domingo, 5 de março de 2017

AOS 92 ANOS, A SOPRANO MARIA LUCIA GODOY GRAVA CD DE ACALANTOS

Dedicado ao escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós, projeto pretende divulgar a música de qualidade

Por Ana Clara Brant



Acalanto – ato de ninar acompanhado de música para fazer a criança adormecer – deu nome à canção para embalar bebês. Entre as mais conhecidas está aquela composta por Dorival Caymmi para a filha Nana, neném que tinha dificuldades de dormir. “Boi, boi, boi/ Boi da cara preta/ Pega essa menina/ Que tem medo de careta” são os versos deste clássico.

Inspirada no mote do aconchego, Maria Lucia Godoy, de 92 anos, considerada uma das maiores cantores líricas brasileiras do século 20, decidiu gravar o disco Acalantos. O repertório reúne sete “cantiguinhas” criadas por ela, além de 14 acalantos de Claudio Santoro, César Guerra-Peixe, Vinicius de Moraes, Lorenzo Fernández e Paurilo Barroso, entre outros compositores.

“As crianças precisam conhecer e escutar músicas como essas. A garotada de hoje não ouve coisas de muita qualidade. Esse disco, que fiz com muito carinho, não é só para elas, mas para pessoas de qualquer idade”, ressalta Maria Lucia.

Com lançamento previsto para março e produzido pelo sobrinho da artista, Henrique Godoy, o álbum foi inspirado em um grande amigo dela, o escritor Bartolomeu Campos de Queirós (1944-2012), a quem o projeto é dedicado.

“Bartolomeu era uma pessoa especial, incomum. Não perdia um concerto meu. Ele sempre me incentivou a gravar para as crianças, e sempre protelei. Finalmente o CD está pronto. É como escrevi no encarte: ele está agora ouvindo esse trabalho, deitado confortavelmente em uma nuvem f

Detalhe: em setembro do ano passado, a “menina bobona” recebeu o título de doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Com arranjos dos compositores e instrumentistas mineiros Chico Amaral e Celso Moreira, o álbum traz a faixa Cantilena – O rei mandou me chamar, parceria de Joaquim Viana San-Martin e Heitor Villa-Lobos. Conhecido por criar várias peças destinadas às crianças, o carioca Villa (1887-1959) sempre se preocupou com a educação musical dos pequenos. Maria Lucia é considerada uma das intérpretes mais importantes de sua obra.

Aliás, é da cantora mineira a gravação mais conhecida das Bachianas brasileiras nº 5, obra-prima do compositor carioca. “Cheguei a conhecê-lo, mas era mais próxima de sua esposa, a Lucília. Tenho a impressão de que todas as músicas do Villa foram feitas especialmente pra mim, porque adoro cantá-las, especialmente Floresta do Amazonas”, destaca.

Maria Lucia se apresentou com algumas das principais orquestras do mundo. “Um dos concertos mais marcantes para mim foi no Carnegie Hall, em Nova York, com o maestro Leopold Stokowski”, relembra.


PROFESSORA 

A ligação com o universo infantil vem de longe. Durante dois anos, Maria Lucia deu aulas no jardim de infância da Escola Estadual Delfim Moreira, em Belo Horizonte, para onde se mudou ainda menina, vinda de Mesquita, cidade no Vale do Aço. A soprano publicou cinco livros para crianças. São de Ninguém reparou na primavera (Editora Lê) os poemas musicados do CD Acalantos.

Um dos mais singelos é O elefante. “Quando era criança, lá pelos 10 anos, fui ao circo pela primeira vez e conheci o elefante de perto. Fiquei muito emocionada de vê-lo tão manso, tão grandão, fazendo acrobacias difíceis sobre o tablado pequenino, onde mal cabia. Agora, felizmente, há uma lei proibindo a exibição desses animais no circo. Adorei essa lei!”, festeja.

As palavras entraram na vida de Maria Lucia Godoy antes da música. Com 7 anos, ela já escrevia os primeiros versos. “Sempre gostei de poesia. Quem sabe faço mais um livrinho desses, vamos ver... Não sou muito boa nisso não”, avisa, modestamente.


DRUMMOND 

A cantora chegou a ganhar versos de Carlos Drummond de Andrade (“Lembrar as serras de Minas/ Demolidas, como dói!/ Mas me consolo se escuto Maria Lucia Godoy”). Paulo Mendes Campos também escreveu sobre ela: “Desde menina, Maria Lucia Godoy desaparece no canto/ Suprime a personalidade quando canta/ Transforma-se no canto, como a ave que decola do ramo e vira voo”.
As primeiras lembranças musicais da artista vieram dos pais, Romeu e Maria (a dona Nenê), que adoravam cantar serestas. Praticamente toda a família canta ou toca algum instrumento.

“Papai tinha uma voz maravilhosa, de barítono. Ele e mamãe sempre me incentivaram, tanto que se mudaram de mala e cuia com os 12 filhos para o Rio de Janeiro para que pudesse me aprimorar. Todo mundo aqui de casa gosta de música. O Madrigal (Renascentista, coral criado em 1956, em Belo Horizonte) sempre contou com os Godoy, sobretudo nos áureos tempos”, recorda ela.


SHOWS 

Por conta da idade, Maria Lucia Godoy não tem mais a agenda atribulada que marcou sua carreira. Porém, de vez em quando ela faz pequenos shows. “Tenho cantado muito pouco, ainda mais porque ando meio gripada”, explica.
A rouquidão causada pelo resfriado não foi empecilho para a palhinha com que ela brindou a equipe de reportagem, com direito aos famosos solfejos. Maria Lúcia também cantou Travessia (Milton Nascimento e Fernando Brant) para a repórter e o fotógrafo.

“Sempre cantei naturalmente, a vida toda. A voz, que já veio quase pronta, era muito boa, graças a Deus. A música está tão presente na minha cabeça, no meu ser e no meu coração... Quando canto, preciso não apenas da voz, mas da expressão e do conteúdo da música. Talvez isso tenha alguma força na minha maneira de cantar. Amo o que faço”, celebra. 


O AMIGO

Nascido em Pará de Minas, em 1944, Bartolomeu Campos de Queirós (foto) passou a infância em Papagaios, no Centro-Oeste do estado. De lá vieram lembranças que se tornaram marcantes na obra do escritor, que publicou mais de 60 livros, a maioria dedicada ao público infantojuvenil. O primeiro foi O peixe e o pássaro, lançado em 1971. Entre seus trabalhos mais conhecidos estão Ciganos, de 1982; Indez, de 1989; e Por parte de pai, de 1995 – todos de cunho autobiográfico. O autor morreu em 2012, em decorrência de uma insuficiência renal. Seu último romance foi a obra-prima Vermelho amargo, cujo narrador revisita a infância marcada pela ausência da mãe e pela frieza da madrasta.

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