segunda-feira, 6 de março de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




07 - Hoje quem paga sou eu

Meu pai vivia rodeado por muita gente. Adorava compartilhar sua música com os colegas e conhecer as novidades da “concorrência”. No auge da criatividade, as músicas jorravam com facilidade, seu humor especialmente ácido e seu espírito natural de liderança atraíam as pessoas. Na mesma rua de nossa casa, na Ilha do Governador, morava Benedito Lacerda. Também morava lá o humorista Castro Barbosa, do PRK-30, programa estourado de audiência na Rádio Nacional. De Benedito Lacerda tenho recordações variadas, boas e más. Era dono de personalidade forte e autoritária. Apesar de boêmio, levava a sério a vida familiar. Tinha carinho imenso por meus pais, a ponto de se tornar meu padrinho de batismo e compadre de Dalva e Herivelto. Algumas vezes, nos fins de semana, meu pai e minha mãe me deixavam na casa do padrinho Benedito. De repente, comecei a não querer ir mais e a chorar quando queriam me deixar lá. Minha mãe, com jeitinho, acabou me convencendo a contar o que se passava: meu padrinho andava extrapolando sua autoridade e me batendo. Lembro-me de que morria de medo dele. Seu jeito de lidar com criança era muito pouco delicado. Em contrapartida, sendo uma das poucas pessoas com ascendência sobre o genioso Herivelto, minha mãe me contava que Benedito brigava muito com meu pai por causa da forma como a tratava, das brigas violentas e de como ele “dava bandeira” para Dalva das paqueras fora de casa. Para os amigos mais íntimos, os que frequentavam o Café Nice, o apelido de Herivelto era Garnisé, por ser de estatura baixa, falar e discutir como ninguém. Ele entrava no Nice, deixava minha mãe dentro do carro esperando, e ia beber e papear. Esquecia-se dela, e lá pelas tantas alguém lembrava: “Herivelto, a Dalva está dormindo no carro, à sua espera, homem!”. Ele dizia apenas: “Já estou indo!”. E esse “já estou indo” levava mais de uma hora. Benedito Lacerda, quando estava junto, brigava com ele e o mandava ir embora. Benedito acreditava no seguinte “conceito de família”: a boêmia da rua não pode comprometer a casa. Era a moral vigente da época: os homens mantinham seus “pecados” bem longe do lar, um chefe de família não podia perder a moral com a família. Do Café Nice guardo algumas tênues lembranças, era muito criança, embora o “frequentasse” com meus pais. Certas coisas ainda me vêm à mente. Uma das imagens fortes é da época de eleição, aquele movimento todo, muita discussão, e a maioria dos artistas torcendo pelo candidato Iedo Fiúza, do Partido Comunista. Lá conheci muitas pessoas que se tornaram personalidades importantes na música brasileira, como Ciro Monteiro, Lamartine Babo, entre outros. Dentre todos, meu pai nos falava com doçura sobre Noel Rosa, com quem conviveu num curto período. Noel era pessoa extremamente doce, dizia, mas complexada. Devido ao parto por fórceps, tinha um defeito no rosto: queixo totalmente para dentro e boca torta para o lado, o que o obrigava a comer só de um lado. Certa vez, estando no Café Nice, Herivelto insistia para Noel comer algo, pois quase não se alimentava. Noel, numa demonstração de confiança e intimidade com meu pai, pediu uma sopa e colocou a cadeira de modo que seu defeito ficasse voltado para a parede, assim a colher entrava pela boca sem ser notada por quem o observasse. Estavam comendo quando alguém se aproximou, querendo puxar papo com Noel. Herivelto tentou evitar a aproximação. Mas bastou isso para Noel parar, não comeu mais. Acreditase que cenas como essa desestimulavam Noel a se alimentar, concorrendo para contrair a tuberculose que tão cedo o levou. O Café Nice ficava onde hoje é a Caixa Econômica, na avenida Rio Branco, e foi cenário de incontáveis histórias da música popular brasileira, fatos importantes ou até molecagens dos artistas. Aparecia por lá com frequência algum compositor humilde, procurando alguém para escrever suas músicas em partituras. Numa dessas vezes, a “turminha” de sempre recebeu um sujeito e ouviu sua música, mas lhe recomendou voltar depois, pois ninguém ali sabia escrever notas musicais. Mais tarde, o compositor retornou e apresentaram-lhe o “maestro” encarregado de escrever sua música. A “turminha” já havia montado a brincadeira. Colocaram o compositor e o “maestro” sentados numa mesa, ao lado de um biombo. Atrás do biombo, Benedito Lacerda ouvia a música e escrevia tudo. Quando acabaram, o “maestro” o contestou, dizendo: “Não, senhor, esta música é um plágio. Esta música é do Benedito Lacerda. Você roubou a música do Benedito! Quer ver? Benedito, venha cá! Mostre aí aquela sua música nova, já todinha escrita, pro rapaz aqui! Cantarola para ele!”. Benedito mostrou a música, na maior cara de pau. O compositor, simplório, saiu arrasado do Café. Como poderia se rebelar ou discutir com a nata dos compositores? Coisas como essas eram frequentes, a edição musical engatinhava e não havia registro de música. Dinheiro de composição praticamente não existia, não havia a arrecadação de hoje. Herivelto respeitava muito Benedito. Além do mais, era pequeno, media cerca de 1,60 metro, e o compadre, muito grande, falava alto e grosso. Era engraçado os dois andando juntos: um bem alto e o outro bem baixo. Foram parceiros em dezenas de composições: “Olhos verdes” e “Ai, morena” são algumas mais famosas de que me lembro. Minha mãe contava um caso ocorrido com eles. Certa tarde, meu pai disse a Benedito que desejava fazer uma música falando do entardecer no morro, de forma mais lírica, mais sentimental, sem papo de Carnaval. Nessa época, era costume das rádios tocar às seis da tarde músicas sacras, como a “Ave Maria” de Gounod. Era bonito ver o entardecer chegando, o sol sumindo no horizonte, as luzes se acendendo, e as rádios tocando aquela música suave. Essa foi a visão mais forte de Herivelto ao compor “Ave Maria no morro” — a visão do poeta. Ele contava que os primeiros versos que pintaram foram estes dois: E quando o morro escurece, Elevo a Deus uma prece Foi depois de ver um grupo de pessoas rezando numa capela, ao cair da tarde. Aos poucos, foram surgindo outros versos, como “sinfonia de pardais/ anunciando o anoitecer”, influenciado por sua lembrança do barulho dos pardais aninhando-se nas árvores da praça Tiradentes, no final da tarde, onde ficava jogando bilhar. Quando Herivelto mostrou a Benedito os primeiros sons da música, escutou: “Oh, compadre! Isso é música de igreja, eu não entro nessa parceria nem a pau!”. Herivelto então terminou a canção sozinho. 
O Trio de Ouro começou a mostrá-la ao público. A reação foi ótima. Logo depois a gravaram na Odeon. Quando “Ave Maria no morro” bateu no mercado, foi um estouro.

Barracão de zinco sem telhado
Sem pintura lá no morro
Barracão é bangalô
Lá não existe felicidade de arranha-céu
Pois quem mora lá no morro
Já vive pertinho do céu
Tem alvorada, tem passarada, amanhecer
Sinfonia de pardais anunciando o anoitecer
E o morro inteiro
No fim do dia Reza uma prece,
Ave Maria Ave Maria, Ave
E quando o morro escurece
Eleva a Deus uma prece
Ave Maria

Benedito, parceiro em tantas obras de meu pai, logo gritou: “Ô, Herivelto, eu estou nesta parceria também, né?!”. “Não, Benedito, nesta você não está, esta é ‘música de igreja’, lembra?” Por causa da interpretação de “Ave Maria no morro”, Dalva aperfeiçoou os agudos, os trinados. Esse seu modo de interpretar despertou a atenção do maior cantor da época, Francisco Alves. Foi ele quem criou algumas das obras mais famosas de meu pai, como “Caminhemos”, “Ela”, ”Isaura”, entre outras. Dalva e Francisco Alves formaram um dos pares mais famosos da MPB. Juntos gravaram “Brasil”, de Benedito Lacerda, “Dois corações” e “Timoneiro”, de Herivelto, músicas que ficaram para sempre na história da discografia brasileira. Eram gravações lindíssimas, numa época em que um homem e uma mulher, trabalhando em dupla, no disco, no cinema, eram garantia de excelente resultado comercial. Chico Alves era pessoa extremamente altiva. De postura empertigada, falava como cantava: empostado. Foi um dos artistas de sua época que melhor souberam ganhar dinheiro. De hábitos bem mais sofisticados que a média dos artistas, criava cavalos de corrida em seu haras, em Miguel Pereira, região serrana do Rio. Tinha carinho especial por meus pais, ia muito a nossa casa e nos convidava sempre para ir a seu haras. Eu e Bily adorávamos o passeio: lá podíamos brincar à vontade, andávamos nos cavalos mais mansos, bebíamos leite quentinho das vacas. E, o melhor de tudo, tínhamos nossos pais só para nós, um fim de semana inteirinho. Coisa rara. Ao morrer prematuramente num acidente de carro, Chico recebeu de Herivelto e seu parceiro David Nasser uma bela homenagem traduzida no samba-canção “Francisco Alves”, gravado por Nelson Gonçalves.

Até  a lua do Rio
Num céu tranquilo e vazio
Não inspira mais amor
O violão desafina
Porque chora em cada esquina
A falta de seu cantor
Escravo da melodia
Ele cantando escrevia
O que na alma brotava
Subindo os degraus da glória
Ele escreveu a história
Da cidade que adorava
O Rio foi o seu berço
O violão foi o terço
O samba a sua oração
Sambista de um mundo novo
Da alma simples de um povo
Que dança de pé no chão
Velho Chico tu recordas
Um violão cujas cordas
A mão de Deus rebentou
Porque falta ao samba agora
A lágrima que o samba chora
Na voz que a chama apagou

Virgínia Lane trabalhou com meus pais nos diversos cassinos espalhados pelo país: Urca, Quitandinha, Pampulha e Poços de Caldas. No Cassino da Urca, no show Vem, a Bahia te espera, com direção de Herivelto e Chianca de Garcia, tinha como colegas o Trio de Ouro, Grande Otelo, Linda Batista e o maestro Vicente Paiva. Ainda menor de idade, Virgínia trabalhava com autorização especial do juiz de menores. Muito moleca e saltitante nos seus 15 anos, ganhou de Herivelto uma música especialmente composta para ela cantar no show, “A pulga”, uma canção brejeira que ela, com sua atuação apimentada, transformava num sucesso de palco:

Não fique aflita, senhorita
Se a pulga várias vezes a morder
Esse bicho é audaz e atrevido
E dono de nós se julga
Mas se você arranjar um bom marido
Ele caça a sua pulga…

Em depoimento carinhoso, Virgínia recorda que minha mãe vivia falando dos filhos e me levava com frequência para os camarins, pois, sendo o mais velho, aguentava ficar acordado até noite alta. “Dalva demonstrava uma afinidade muito grande com o Pery. Qualquer coisa era com o Pery.” Virgínia também me fez um comentário inédito: foi a única pessoa a se referir a meu pai como um marido carinhoso com minha mãe. Disse-me que se lembrava dele com ela sentada em seu colo ou ele tocando violão para ela. Todas as pessoas com quem conversei em geral comentam que havia entre meu pai e minha mãe um ciúme quase doentio. E que era o grande causador das brigas. A cantora Emilinha Borba, outra apaixonada por Dalva, me contou que conheceu minha mãe quando iniciava a carreira. Ela se lembra de minha mãe grávida, trabalhando nos shows. Achava meu pai muito sisudo, tinha medo de falar com ele. Ficava sabendo, no camarim do cassino, das brigas deles. Mas nunca viu nenhuma. Um dia, estavam conversando no camarim e Dalva se abriu com ela, queixando-se do gênio de Herivelto. Vendo Dalva tão frágil e apaixonada, Emilinha resolveu dar uma mãozinha e prometeu conversar com Herivelto na primeira oportunidade. Alguns dias depois, criou coragem e procurou meu pai. Disse a ele que precisava tratar melhor a Dalva, moça tão bonita e dedicada a ele, ao trabalho deles. E, displicentemente, acrescentou: “Sabe, Herivelto? Se você não tratar melhor a Dalva, vai acabar perdendo-a… e olha que eu sei de um pretendente, um milionário, que faria de tudo para ter alguma chance com ela!”. Na semana seguinte, Dalva a procurou, toda alegre, querendo saber o que ela havia falado a Herivelto, pois o homem tinha mudado “da água pro vinho”. Estava bem manso e atencioso. Emilinha respondeu bem marota: “Ah, minha amiga! Pura psicologia feminina!”. A música brasileira era mesmo uma grande família. Todos se frequentavam, todos eram amigos de meus pais. Pelo menos, enquanto estavam juntos. A separação deles iria provocar um racha nessa quase unanimidade. Ao compor “Cabelos brancos”, a intenção de Herivelto era que fosse música de Carnaval, rápida e dançante. E assim foi gravada pelo conjunto Quatro Ases e Um Coringa, com boa repercussão. Quando Sílvio Caldas a lançou, de forma mais sentimental, é que passou a ser vista como música romântica e se tornou carro-chefe do repertório de Herivelto e do intérprete.

Não falem dessa mulher perto de mim
Não falem pra não lembrar minha dor
Já fui moço, já gozei a mocidade
Se me lembro dela, me dá saudade
Por ela vivo aos trancos e barrancos
Respeite ao menos meus cabelos brancos
Ninguém viveu a vida que eu vivi
Ninguém sofreu na vida o que eu sofri
As lágrimas sentidas
Os meus sorrisos francos
Refletem-se hoje em dia
Nos meus cabelos brancos
E agora em homenagem ao meu fim 
Não falem dessa mulher perto de mim

De Sílvio Caldas meu pai costumava falar: “Um boa-vida, nunca foi dedicado ao trabalho, chegava às raias da irresponsabilidade. Assumia compromissos, não cumpria, faltava a tudo o que com ele fosse combinado, mas foi um dos maiores cantores que este país já conheceu”. Certa vez, Herivelto acertou uma gravação com Sílvio. Tudo combinado para as nove da manhã. No dia seguinte, nada de Sílvio aparecer. Meu pai esperou, esperou. Foi até onde Sílvio morava e… lá estava ele, dormindo. Herivelto, superdisciplinado, deu uma bronca daquelas, tirou-o da cama, colocou-o debaixo do chuveiro — acho que o porre tinha sido brabo — e carregou-o para o estúdio, onde toda a equipe os aguardava. Depois disso, quando tinha algum compromisso de gravação cedo com ele, na noite anterior Herivelto não o largava. Levava-o para dormir em nossa casa. Ficava grudado nele até que chegasse a hora de ir para o estúdio. Meu pai contava também que Sílvio jogava o último tostão no cassino. Ficava até sem dinheiro para a condução. Em plena madrugada, pedindo abrigo, Sílvio ia bater na janela do quarto de meus pais na Urca — nosso apartamento era térreo. Herivelto acordava, botava-o para dormir na sala e ainda dava dinheiro para o ônibus do dia seguinte. Minha mãe gostava da forma gentil e quase humilde com que aquele amigo a tratava. Lembro-me bem dele: jeito calmo, falar pausado e caminhar lento. Seu nome quase ninguém conhece, Alfredo. Mas basta dizer Pixinguinha. Escrevia muitas das partituras musicais que o Trio de Ouro cantava, transpondo para o papel os arranjos criados por meu pai. Outro maestro estimado por Herivelto era Radamés Gnatalli. Admirador de Herivelto, sempre aceitava seus palpites nos arranjos e chegou a aconselhá-lo a estudar música, tal como havia feito Villa-Lobos. Mas, ao conviver melhor com a obra e a criatividade de Herivelto, disse-lhe para esquecer o conselho, pois poderia comprometer-lhe o talento, totalmente intuitivo. 

***

Elegância era a marca registrada de Ataulfo Alves. Postura impecável, ternos de linho 120. Amigo tanto de Dalva quanto de Herivelto, procurava ser sempre imparcial quando explodiam as brigas do casal. Grande compositor, conviveu muito com meus pais. Como Herivelto e a maioria dos compositores contemporâneos, Ataulfo também não sabia música. Toda a sua criatividade era intuitiva, mal arranhava o violão. Vendo o sucesso do trabalho de Herivelto com a Escola de Samba de Salão, Ataulfo também formou seu próprio grupo, reunindo algumas mulatas, que chamava de “Pastoras”. Amante do sul do Brasil, Herivelto escreveu com Pedro de Almeida “Gaúcho velho”, a música que se tornou um hino dos gaúchos:

Gaúcho velho como eu, criado a bruto
Que não se enreda nas maneias do amor
Não sei por que o coração deste matuto
Caiu no pialo deste anjo encantador
Ai, Rio Grande, minha bombacha, meu cavalo alazão
Ai, Rio Grande, esta saudade amarga mais que o chimarrão
Lá pelas tantas encilhei meu alazão
De légua em légua ele faz
De upa em upa

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Eu carreguei aquela china na garupa Ai, Rio Grande, minha bombacha, meu cavalo alazão Ai, Rio Grande, esta saudade amarga mais que o chimarrão Nessas boêmias pela região sulista, Herivelto conheceu o compositor Lupicínio Rodrigues, de quem se tornou amigo. Por insistência de Lupe, como também o chamavam, Herivelto gravou uma composição sua em 1951, apesar de não ser adequada para as vocalizações do Trio. Era o samba-canção “Vingança”. Não aconteceu muita coisa, tocou pouco nas rádios. Mas o suficiente para a cantora Linda Batista se apaixonar por ela e querer gravá-la. Porém, havia uma regra na época: artistas de uma mesma gravadora não podiam regravar música já gravada por um colega sem autorização do outro. Minha primeira “namorada” procurou Herivelto, amigo dela e de Lupe, e meu pai liberou a música. A gravação de Linda estourou, tornando “Vingança” um grande clássico e projetando Lupicínio Rodrigues para o cenário musical nacional. Marino Pinto, outro grande compositor, era unha e carne com meu pai. Conheceram-se no Café Nice e o frequentaram muito juntos, apesar de Marino não beber nada. Meu pai dizia que, “apesar desse defeito”, Marino era grande companheiro, com uma conversa brilhante. Era figura obrigatória do macarrão de nossa casa, e do sofá da sala, nas madrugadas. Seu apelido era Ovo Quente. Apelido dado por Ciro Monteiro, figura fantástica e divertida. A cara de bonachão, a pele muito morena, cabeça grande, pouco maior que o normal, valeram a Ciro, por sua vez, o apelido de Formigão. Era engraçado ver Ciro Monteiro acompanhando sambas na caixa de fósforos, suas mãozonas batucando naquela caixinha. Afável, sorridente, vivia fazendo piada de tudo. Ciro era o grande arauto da alegria, do bom humor. Foi o maior gênio nos trocadilhos de que se tem notícia naquelas boêmias. Fazia o Café Nice chorar de rir com suas criações. E ajudava bem a esvaziar o estoque de bebidas do bar. Ciro cansou de ir bater papo no carro com Dalva, enquanto Herivelto bebia e ela mofava esperando-o. Ele gostava muito de Dalva: tratava-a carinhosamente de Lagartixa. Acredita-se que o apelido de Garnisé ou Galinho Garnisé, de Herivelto, tenha sido posto por Ciro, pois era ele quem “batizava” todo mundo. Exemplos de apelidos desse pessoal da música, alguns com origem explicável, outros que só podemos imaginar: Nelson Gonçalves — Metralha, pela gagueira; Gilberto Alves — Palha de Aço, talvez pelo cabelo crespo; Orlando Silva — Chorão, e basta ouvi-lo cantar para entender; Anísio Silva — Maracujá de Gaveta, pela pele enrugada; Ângela Maria — Sapoti, pela morenice; César de Alencar — Cabide; Jorge Goulart — Boca de Caçapa, e quem se lembra do tamanho de sua boca entende. A maioria era de autoria do bem-humorado Ciro Monteiro. Incontáveis manhãs, para ir à escola, nós tínhamos de desviar de um hóspede assíduo dormindo no chão da sala. Era um cantor, por muitos considerado um dos maiores de todos os tempos da MPB: Orlando Silva, o “Cantor das Multidões”, nome dado pelo radialista César Ladeira. Tinha um caso com a atriz Zezé Fonseca, os dois não saíam da companhia de Dalva e Herivelto. Normalmente, os amigos de meu pai pertenciam à “turma do copo”, isto é, consumidores vorazes de bebida. A preferida era o conhaque Macieira. Entrava muito pouco uísque no Brasil nesse tempo. Mas o caso de Orlando Silva era diferente: estava mergulhado nos tóxicos “pesados”. Usava heroína. Os amigos, meu pai principalmente, tentavam tirá-lo disso, porém não adiantava. Seu envolvimento já estava muito adiantado. Meu pai nos contava que ele carregava a droga no sapato. Um dia, os dois casais estavam batendo papo em casa. Orlando foi ao banheiro e começou a demorar. Nada de voltar. Preocupado, meu pai forçou a porta: Orlando estava desmaiado no chão, com agulha e seringa injetados na veia. Minha mãe sempre comentava como era chocante ver um amigo naquele estado. Em outra ocasião, iam minha mãe e Orlando Silva com um grupo de artistas fazer um show em cidade próxima do Rio. Pararam na estrada para abastecer e tomar café. Na hora de ir embora, deram pela falta de Orlando. Dalva, já sabendo o que acontecia quando ele sumia, saltou do automóvel, pediu ajuda para o motorista e foi procurá-lo no banheiro do posto de gasolina. Bateu na porta, e nada. Quando conseguiram abri-la, depararam com Orlando completamente dopado, mais uma vez com a seringa na veia. Zezé acabou cansando dessa vida maluca e, apaixonada ainda, foi para a Argentina dar um tempo, para esquecer Orlando. Muito bonita, acabou tendo um caso com o presidente Perón. Herivelto amava festas, especialmente quando podia brilhar com o Trio ou com sua Escola de Samba. Era sempre chamado para animar grandes festas nas casas dos milionários cariocas, onde se apresentava ao lado de Dalva. Conduzindo sua Escola de Samba de Salão à beira da piscina, oferecia um espetáculo inesquecível. Quase sempre nessas festas, na casa do jornalista Roberto Marinho ou de outras personalidades importantes, a figura obrigatória ao lado de meu pai e minha mãe era Grande Otelo, a quem cabiam a animação e a apresentação do show. Meu pai também gostava bastante de outro artista como animador de seus shows, o Gasolina. Era um “neguinho saliente”, como Herivelto dizia, vibrante, alegre e “pau pra toda obra”. Gasolina cantava, contava piada, “enchia linguiça” quando o show se atrasava. Lembro-me de Gasolina com carinho especial. Grande profissional, grande ser humano. Que Deus guarde o “neguinho saliente”.

* * *

Ele era tão grande, com mãos tão desmesuradas, que todos pensavam tratar-se de segurança do meu pai. Criança, eu ficava impressionado com o tamanho daquele outro crioulo da Escola de Samba de Herivelto. Passei anos sem vê-lo, apenas tendo notícias de sua carreira, de suas belíssimas composições. Um dia, estou no Bar Monsieur Pujol, de Alberico Campana, em Ipanema, com Mièle e Ronaldo Bôscoli, à cata de sugestões para meu novo disco na Odeon, quando sou abordado pelo grandalhão, gesticulando com aquelas mãozorras. Dizia que havia feito um samba para mim. Quis ouvir. Aí, ele me abraçou, e eu recebi nos ombros e nas costas, por suas mãos, todas as notas do samba:

Para lavar a roupa da minha sinhá
Para lavar a roupa da minha sinhá
Sabão um pedacinho assim
A água um pinguinho assim
O tanque, um tanquinho assim
E a roupa um tantão assim
Para lavar a roupa…

Já sabem o nome dele: Monsueto Menezes. Adorei a música, gravei imediatamente. Foi um de meus primeiros sucessos.  Eu tinha paixão por Monsueto. Todos nós. E não dá para esquecer aquela mão de Monsueto batucando em minhas costas e nos ombros, cuspindo em meu ouvido, aquele bafo de cachaça!, e me deixando zonzo com aquele batuque corporal. Anos depois, Monsueto começou a pintar uns quadros primitivos. Então, quando a dureza apertava, em vez de pedir dinheiro emprestado, oferecia por qualquer dinheiro algum quadro. E a gente “comprava”. Cheguei a ter uns oito quadros do “Monsa” em casa. Minha mãe, mais alguns.

* * *

Herivelto demonstrava todo o carinho pelos amigos, adorava tê-los a sua volta e pagar as despesas, com grande generosidade. Isso atraía os chamados “chupins”, os que estavam por perto apenas pelo sucesso e pelas noitadas patrocinadas pelo maior compositor da época. Lembro-me de muitas vezes em  que, após um show ou ensaio, ou mesmo quando apenas saía para dar uma volta e encontrava o pessoal, Herivelto levava todos para um restaurante: bebida e comida rolavam à vontade. Ele pagava tudo. David Nasser, mais tarde parceiro de meu pai em grandes sucessos, chegou a escrever a letra de um tango baseado nas generosas boêmias de meu pai: “Hoje quem paga sou eu”, gravado por Nelson Gonçalves. Antigamente nos meus tempos de ventura Quando eu voltava do trabalho para o lar Deste bar alguém gritava com ironia “Entra mano, o Fulano vai pagar!” Havia sempre alguém pagando um trago Pelo simples direito de falar Havia sempre uma tragédia entre dois copos Nas gargalhadas de um infeliz a soluçar Eu sabia que era um estranho nesse meio Um estrangeiro na fronteira deste bar Mas bebia, outro pagava e eu partia Para o mundo abençoado do meu lar Hoje faço desse bar a sucursal Do meu lar que atualmente não exite Tenho minha história pra contar Uma história que é igual, amarga e triste Sou apenas uma sombra que mergulha Num oceano de bebida o seu passado Faço parte desta estranha confraria Do vermute, do conhaque, do traçado Mas se passa pela rua algum amigo Em cuja porta a desgraça não bateu Digo que entre nesse bar, beba comigo Hoje quem paga sou eu


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