Em Santo Amaro nós cultuávamos João Gilberto em frente a um boteco modesto que chamávamos "bar do Bubu", por causa do nome do preto gordo que era seu dono. Ele comprara o primeiro LP de João, Chega de saudade – disco inaugural do movimento -, e tocava-o repetidas vezes. Primeiro, porque ele próprio gostava, e, depois, porque sabia que nós íamos ali para ouvi-lo. Éramos um grupo pequeno: quatro ou cinco ginasianos sem dinheiro para comprar o LP. A atmosfera de culto minoritário dessas cenas de audição, oposta à explosão maciça do rock'n'roll na América do Norte, não deve nos conduzir a uma
negação do caráter geracional subversivo comum aos dois fenômenos e que é o cerne da argumentação daquele jornalista do Village Voice. Por um lado, quase todos os depoimentos de americanos que tiveram na adolescência o rock'n'roll como o som inspirador de suas ambições intelectuais, políticas e existenciais, guardam o tom de culto fechado, de confraria esotérica - apesar do ostensivo comercialismo dos discos de Chuck Berry, Little Richard ou Bill Haley que os uniam em grupos; por outro lado, Bubu gostar de João Gilberto era apenas o primeiro sinal de que eu, Chico Motta, Dasinho e Bethânia não estávamos sós no entusiasmo da nossa descoberta: breve a bossa nova teria um peso considerável mesmo no mercado de discos do país e, o que é de fato mais revelador, ainda hoje, se qualquer um de nós cantar "Chega de saudade" - a canção-hino do movimento - num espetáculo para grande multidão num estádio de qualquer cidade brasileira, será indubitavelmente acompanhado por um coro de dezenas de milhares de pessoas de todas as faixas etárias, que cantarão cada silaba e cada nota da longa e rica melodia. Tal não aconteceria se a canção escolhida fosse "Blue suede shoes". "Roll over Beethoven" ou "Rockaround the clock".
Nos anos 50 os brasileiros tinham como música comercial sobretudo aquele tipo de canção sentimental barata que, depois de anos de bossa nova, rock americano, neo-rock'n'roll inglês, tropicalismo e rock brasileiro (Brock), voltou a dominar o mercado no final dos anos 80 e início dos anos 90 qualificada como "brega" (palavra dia gíria baiana, hoje usada como adjetivo mas na origem um substantivo chulo que significava "puteiro", dizem que a partir do nome Padre Manuel da Nóbrega de uma rua de zona de prostituição em Salvador ou Cachoeira, sobre cuja placa quebrada restavam apenas as dotas últimas sílabas do sobrenome do sacerdote). Mas o rock marcava sua presença no mercado e, ao lado de canções brasileiras, eu aprendia, no rádio, versões para o português da nova música comercial americana. O filme No balanço das horas (Rock around the clock) foi noticiado como tendo provocado), devido ao entusiasmo dos espectadores, depredações em cinemas do Rio de janeiro e, quando afinal ele foi exibido em Salvador, no Cine Guarany (hoje Cine Glauber Rocha), suei frio com medo de ser possuído por alguma força irracional - como tantas vezes sentia no candomblé - até me dar conta, aliviado, de que estava diante de uma chanchada bastante parecida com os únicos filmes brasileiros capazes de atrair filas quilométricas à porta dos cinemas a cada verão: a comédias carnavalescas primárias e eficazes que lançavam, entre piadas, as marchinhas e os sambas ao som dos quais se dançaria no Carnaval seguinte. Só que, no caso do filme do rock, por causa da onda feita na imprensa, alguns espectadores fingiam estar irresistivelmente tomados pelo "novo ritmo" e dançavam de pé sobre as poltronas, provavelmente para ver se quebravam algumas, dando assim matéria para os jornais, numa identificação com aqueles que tinham quebrado cinemas no Rio e que, por sua vez, identificavam-se com os americanos, de quem se dizia que tinham feito o mesmo nos Estados Unidos.
Um dos elementos que contribuíram para minha aliviada frieza diante do espetáculo de tela e platéia era a total ausência de novidade do rock'n'roll como dança - um enigma até hoje para mim indecifrável. Não que o rock'n'roll como música me soasse propriamente original: só o timbre estridente e a intenção (exibida, é certo, de modo um tanto canhestro) de ser mais selvagemente rítmico do que a música americana vinha sendo até ali (mas nem de longe como a brasileira ou a cubana já eram desde sempre), diferençavam, aos meus ouvidos, as canções de No balanço das horas de, por exemplo, "In the mood" ou de tantas outras estilizações de blues de doze compassos feitas antes. Mas a dança - aquela em que o rapaz pega uma das mãos da moça e a faz girar, depois eles se dão as quatro mãos e ele a puxa por entre as pernas etc. - é que era insuportavelmente igual a tudo o que se podia ver em filmes americanos dos anos 30 e 40. Mas a "força irracional", que levaria anos para me atingir, parecia dominar grande parte dos espectadores.
O Cine Guarany, no entanto, nem mesmo estava cheio. Espremido entre o sentimentalismo de puteiro e a crescente sofisticação dos músicos que possibilitaram o surgimento (e das platéias que possibilitaram o sucesso) da bossa nova, o rock'n'roll não produziu no Brasil uma minoria de massa (para usar o termo de Décio Pignatari) que o transformasse num fenômeno comercial ou numa referência cultural irrecusável, a extração social dos seus seguidores de primeira hora sendo muito difícil de definir, uma vez que, para que se o fosse, requeria-se ao mesmo tempo um gosto suburbano e poder econômico que permitisse acesso imediato a informações sobre a cultura americana - discos, filmes e revistas -, de modo que muitas vezes um fã de rock'n'roll tinha aquelas características de gosto mas não tinha meios de seguir, por exemplo, um curso particular de inglês, e, outras vezes, sendo filho de família abastada, tinha acesso a produtos americanos mas mantinha uma atitude elitista a que o rock mal se adaptava como um mero sinal exterior de modernidade Raramente os dois requisitos coincidiam num mesmo indivíduo ou num mesmo grupo (ou um indivíduo ou grupo relacionava-se com tais questões de maneira suficientemente livre e forte) para formar uma personalidade ou um ambiente que pudesse se chamar de genuinamente roqueiro.
Ainda hoje, no Brasil, alguns paradoxos se estabelecem e algumas confusões se alimentam da falta de clareza com relação a esses aspectos da gênese do culto do rock'n'roll entre nos: os grupos que começaram a surgir nos anos 80 não raramente combinam um charme de turma de periferia com um esnobismo de garotos de classe alta que sabem tudo sobre o que se passa na transvanguarda do pós-neo-rock'n'roll inglês (não apenas os discos mas também - e talvez principalmente - publicações da imprensa sobre "estilo" etc.) ou, mais recentemente, na ciranda dos grupos de Seattle. Quanto a mim, não pode deixar de me soar gozado o uso da expressão "de garagem" para definir um rock selvagem, despojado e antiburguês, pois cresci sem automóvel e entre pessoas que não tinham nem se sentiam na posição de poder sonhar em ter - automóvel. A mera existência de uma garagem em casa teria sido para mim um sinal de vida luxuosa. Sem dúvida, essa reação é muito mais compreensível num menino que cresceu em Santo Amaro do que num outro que tivesse crescido em São Paulo. Sobretudo ela é mais compreensível em alguém que cresceu no Brasil nos anos 50, isto é, antes das conseqüências advindas da implantação da indústria automobilística, do que em quem está crescendo agora. De todo modo, é certo que um americano estranharia a estranheza que experimentamos em face da eleição da garagem como caverna da subversão - o que diz muito sobre nossas diferenças econômicas, mas também sobre os esquisitos amortecedores que os impactos culturais de fenômenos de massa do chamado primeiro mundo encontram em países como o Brasil, sobretudo no próprio Brasil. Desse modo, um jovem brasileiro talentoso que amasse o rock e quisesse desenvolver um estilo próprio dentro do gênero, nos fins dos anos 50, enfrentava não apenas a ultramelódica tradição musical brasileira de base luso-africana e veleidades italianas - e a atmosfera católica da nossa imaginação -, mas também a dificuldade de decidir-se por se afirmar socialmente como um pária ou como um privilegiado. Sem dúvida casos de notável originalidade se contam entre os artistas brasileiros ligados ao rock que chegaram a desenvolver carreiras profissionais nos anos 60, antes ou independentemente da segunda investida do rock (desta vez via Inglaterra), ou seja, daquilo que prefiro sempre chamar de neo-rock'n'roll inglês, o dos Beatles e dos Rolling Stones. Além daqueles que, formados no gosto suburbano do rock, se tornaram profissionais de estilos ingênuos copiados às vezes de copias italianas do pop americano mais tolo do inicio dos anos 60 (como Cely e Tony Campelo, Carlos Gonzaga etc.) ou, tendo talento inventivo, criaram soluções novas fundindo rhy thm&blues com samba (Jorge Ben), soul com baião (Tim Maia) ou pop-rock com bossa nova e canção italiana (Roberto Carlos), há alguns nomes que ficaram – pela autenticidade de suas relações com o rock e/ou pela adequação a ele de seus temperamentos - para sempre ligados ao verdadeiro rock'n'roll. Creio que nenhum fã de rock no Brasil, nenhum conhecedor de sua história, nenhum interessado em tudo o que se passou por aqui desde que o fenômeno surgiu nos Estados Unidos, discordaria da escolha, para exemplificar essa última caracterização, de dois nomes: Erasmo Carlos e Raul Seixas.
Erasmo era um típico rapaz de subúrbio carioca. Na verdade, a Tijuca, onde ele nasceu e cresceu, é um bairro de classe média colocado ao centro da cidade do Rio de Janeiro, mas os bairros da Zona Sul, situados à beira- mar, embora bem mais afastados do centro, ganharam de tal modo a hegemonia do gosto e o status do privilégio, passaram de tal maneira a representar o que o Rio é para os seus habitantes, para os seus visitantes estrangeiros e para os outros brasileiros que cresceram admirando-o de longe, que mesmo uma zona central como a Tijuca é vista e vivida como subúrbio distante. Mas a turma de aficionados do rock de que ele fazia parte, juntamente com Tim Maia e Roberto Carlos, se reunia à porta de um cinema do Méier - o Imperator, um dos maiores e melhores da cidade, hoje transformado em casa de espetáculos de música -, e o Méier é um subúrbio de verdade, se bem que o mais afluente dos muitos outros subúrbios ligados ao centro do Rio por uma linha de trens populares. A personalidade artística de Erasmo Carlos ganhou forma definida e reconhecimento público a partir da primeira metade dos anos 60, quando ele se tornou o segundo homem da Jovem Guarda, um programa de televisão cujo líder era Roberto Carlos, um grande talento e um espanto de carisma. Este último poderia, com boas razões, ser chamado de o Elvis do Brasil: em plena maturidade da bossa nova, tornou-se um fenômeno de vendas cantando o quase-rock "Quero que vá tudo pro inferno", recebeu reprimendas das autoridades eclesiásticas (e então compôs "Eu te darei o céu") e foi chamado de rei, título que ostenta até hoje, sem que ninguém lho negue, quando canta baladas sentimentais para um público de meia -idade. Mas Roberto, apesar de seus contatos com os amantes do rock da porta do Imperator, foi, como tantos outros de nossa geração, no início de suas tentativas profissionais, um seguidor de João Gilberto) e chegou a gravar um compacto com pastiches de canções de bossa nova (o que nos levaria aqui de volta à tese de Dibell), e isso mais sua crescente identificação) com as baladonas italianas e sua tantas vezes
confessada adoração por Tony Bennett -, se foi condição da abrangência do seu sucesso e do peso de sua presença na história cultural brasileira recente, mostra o quão afastado de uma genuína sensibilidade rock'n'roll formou-se seu estilo.
Erasmo, não apenas vice-líder da "guarda" de Roberto mas seu parceiro em todas as composições, nunca pareceu atraído sinceramente por nada que não fosse d mundo do rock, e tanto o despojamento do seu canto quanto a energia sexual de sua presença cênica (alto, pesado, firme, com o ar antiintelectual e anti- sentimental de quem vive os temas essenciais da vida com o corpo todo, nessa combinação de homem pós-industrial e pré-histórico) para a qual o rock apontou com tanta insistência em toda parte do mundo) fizeram dele para sempre uma figura de tão imponente inteireza que nem as oscilações do mercado, nem as eventuais ingratidões de novos roqueiros, nem o desprestígio do rock como) acontecimento cultural de interesse podem abalar.
Mas nos anos 50 eu não tinha nenhuma notícia de Erasmo e seus amigos. E quando me mudei para Salvador, no primeiro ano da década seguinte, o culto de João Gilberto tinha me levado não só a Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday, mas também ao Modern Jazz Quartet, a Miles Davis, a Jimmy Giuffre, a Thelonious Monk e, sobretudo, a Chet Baker, cujos vocais sem vibrato e de timbre andrógino exerciam, mais do que as belas e discretas improvisações no trompete, um fascínio indizível que sua imagem à James Dean estampada nas capas dos discos só fazia confirmar. Não tenho nenhuma lembrança de sequer ouvir menção aos nomes de Little Richard ou ChuckBerry, e Elvis soava como as canções de Rock around the clock cantadas com um vozeirão másculo e cheio de vibrato, enquanto sua figura (tão freqüente na imprensa e nas portas de lojas de disco) me sugeria a atriz Katy Jurado em travesti. Por uma vez ele me atraiu: vendo no cinema, por acaso, o trailer de King Creole, experimentei uma excitação muito intimamente sincera e que tinha algo de difusamente sexual, provocada sobretudo pelo jeito de ele dançar (eu nunca o tinha visto antes em movimento), mas também pelo canto mesmo e pela música. Mas, se ele me atraiu, não me conquistou: só vim a ver o filme inteiro já pelo final dos anos 70, na televisão: a impressão se confirmou (e o próprio filme me pareceu maravilhoso), mas aí o rock já tinha um lugar assegurado na minha vida. Naquela época, ele passava ao largo.
Enquanto Erasmo, no Rio, conversava com Tim Maia e Jorge Ben sobre Bill Haley e seus Cometas, em Salvador, Raul Seixas, um menino da burguesia baiana, estudava inglês e planejava organizar um conjunto de rock'n'roll. No fim da primeira metade da década de 60, enquanto Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Alcivando Luz, Djalma Correia, Tom Zé e eu ensaiávamos uma antologia de clássicos da música popular brasileira dos anos 30 aos 50, obras-primas da bossa nova e algumas canções inéditas compostas por nós mesmos para apresentar na inauguração d Teatro Vila Velha, uma pequena casa de espetáculos mandada construir numa alameda do Passeio Público, o jardim do antigo Palácio do Governo, com vista da Baía de Todos os Santos, pelo grupo Teatro dos Novos - excelentes atores e diretores saídos da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia - , Raul Seixas ensaiava covers (como se diz hoje, mesmo no Brasil) de rocks americanos para cantar, em inglês, no Cine Teatro Roma, uma sala grande e popular, situada no largo de Roma, a praça central do bairro da Cidade Baixa que tem o mesmo nome do cinema e do largo (e da capital da Itália), uma área de baixa classe média e de situação urbana periférica. Diferentemente de Erasmo, Raul tinha ambições intelectuais e estéticas cuja natureza não facilitava uma receptividade por parte de gravadoras: ele só veio a se tornar nacionalmente conhecido como cantor e compositor depois da onda do neo-rock'n'roll inglês e, sobretudo, depois do tropicalismo. O que propiciou uma aproximação entre nós que parecia impossível no nosso
tempo de Salvador. Suponho que Gilberto Gil chegou a conhecê-lo pessoalmente naquela época. Eu não desconhecia então, a existência de sua banda - Raulzito e Os Panteras -, de que tanto se falava. Simplesmente nunca me senti estimulado a ir ver uma de suas apresentações. E creio que ele tampouco tivesse visto nossos shows do Vila Velha, pois, nas nossas consideravelmente freqüentes (e interessantíssimas) conversas dos anos 70, ele sempre insistia no tema do pobre roqueiro sendo esnobado pelos bossanovistas (o que nunca chegou a parecer expressar um verdadeiro ressentimento, uma vez que, nessas conversas, predominava o tom de cumplicidade de baianos no Rio, e todos sabíamos que ele
tinha sido um menino muito mais rico - ou muito menos pobre - do que nós), mas, embora ele se queixasse de nós não termos ido vê-lo cantar, nunca mencionou que ele tivesse ido nos assistir. Nesses encontros dos anos 70, sentíamos o sabor de conviver com um companheiro de geração e colega de profissão que tinha crescido e começado a trabalhar na mesma cidade que nós sem que nenhum tipo de atração nos tivesse reunido no primeiro momento. Os nossos shows do Vila Velha - que são o marco desse primeiro momento - conheceram um grande sucesso junto a um público predominantemente universitário e gozaram de prestígio na imprensa local. Os shows de Raul contavam com uma platéia grande, adolescente e suburbana e eram noticiados pela imprensa sem antipatia, mas não poderiam suscitar o respeito que nosso grupo de compositores, músicos e cantores de música popular brasileira moderna encontrava entre os chamados formadores de opinião.
Raul sabia de nós tanto quanto nos dele. Possivelmente mais. E, se suas queixas quanto à nossa atitude esnobe eram fundadas e justificadas. ele próprio deixava ressurgir nessas reminiscências o tom agressivamente irreverente com que ele e sua turma se referiam à "turma da bossa nova". Isso tinha o poder de nos aproximar ainda mais. Nós éramos os inventores do tropicalismo, e o tropicalismo tinha trazido o rock'n'roll para o convívio das coisas respeitáveis, o que fora decisivo para que Raul pusesse em prática suas ideias e pusesse suas ideias no mercado. Ele nos era grato por isso, e quando externava sua violência
em relação à poesia rala e à música docemente presunçosa cultivada pelos que então eram citados sob a sigla MPB, ele contava com nossa adesão entusiasmada: nós já tínhamos - e ele sabia – voltado nossas baterias contra o que havia de tudo isso em nós mesmos.
Um dado curioso, que ficou em mim como uma profunda marca desses encontro, me parece cada vez mais revelador. Por essa época, Raul, que esteve alguns anos casado com uma moça americana, quase conversava mais em inglês do que em português, mesmo quando todos os presentes eram brasileiros.
Seu inglês era fluente e natural e, a nossos ouvidos, soava perfeitamente americano. Quando voltava para o português, ele parecia fazer questão de exagerar nas marcas de baianidade: os ós e és breves espalhafatosamente abertos, a música da frase quase caricaturalmente regional, a gíria antiquada da Salvador de nossa adolescência. Essa combinação nós reconhecíamos no seu trabalho: em seus discos e em suas apresentações ao vivo, tudo o que não era americano era baiano. E baiano no que a Bahia tem de distintivo, não de integrador, no que a Bahia tem de à idéia de um Brasil homogêneo. Assim, tudo o que, na Bahia, é sotaque, tudo o que nela é nordestino, tudo o que faz dela algo restrito a uma turma, é escolhido; enquanto tudo o que ali é língua geral, tudo o que, na Bahia. é carioca, tudo o que possa se chamar de "brasileiro", é rechaçado.
Nós não podíamos deixar de reencontrar aí traços de alguns sentimentos que se encontravam na raiz do tropicalismo. De fato, nós tínhamos percebido que, para fazer o que acreditávamos que era necessário, tínhamos de nos livrar do Brasil tal como o conhecíamos. Tínhamos de destruir o Brasil dos nacionalistas, tínhamos que ir mais fundo e pulverizar a imagem do Brasil carioca (Celso Furtado em Formação econômica do Brasil: "A
idéia de unidade nacional só aparece quando a capital se transfere para o Rio de Janeiro"), o Brasil com seu jeitinho e seu Carnaval (o novo Carnaval da Bahia, eletrificado, rockificado, cubanizado, jamaicanizado, popificado, dominado pelo péssimo gosto da classe média provinciana, é resultado desse assassinato do Carnaval brasileiro, assassinato cujos autores intelectuais fomos nós: mas também a incomparável vitalidade desse novo Carnaval - em grande parte devida a essa mesma classe média provinciana - e, sobretudo, a energia propriamente criativa que se vê em atividade na Banda Olodum, no desfile do llê Aiyê, na Timbalada ou na figura única de Carinhos Brown, que reúne em si os elementos de reafricanização e neopopização da cidade, se devem ao mesmo gesto nosso, o que nos pode dar um alento e nos permite pensar, nos momentos bons, que há esperança, pois a matança se revelou regeneradora), acabar de vez com a imagem do Brasil nacional-popular e com a imagem do Brasil garota da Zona Sul, do Brasil mulata de maiô de paetê, meias brilhantes e salto alto. Não era apenas uma revolta contra a ditadura militar. De certa forma, sentíamos que o pais ter chegado a desrespeitar todos os direitos humanos, sendo um fato consumado, poderia mesmo ser tomado como um sinal de que estávamos andando para algum lugar, botando algo de terrível para fora, o que forçava a esquerda a mudar suas perspectivas. Nós não estávamos de todo inconscientes de que, paralelamente ao fato de que colecionávamos imagens violentas nas letras das nossas canções, sons desagradáveis e ruídos nos nossos arranjos, e atitudes agressivas em relação à vida cultural brasileira nas nossas aparições e declarações públicas, desenvolvia-se o embrião da guerrilha urbana, com a qual sentíamos, de longe, uma espécie de identificação poética.
Desse modo, tínhamos, por assim dizer, assumido o horror da ditadura como um gesto nosso, um gesto revelador do país, que nós, agora tomados como agentes semiconscientes, deveríamos transformar em suprema violência regeneradora.
Uma violência desagregadora que não apenas encontrava no ambiente contracultural do rock'n'roll armas para se efetivar, mas também reconhecia nesse ambiente motivações básicas semelhantes. Por isso, quando Raul Seixas alternava americanização com regionalismo esotérico, eu não podia deixar de lembrar que tinha sido eu mesmo a dizer a um jornalista, em 67, na primeira hora do tropicalismo, a frase que, pouco depois, Tom Zé citaria numa canção típica daquele movimento: "Sou baiano e estrangeiro".
Mas a nossa Bahia era, afinal de contas, e se tomada a questão em profundidade, a Bahia fundadora, a Bahia mãe do Brasil. Lembro do meu primeiro encontro pessoal com a grande artista plástica mineira Ly gia Clark, e de como gostei de ouvir dela que a Bahia está para o Rio como o Velho Testamento está para o Novo. Na verdade queríamos ver o Brasil numa mirada em que ele surgisse a um tempo super-Rio internacional-paulistizado, pré-Bahia arcaica e pós-Brasília futurista.
Essa ambição nos afastava de fato de Raul Seixas na mesma medida em que eu já me sentia afastado dos amantes do rock nos anos 50: o deslumbramento com a coisa americana me parecia tolo e a marca distintiva de baianidade folclórica, superficial.
Eu, que cresci dançando samba-de-roda e amando a música que se desenvolveu no Brasil pelo rádio e pelo disco, sempre tive a nítida impressão de que Elvis foi um fenômeno cultural importante para toda uma geração de americanos porque teve seu destino individual ligado a forças no interior da sua sociedade que a levariam a gestos irreversíveis - sendo um garoto branco que, num país de racismo institucionalizado, traduziu para a vasta platéia branca jovem o jargão rítmico e gestual dos negros, exatamente às vésperas da queda das restrições raciais e da ascensão de uma postura crítica das novas gerações em relação ao
já conquistado pelas velhas. Mas que isso só se tornou possível pela atuação da sua figura, do seu timbre e do seu clima pessoal sobre a mente americana tal como esta se encontrava no meio da década de 50. Assim como a imagem de Marilyn tocou num ponto da sensibilidade das massas americanas para o qual convergiam suas aspirações estéticas e suas fantasias sexuais. Na medida mesma em que o que é importante para os Estados Unidos resulta relevante para o resto do mundo, a figura de Elvis, seu som e sua lenda marcaram fundamente o imaginário internacional. Constatar isso não é considerar sequer possível uma adesão automática e sem mediações, por parte de seus contemporâneos de outros países que não os Estados Unidos, ao complexo de sentimentos que ele desencadeou entre os americanos. Quando, nos anos 60, Juracy Magalhães, um político de peso que já fora governador da Bahia (e que foi ministro das Relações Exteriores durante a ditadura), declarou que "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil", a frase era repetida como a mais infame demonstração da subserviência de que a esquerda acusava a direita.
Hoje são muitas as evidências de que, por um lado, qualquer tentativa de não-alinhamento com os interesses do Ocidente capitalista resultaria em monstruosas agressões às liberdades fundamentais, e de que, por outro lado, todo projeto nacionalista de independência econômica levaria a um fechamento do país à modernidade. Isso pode dar um ar de mero bom senso (e de poder de síntese) à frase de Juracy. mas não basta para legitimá-la plenamente. A bem da verdade, a frase repugna-me hoje talvez mais do que nunca: ela nos indica o caminho da desistência, da preguiça em face de possíveis responsabilidades históricas – além de sugerir que não há a possibilidade de conflito de interesses entre os dois países.
Ter tido o rock'n'roll como algo relativamente desprezível durante os anos decisivos da nossa formação - e, em contrapartida ter tido a bossa nova como trilha sonora da nossa rebeldia - significa, para nós, brasileiros da minha geração, o direito de imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do mundo. Direito que passa imediatamente a ser vivido) como um dever.
negação do caráter geracional subversivo comum aos dois fenômenos e que é o cerne da argumentação daquele jornalista do Village Voice. Por um lado, quase todos os depoimentos de americanos que tiveram na adolescência o rock'n'roll como o som inspirador de suas ambições intelectuais, políticas e existenciais, guardam o tom de culto fechado, de confraria esotérica - apesar do ostensivo comercialismo dos discos de Chuck Berry, Little Richard ou Bill Haley que os uniam em grupos; por outro lado, Bubu gostar de João Gilberto era apenas o primeiro sinal de que eu, Chico Motta, Dasinho e Bethânia não estávamos sós no entusiasmo da nossa descoberta: breve a bossa nova teria um peso considerável mesmo no mercado de discos do país e, o que é de fato mais revelador, ainda hoje, se qualquer um de nós cantar "Chega de saudade" - a canção-hino do movimento - num espetáculo para grande multidão num estádio de qualquer cidade brasileira, será indubitavelmente acompanhado por um coro de dezenas de milhares de pessoas de todas as faixas etárias, que cantarão cada silaba e cada nota da longa e rica melodia. Tal não aconteceria se a canção escolhida fosse "Blue suede shoes". "Roll over Beethoven" ou "Rockaround the clock".
Nos anos 50 os brasileiros tinham como música comercial sobretudo aquele tipo de canção sentimental barata que, depois de anos de bossa nova, rock americano, neo-rock'n'roll inglês, tropicalismo e rock brasileiro (Brock), voltou a dominar o mercado no final dos anos 80 e início dos anos 90 qualificada como "brega" (palavra dia gíria baiana, hoje usada como adjetivo mas na origem um substantivo chulo que significava "puteiro", dizem que a partir do nome Padre Manuel da Nóbrega de uma rua de zona de prostituição em Salvador ou Cachoeira, sobre cuja placa quebrada restavam apenas as dotas últimas sílabas do sobrenome do sacerdote). Mas o rock marcava sua presença no mercado e, ao lado de canções brasileiras, eu aprendia, no rádio, versões para o português da nova música comercial americana. O filme No balanço das horas (Rock around the clock) foi noticiado como tendo provocado), devido ao entusiasmo dos espectadores, depredações em cinemas do Rio de janeiro e, quando afinal ele foi exibido em Salvador, no Cine Guarany (hoje Cine Glauber Rocha), suei frio com medo de ser possuído por alguma força irracional - como tantas vezes sentia no candomblé - até me dar conta, aliviado, de que estava diante de uma chanchada bastante parecida com os únicos filmes brasileiros capazes de atrair filas quilométricas à porta dos cinemas a cada verão: a comédias carnavalescas primárias e eficazes que lançavam, entre piadas, as marchinhas e os sambas ao som dos quais se dançaria no Carnaval seguinte. Só que, no caso do filme do rock, por causa da onda feita na imprensa, alguns espectadores fingiam estar irresistivelmente tomados pelo "novo ritmo" e dançavam de pé sobre as poltronas, provavelmente para ver se quebravam algumas, dando assim matéria para os jornais, numa identificação com aqueles que tinham quebrado cinemas no Rio e que, por sua vez, identificavam-se com os americanos, de quem se dizia que tinham feito o mesmo nos Estados Unidos.
Um dos elementos que contribuíram para minha aliviada frieza diante do espetáculo de tela e platéia era a total ausência de novidade do rock'n'roll como dança - um enigma até hoje para mim indecifrável. Não que o rock'n'roll como música me soasse propriamente original: só o timbre estridente e a intenção (exibida, é certo, de modo um tanto canhestro) de ser mais selvagemente rítmico do que a música americana vinha sendo até ali (mas nem de longe como a brasileira ou a cubana já eram desde sempre), diferençavam, aos meus ouvidos, as canções de No balanço das horas de, por exemplo, "In the mood" ou de tantas outras estilizações de blues de doze compassos feitas antes. Mas a dança - aquela em que o rapaz pega uma das mãos da moça e a faz girar, depois eles se dão as quatro mãos e ele a puxa por entre as pernas etc. - é que era insuportavelmente igual a tudo o que se podia ver em filmes americanos dos anos 30 e 40. Mas a "força irracional", que levaria anos para me atingir, parecia dominar grande parte dos espectadores.
O Cine Guarany, no entanto, nem mesmo estava cheio. Espremido entre o sentimentalismo de puteiro e a crescente sofisticação dos músicos que possibilitaram o surgimento (e das platéias que possibilitaram o sucesso) da bossa nova, o rock'n'roll não produziu no Brasil uma minoria de massa (para usar o termo de Décio Pignatari) que o transformasse num fenômeno comercial ou numa referência cultural irrecusável, a extração social dos seus seguidores de primeira hora sendo muito difícil de definir, uma vez que, para que se o fosse, requeria-se ao mesmo tempo um gosto suburbano e poder econômico que permitisse acesso imediato a informações sobre a cultura americana - discos, filmes e revistas -, de modo que muitas vezes um fã de rock'n'roll tinha aquelas características de gosto mas não tinha meios de seguir, por exemplo, um curso particular de inglês, e, outras vezes, sendo filho de família abastada, tinha acesso a produtos americanos mas mantinha uma atitude elitista a que o rock mal se adaptava como um mero sinal exterior de modernidade Raramente os dois requisitos coincidiam num mesmo indivíduo ou num mesmo grupo (ou um indivíduo ou grupo relacionava-se com tais questões de maneira suficientemente livre e forte) para formar uma personalidade ou um ambiente que pudesse se chamar de genuinamente roqueiro.
Ainda hoje, no Brasil, alguns paradoxos se estabelecem e algumas confusões se alimentam da falta de clareza com relação a esses aspectos da gênese do culto do rock'n'roll entre nos: os grupos que começaram a surgir nos anos 80 não raramente combinam um charme de turma de periferia com um esnobismo de garotos de classe alta que sabem tudo sobre o que se passa na transvanguarda do pós-neo-rock'n'roll inglês (não apenas os discos mas também - e talvez principalmente - publicações da imprensa sobre "estilo" etc.) ou, mais recentemente, na ciranda dos grupos de Seattle. Quanto a mim, não pode deixar de me soar gozado o uso da expressão "de garagem" para definir um rock selvagem, despojado e antiburguês, pois cresci sem automóvel e entre pessoas que não tinham nem se sentiam na posição de poder sonhar em ter - automóvel. A mera existência de uma garagem em casa teria sido para mim um sinal de vida luxuosa. Sem dúvida, essa reação é muito mais compreensível num menino que cresceu em Santo Amaro do que num outro que tivesse crescido em São Paulo. Sobretudo ela é mais compreensível em alguém que cresceu no Brasil nos anos 50, isto é, antes das conseqüências advindas da implantação da indústria automobilística, do que em quem está crescendo agora. De todo modo, é certo que um americano estranharia a estranheza que experimentamos em face da eleição da garagem como caverna da subversão - o que diz muito sobre nossas diferenças econômicas, mas também sobre os esquisitos amortecedores que os impactos culturais de fenômenos de massa do chamado primeiro mundo encontram em países como o Brasil, sobretudo no próprio Brasil. Desse modo, um jovem brasileiro talentoso que amasse o rock e quisesse desenvolver um estilo próprio dentro do gênero, nos fins dos anos 50, enfrentava não apenas a ultramelódica tradição musical brasileira de base luso-africana e veleidades italianas - e a atmosfera católica da nossa imaginação -, mas também a dificuldade de decidir-se por se afirmar socialmente como um pária ou como um privilegiado. Sem dúvida casos de notável originalidade se contam entre os artistas brasileiros ligados ao rock que chegaram a desenvolver carreiras profissionais nos anos 60, antes ou independentemente da segunda investida do rock (desta vez via Inglaterra), ou seja, daquilo que prefiro sempre chamar de neo-rock'n'roll inglês, o dos Beatles e dos Rolling Stones. Além daqueles que, formados no gosto suburbano do rock, se tornaram profissionais de estilos ingênuos copiados às vezes de copias italianas do pop americano mais tolo do inicio dos anos 60 (como Cely e Tony Campelo, Carlos Gonzaga etc.) ou, tendo talento inventivo, criaram soluções novas fundindo rhy thm&blues com samba (Jorge Ben), soul com baião (Tim Maia) ou pop-rock com bossa nova e canção italiana (Roberto Carlos), há alguns nomes que ficaram – pela autenticidade de suas relações com o rock e/ou pela adequação a ele de seus temperamentos - para sempre ligados ao verdadeiro rock'n'roll. Creio que nenhum fã de rock no Brasil, nenhum conhecedor de sua história, nenhum interessado em tudo o que se passou por aqui desde que o fenômeno surgiu nos Estados Unidos, discordaria da escolha, para exemplificar essa última caracterização, de dois nomes: Erasmo Carlos e Raul Seixas.
Erasmo era um típico rapaz de subúrbio carioca. Na verdade, a Tijuca, onde ele nasceu e cresceu, é um bairro de classe média colocado ao centro da cidade do Rio de Janeiro, mas os bairros da Zona Sul, situados à beira- mar, embora bem mais afastados do centro, ganharam de tal modo a hegemonia do gosto e o status do privilégio, passaram de tal maneira a representar o que o Rio é para os seus habitantes, para os seus visitantes estrangeiros e para os outros brasileiros que cresceram admirando-o de longe, que mesmo uma zona central como a Tijuca é vista e vivida como subúrbio distante. Mas a turma de aficionados do rock de que ele fazia parte, juntamente com Tim Maia e Roberto Carlos, se reunia à porta de um cinema do Méier - o Imperator, um dos maiores e melhores da cidade, hoje transformado em casa de espetáculos de música -, e o Méier é um subúrbio de verdade, se bem que o mais afluente dos muitos outros subúrbios ligados ao centro do Rio por uma linha de trens populares. A personalidade artística de Erasmo Carlos ganhou forma definida e reconhecimento público a partir da primeira metade dos anos 60, quando ele se tornou o segundo homem da Jovem Guarda, um programa de televisão cujo líder era Roberto Carlos, um grande talento e um espanto de carisma. Este último poderia, com boas razões, ser chamado de o Elvis do Brasil: em plena maturidade da bossa nova, tornou-se um fenômeno de vendas cantando o quase-rock "Quero que vá tudo pro inferno", recebeu reprimendas das autoridades eclesiásticas (e então compôs "Eu te darei o céu") e foi chamado de rei, título que ostenta até hoje, sem que ninguém lho negue, quando canta baladas sentimentais para um público de meia -idade. Mas Roberto, apesar de seus contatos com os amantes do rock da porta do Imperator, foi, como tantos outros de nossa geração, no início de suas tentativas profissionais, um seguidor de João Gilberto) e chegou a gravar um compacto com pastiches de canções de bossa nova (o que nos levaria aqui de volta à tese de Dibell), e isso mais sua crescente identificação) com as baladonas italianas e sua tantas vezes
confessada adoração por Tony Bennett -, se foi condição da abrangência do seu sucesso e do peso de sua presença na história cultural brasileira recente, mostra o quão afastado de uma genuína sensibilidade rock'n'roll formou-se seu estilo.
Erasmo, não apenas vice-líder da "guarda" de Roberto mas seu parceiro em todas as composições, nunca pareceu atraído sinceramente por nada que não fosse d mundo do rock, e tanto o despojamento do seu canto quanto a energia sexual de sua presença cênica (alto, pesado, firme, com o ar antiintelectual e anti- sentimental de quem vive os temas essenciais da vida com o corpo todo, nessa combinação de homem pós-industrial e pré-histórico) para a qual o rock apontou com tanta insistência em toda parte do mundo) fizeram dele para sempre uma figura de tão imponente inteireza que nem as oscilações do mercado, nem as eventuais ingratidões de novos roqueiros, nem o desprestígio do rock como) acontecimento cultural de interesse podem abalar.
Mas nos anos 50 eu não tinha nenhuma notícia de Erasmo e seus amigos. E quando me mudei para Salvador, no primeiro ano da década seguinte, o culto de João Gilberto tinha me levado não só a Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday, mas também ao Modern Jazz Quartet, a Miles Davis, a Jimmy Giuffre, a Thelonious Monk e, sobretudo, a Chet Baker, cujos vocais sem vibrato e de timbre andrógino exerciam, mais do que as belas e discretas improvisações no trompete, um fascínio indizível que sua imagem à James Dean estampada nas capas dos discos só fazia confirmar. Não tenho nenhuma lembrança de sequer ouvir menção aos nomes de Little Richard ou ChuckBerry, e Elvis soava como as canções de Rock around the clock cantadas com um vozeirão másculo e cheio de vibrato, enquanto sua figura (tão freqüente na imprensa e nas portas de lojas de disco) me sugeria a atriz Katy Jurado em travesti. Por uma vez ele me atraiu: vendo no cinema, por acaso, o trailer de King Creole, experimentei uma excitação muito intimamente sincera e que tinha algo de difusamente sexual, provocada sobretudo pelo jeito de ele dançar (eu nunca o tinha visto antes em movimento), mas também pelo canto mesmo e pela música. Mas, se ele me atraiu, não me conquistou: só vim a ver o filme inteiro já pelo final dos anos 70, na televisão: a impressão se confirmou (e o próprio filme me pareceu maravilhoso), mas aí o rock já tinha um lugar assegurado na minha vida. Naquela época, ele passava ao largo.
Enquanto Erasmo, no Rio, conversava com Tim Maia e Jorge Ben sobre Bill Haley e seus Cometas, em Salvador, Raul Seixas, um menino da burguesia baiana, estudava inglês e planejava organizar um conjunto de rock'n'roll. No fim da primeira metade da década de 60, enquanto Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Alcivando Luz, Djalma Correia, Tom Zé e eu ensaiávamos uma antologia de clássicos da música popular brasileira dos anos 30 aos 50, obras-primas da bossa nova e algumas canções inéditas compostas por nós mesmos para apresentar na inauguração d Teatro Vila Velha, uma pequena casa de espetáculos mandada construir numa alameda do Passeio Público, o jardim do antigo Palácio do Governo, com vista da Baía de Todos os Santos, pelo grupo Teatro dos Novos - excelentes atores e diretores saídos da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia - , Raul Seixas ensaiava covers (como se diz hoje, mesmo no Brasil) de rocks americanos para cantar, em inglês, no Cine Teatro Roma, uma sala grande e popular, situada no largo de Roma, a praça central do bairro da Cidade Baixa que tem o mesmo nome do cinema e do largo (e da capital da Itália), uma área de baixa classe média e de situação urbana periférica. Diferentemente de Erasmo, Raul tinha ambições intelectuais e estéticas cuja natureza não facilitava uma receptividade por parte de gravadoras: ele só veio a se tornar nacionalmente conhecido como cantor e compositor depois da onda do neo-rock'n'roll inglês e, sobretudo, depois do tropicalismo. O que propiciou uma aproximação entre nós que parecia impossível no nosso
tempo de Salvador. Suponho que Gilberto Gil chegou a conhecê-lo pessoalmente naquela época. Eu não desconhecia então, a existência de sua banda - Raulzito e Os Panteras -, de que tanto se falava. Simplesmente nunca me senti estimulado a ir ver uma de suas apresentações. E creio que ele tampouco tivesse visto nossos shows do Vila Velha, pois, nas nossas consideravelmente freqüentes (e interessantíssimas) conversas dos anos 70, ele sempre insistia no tema do pobre roqueiro sendo esnobado pelos bossanovistas (o que nunca chegou a parecer expressar um verdadeiro ressentimento, uma vez que, nessas conversas, predominava o tom de cumplicidade de baianos no Rio, e todos sabíamos que ele
tinha sido um menino muito mais rico - ou muito menos pobre - do que nós), mas, embora ele se queixasse de nós não termos ido vê-lo cantar, nunca mencionou que ele tivesse ido nos assistir. Nesses encontros dos anos 70, sentíamos o sabor de conviver com um companheiro de geração e colega de profissão que tinha crescido e começado a trabalhar na mesma cidade que nós sem que nenhum tipo de atração nos tivesse reunido no primeiro momento. Os nossos shows do Vila Velha - que são o marco desse primeiro momento - conheceram um grande sucesso junto a um público predominantemente universitário e gozaram de prestígio na imprensa local. Os shows de Raul contavam com uma platéia grande, adolescente e suburbana e eram noticiados pela imprensa sem antipatia, mas não poderiam suscitar o respeito que nosso grupo de compositores, músicos e cantores de música popular brasileira moderna encontrava entre os chamados formadores de opinião.
Raul sabia de nós tanto quanto nos dele. Possivelmente mais. E, se suas queixas quanto à nossa atitude esnobe eram fundadas e justificadas. ele próprio deixava ressurgir nessas reminiscências o tom agressivamente irreverente com que ele e sua turma se referiam à "turma da bossa nova". Isso tinha o poder de nos aproximar ainda mais. Nós éramos os inventores do tropicalismo, e o tropicalismo tinha trazido o rock'n'roll para o convívio das coisas respeitáveis, o que fora decisivo para que Raul pusesse em prática suas ideias e pusesse suas ideias no mercado. Ele nos era grato por isso, e quando externava sua violência
em relação à poesia rala e à música docemente presunçosa cultivada pelos que então eram citados sob a sigla MPB, ele contava com nossa adesão entusiasmada: nós já tínhamos - e ele sabia – voltado nossas baterias contra o que havia de tudo isso em nós mesmos.
Um dado curioso, que ficou em mim como uma profunda marca desses encontro, me parece cada vez mais revelador. Por essa época, Raul, que esteve alguns anos casado com uma moça americana, quase conversava mais em inglês do que em português, mesmo quando todos os presentes eram brasileiros.
Seu inglês era fluente e natural e, a nossos ouvidos, soava perfeitamente americano. Quando voltava para o português, ele parecia fazer questão de exagerar nas marcas de baianidade: os ós e és breves espalhafatosamente abertos, a música da frase quase caricaturalmente regional, a gíria antiquada da Salvador de nossa adolescência. Essa combinação nós reconhecíamos no seu trabalho: em seus discos e em suas apresentações ao vivo, tudo o que não era americano era baiano. E baiano no que a Bahia tem de distintivo, não de integrador, no que a Bahia tem de à idéia de um Brasil homogêneo. Assim, tudo o que, na Bahia, é sotaque, tudo o que nela é nordestino, tudo o que faz dela algo restrito a uma turma, é escolhido; enquanto tudo o que ali é língua geral, tudo o que, na Bahia. é carioca, tudo o que possa se chamar de "brasileiro", é rechaçado.
Nós não podíamos deixar de reencontrar aí traços de alguns sentimentos que se encontravam na raiz do tropicalismo. De fato, nós tínhamos percebido que, para fazer o que acreditávamos que era necessário, tínhamos de nos livrar do Brasil tal como o conhecíamos. Tínhamos de destruir o Brasil dos nacionalistas, tínhamos que ir mais fundo e pulverizar a imagem do Brasil carioca (Celso Furtado em Formação econômica do Brasil: "A
idéia de unidade nacional só aparece quando a capital se transfere para o Rio de Janeiro"), o Brasil com seu jeitinho e seu Carnaval (o novo Carnaval da Bahia, eletrificado, rockificado, cubanizado, jamaicanizado, popificado, dominado pelo péssimo gosto da classe média provinciana, é resultado desse assassinato do Carnaval brasileiro, assassinato cujos autores intelectuais fomos nós: mas também a incomparável vitalidade desse novo Carnaval - em grande parte devida a essa mesma classe média provinciana - e, sobretudo, a energia propriamente criativa que se vê em atividade na Banda Olodum, no desfile do llê Aiyê, na Timbalada ou na figura única de Carinhos Brown, que reúne em si os elementos de reafricanização e neopopização da cidade, se devem ao mesmo gesto nosso, o que nos pode dar um alento e nos permite pensar, nos momentos bons, que há esperança, pois a matança se revelou regeneradora), acabar de vez com a imagem do Brasil nacional-popular e com a imagem do Brasil garota da Zona Sul, do Brasil mulata de maiô de paetê, meias brilhantes e salto alto. Não era apenas uma revolta contra a ditadura militar. De certa forma, sentíamos que o pais ter chegado a desrespeitar todos os direitos humanos, sendo um fato consumado, poderia mesmo ser tomado como um sinal de que estávamos andando para algum lugar, botando algo de terrível para fora, o que forçava a esquerda a mudar suas perspectivas. Nós não estávamos de todo inconscientes de que, paralelamente ao fato de que colecionávamos imagens violentas nas letras das nossas canções, sons desagradáveis e ruídos nos nossos arranjos, e atitudes agressivas em relação à vida cultural brasileira nas nossas aparições e declarações públicas, desenvolvia-se o embrião da guerrilha urbana, com a qual sentíamos, de longe, uma espécie de identificação poética.
Desse modo, tínhamos, por assim dizer, assumido o horror da ditadura como um gesto nosso, um gesto revelador do país, que nós, agora tomados como agentes semiconscientes, deveríamos transformar em suprema violência regeneradora.
Uma violência desagregadora que não apenas encontrava no ambiente contracultural do rock'n'roll armas para se efetivar, mas também reconhecia nesse ambiente motivações básicas semelhantes. Por isso, quando Raul Seixas alternava americanização com regionalismo esotérico, eu não podia deixar de lembrar que tinha sido eu mesmo a dizer a um jornalista, em 67, na primeira hora do tropicalismo, a frase que, pouco depois, Tom Zé citaria numa canção típica daquele movimento: "Sou baiano e estrangeiro".
Mas a nossa Bahia era, afinal de contas, e se tomada a questão em profundidade, a Bahia fundadora, a Bahia mãe do Brasil. Lembro do meu primeiro encontro pessoal com a grande artista plástica mineira Ly gia Clark, e de como gostei de ouvir dela que a Bahia está para o Rio como o Velho Testamento está para o Novo. Na verdade queríamos ver o Brasil numa mirada em que ele surgisse a um tempo super-Rio internacional-paulistizado, pré-Bahia arcaica e pós-Brasília futurista.
Essa ambição nos afastava de fato de Raul Seixas na mesma medida em que eu já me sentia afastado dos amantes do rock nos anos 50: o deslumbramento com a coisa americana me parecia tolo e a marca distintiva de baianidade folclórica, superficial.
Eu, que cresci dançando samba-de-roda e amando a música que se desenvolveu no Brasil pelo rádio e pelo disco, sempre tive a nítida impressão de que Elvis foi um fenômeno cultural importante para toda uma geração de americanos porque teve seu destino individual ligado a forças no interior da sua sociedade que a levariam a gestos irreversíveis - sendo um garoto branco que, num país de racismo institucionalizado, traduziu para a vasta platéia branca jovem o jargão rítmico e gestual dos negros, exatamente às vésperas da queda das restrições raciais e da ascensão de uma postura crítica das novas gerações em relação ao
já conquistado pelas velhas. Mas que isso só se tornou possível pela atuação da sua figura, do seu timbre e do seu clima pessoal sobre a mente americana tal como esta se encontrava no meio da década de 50. Assim como a imagem de Marilyn tocou num ponto da sensibilidade das massas americanas para o qual convergiam suas aspirações estéticas e suas fantasias sexuais. Na medida mesma em que o que é importante para os Estados Unidos resulta relevante para o resto do mundo, a figura de Elvis, seu som e sua lenda marcaram fundamente o imaginário internacional. Constatar isso não é considerar sequer possível uma adesão automática e sem mediações, por parte de seus contemporâneos de outros países que não os Estados Unidos, ao complexo de sentimentos que ele desencadeou entre os americanos. Quando, nos anos 60, Juracy Magalhães, um político de peso que já fora governador da Bahia (e que foi ministro das Relações Exteriores durante a ditadura), declarou que "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil", a frase era repetida como a mais infame demonstração da subserviência de que a esquerda acusava a direita.
Hoje são muitas as evidências de que, por um lado, qualquer tentativa de não-alinhamento com os interesses do Ocidente capitalista resultaria em monstruosas agressões às liberdades fundamentais, e de que, por outro lado, todo projeto nacionalista de independência econômica levaria a um fechamento do país à modernidade. Isso pode dar um ar de mero bom senso (e de poder de síntese) à frase de Juracy. mas não basta para legitimá-la plenamente. A bem da verdade, a frase repugna-me hoje talvez mais do que nunca: ela nos indica o caminho da desistência, da preguiça em face de possíveis responsabilidades históricas – além de sugerir que não há a possibilidade de conflito de interesses entre os dois países.
Ter tido o rock'n'roll como algo relativamente desprezível durante os anos decisivos da nossa formação - e, em contrapartida ter tido a bossa nova como trilha sonora da nossa rebeldia - significa, para nós, brasileiros da minha geração, o direito de imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do mundo. Direito que passa imediatamente a ser vivido) como um dever.
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