreocupado das minhas opiniões para encorajar uma verdadeira discussão. Mas me pareceu que descartar um espetáculo como aquele seria jogar fora uma oportunidade rara de ver exposto claramente o que sugerimos como beleza possível para nós. E também que o nacionalismo dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reação ao imperialismo norte-americano, pouco ou nada tinha a ver com gostar das coisas do Brasil ou - o que mais me interessava - com propor, a partir do nosso jeito próprio, soluções originais para os problemas do homem e do mundo. A solução única já era conhecida e chegara aqui pronta: alcançar o socialismo. E para isso todo truque era bom. Qualquer interesse em refinar-se a sensibilidade - fosse no aprofundamento do contato com nossas formas populares tradicionais, fosse na atitude vanguardista experimental - era considerado um desvio perigoso e irresponsável.
Esta lembrança é vaga e diminuta, mas persistente: uma noite, no apartamento da atriz-cantora Marilia Medalha, alguém mencionou o nome de Décio Pignatari (talvez tenham dito que ele falara mal do Zumbi) e, respondendo a uma pergunta minha, Boal descreveu em poucas palavras cheias de desprezo uma "alienada" teoria de revolucionar pela forma que, a julgar pelo seu tom, deveria naturalmente me parecer tão digna de esquecimento quanto a ele. Por causa do sobrenome Pignatari - o mesmo de uma família de imigrantes italianos que se tornou famosa pelo acúmulo de riquezas - julguei que o poeta Décio fosse um milionário. Só me lembro desse episódio porque justamente o esboço de teoria "formalista" que aparecera na crítica me intrigou e me atraiu. Essas discrepâncias com o gosto e as posições de Boal eram um fator a mais a trazer infelicidade à minha estada em São Paulo. Eu não apenas estava numa cidade que me parecia feia e inóspita: eu também descobria que minha visão das coisas nem sequer poderia insinuar-se nos ambientes geradores de cultura, e que a chegada de Bethânia ao estrelato, se tinha aberto portas para mim no terreno profissional, não necessariamente significava que a intervenção estética que me parecia correta se fazia possível. Isso tudo, no entanto - e apesar de todo o sofrimento - , mostra, a meu ver, a riqueza da experiência com Boal. Ela serviu como estágio de sociabilidade num grande centro, além de ter sido um período de adestramento cênico. As divergências de visão e de atitude que aí aparecem em embrião desenvolveram-se e aprofundaram-se muito em dois anos, e durante o tropicalismo tínhamos posições ostensivamente antagônicas, mas em nenhum momento perdi de vista a grandeza e a importância de Boal e do Arena. E estou seguro de que o que quer que Boal tenha visto em mim que o levou a imaginar uma montagem de Hamlet com ênfase no aspecto político e comigo no papel-título - porque ele me sugeriu isso - não se perdeu para sempre dentro dele.
É tocante também pensar como Bethânia, que a essa altura já tinha conhecido um grande sucesso nacional - e cujo temperamento levou sempre muita gente a atribuir-lhe um estrelismo de diva de ópera - , dividiu o palco com seus companheiros desconhecidos do público, obedecendo a uma decisão corajosa de Boal, sem criar embaraços ou demonstrar ansiedade. De fato, depois da carreira de Arena canta Bahia, Boal dirigiu outro musical - Tempo de guerra -, tendo Bethânia à frente do mesmo elenco de baianos. Exceto eu, que, com saudades da Bahia e de minha namorada que ficara lá - Dedé, uma estudante de dança com quem me casaria dois anos depois, em pleno tropicalismo -, deixei São Paulo e as dúvidas a respeito das posições estéticas de Boal para trás, e voltei a Salvador para morar, namorar e planejar preguiçosamente um futuro de cineasta ou professor: minha incapacidade de orientar os arranjos segundo o meu gosto e minhas idéias, o que sempre atribuí à mediocridade de um talento musical que cria impossível desenvolver, me fazia sonhar outra vez com um futuro afastado da música. Embora a essa altura - e justamente por causa dos problemas que tive de enfrentar em São Paulo - já não me parecesse contraditório que eu gostasse de João Gilberto e de Ray Charles com quase igual intensidade e, desejando que meus antigos colegas da música também pudessem saltar de um a outro de
preferência a ficarem presos a um sub-pré-bebop homogeneizado, eu me preparasse para estar à altura de acolher a próxima futura sugestão de Bethânia no sentido de prestar mais atenção em Roberto Carlos.
* A presente obra é disponibilizada por nossa equipe, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.
0 comentários:
Postar um comentário