segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*



Dedicatória

Dedico este livro a todas as crianças que tiveram uma infância atribulada e traumática, e nem por isso deixaram de amar a seus pais, a vida, e de respeitar as leis do Criador, tornando-se maiores que suas dores. E, em especial, aos meus filhos Paula e Bernardo, na esperança de que entendam melhor o caminhar de seu pai pela vida.

Pery Ribeiro


Ao nosso filho Bernardo , dedico este trabalho que muitas noites me roubou de sua companhia, para dar forma à emoção e à sinceridade desse relato. Que a sua descoberta de experiências tão intensamente vividas por seu pai lhe traga ainda mais razão para o orgulho e a admiração que nutre por ele. A Paulinha , torcendo para que seu coração se abra para curtir o amor que seu pai sempre lhe ofereceu. Ao Herivelto, que sempre cantei, pouco conheci e muito respeitei; e a Dalva, a quem muito admiro pela autenticidade; quero que recebam, onde for, a nossa homenagem.

Ana Duarte



PEQUENO TRAILER DE UMA GRANDE HISTÓRIA

Esta é a melhor “memória” de um artista da música popular brasileira publicada em livro até hoje. Minhas duas estrelas é uma memória do cantor Pery Ribeiro a respeito de seus pais, Dalva e Herivelto. Dalva, naturalmente, era a cantora Dalva de Oliveira, e Herivelto, o compositor e também cantor Herivelto Martins — nomes que imperaram durante décadas nos palcos, nos discos e no rádio. Esta não é uma biografia deles, embora grande parte de suas vidas esteja contada aqui — inclusive nos detalhes quase inconfessáveis. Não é também uma autobiografia de Pery, embora seja ele o narrador. É exatamente o que o nome indica: uma “memória”, um relato vivido, de alguém que estava lá e que viajou ao extremo de suas lembranças para recuperar uma experiência — e poucos filhos de celebridades tiveram uma experiência que os feriu tão fundo.

Ao mesmo tempo, não é um derramamento espontâneo ou caótico, como se pode fazer no psicanalista ou no botequim. É uma narrativa emocionada, mas adulta e ordenada, que refaz a história de dois artistas deslumbrantes, de como eles quase se destruíram um ao outro e de como essa guerra atingiu todos à sua volta. É também a tentativa de um filho procurar entender o que levou seus pais a infligir dor mútua depois da separação, agredindo-se publicamente com palavras e canções, dia após dia, durante tantos anos. E, o mais importante: é uma narrativa que seria empolgante de qualquer maneira, mesmo que não tivesse protagonistas como a “Estrela Dalva” e o fabuloso Herivelto.

Acontece que eles eram Dalva e Herivelto, e até quem chegou ontem à música brasileira ouviu os ecos da retumbante passagem de ambos pela História. Sabe que Herivelto foi, muito antes de Vinicius de Moraes, o “branco mais preto do Brasil”, pioneiro da Estação Primeira de Mangueira, introdutor do apito no samba, líder do conjunto Trio de ouro e autor (sozinho ou com parceiros) de uma obra que exigiria vários volumes de um songbook para lhe fazer justiça: “Ave Maria no morro”, “Segredo”, “Acorda, escola de samba”, “Minueto”, “A Lapa”, “Isaura”, “Lá em Mangueira”, “Praça Onze”, “Caminhemos”, “Cabelos brancos”, “Carlos Gardel”, “Hoje quem paga sou eu” e muitos outros sambas e sambas-canções que se tornaram standards brasileiros. Mas sabe tam-bém que, com todo esse cartel, a maior criação de Herivelto Martins foi Dalva de Oliveira. Ele não se limitou a “descobri-la” e a se casar com ela. Moldou-a à sua disciplina, ensinou-a a se vestir, a entrar e a sair do palco, a hipnotizar uma plateia e lhe deu um repertório com que as outras cantoras nem ousavam sonhar. Só não a ensinou a cantar — nem precisava porque, filha de um clarinetista, Dalva já tinha a musicalidade absoluta em seu dna. Com Herivelto (e mais o sambista Nilo Chagas, formando o Trio de Ouro), eles saltaram dos teatros e cortiços da Praça Tiradentes, no Rio, para o inacreditável luxo das apresentações nos cassinos e hotéis da década de 1940, o conforto dos apartamentos na Urca, a adoração do público, o respeito dos poderosos e a admiração dos colegas (um deles, Villa-Lobos).

O menino Pery — nascido em 1937, ainda na pobreza do cortiço — descreve a ascensão de seus pais à glória e a sua própria atuação como coadjuvante infantil daquele mundo. Aos quatro anos, cantou em público pela primeira vez, para dona Darcy Vargas, mulher do ditador do Brasil, no Teatro Municipal; aos cinco, dublou o anãozinho Dengoso enquanto sua mãe fazia a voz da heroína na versão nacional do desenho de Disney Branca de Neve e os sete anões. Também aos cinco, foi “dirigido” por Orson Welles, que decidiu filmar o Carnaval carioca pelos olhos de uma criança (os dele); e, antes dos dez anos, já conhecera suítes de hotéis indescritíveis, como o Quitandinha, descera de bunda, degrau por degrau, escadarias acarpetadas, e sentira o perfume de mulheres deslumbrantes que o pegavam no colo. Pelas palavras de Pery, penetramos nesses hotéis, sentimos aquele perfume. Os habitués do apartamento de seus pais eram Grande Otelo, Dorival Cay mmi, Linda Batista, Francisco Alves, Orlando Silva, Ciro Monteiro, Emilinha Borba, Pixinguinha, Dick Farney, Nelson Gonçalves. Seus colegas de trabalho no cassino da Urca (e que o pequeno Pery, escondido, ouvia extasiado das coxias) eram Bing Crosby, Carmen Miranda, Jean Sablon, Charles Trenet, Josephine Baker. Pery via seus pais, bonitos e chiquérrimos no palco, ao lado daqueles deuses internacionais, e não podia deixar de se extasiar: eles eram seus pais. Aquele mundo iria durar para sempre.

E, de repente (assim mesmo, de repente), em fins de 1949, quando ele mal completara doze anos, o mundo acabou. Tudo que Pery nem pressentia — as trevas que se instalavam sobre sua família assim que as luzes do palco se apagavam — explodiu. Até então, era como se fizessem parte da vida a frieza de Herivelto como pai, as tremendas surras de cinto que ele lhe aplicava e as incontroláveis explosões de cólera contra toda a família. Muitas passagens dilacerantes marcaram o jovem Pery (prepare-se para se chocar). Ele apenas assistia a tudo, sem entender o que acontecia. Sem entender também passividade de Dalva, que fingia ignorar as inúmeras escapadas amorosas de Herivelto. Um dia, uma dessas escapadas se transformou numa paixão que fez Herivelto sair de casa para sempre. E, então, começou a grande guerra entre dois monstros sagrados da música brasileira. Quando Dalva tentou refazer sua vida, inclusive buscando um novo companheiro, Herivelto desfechou um ataque em forma de uma série de artigos no Diário da Noite, escritos em parceria com o influente e
maldoso repórter David Nasser. Com este, ou sozinho, passou a se referir veladamente a Dalva nas letras de suas músicas, estigmatizando-a como a mulher que “errara” — eufemismo de então para adultério.

Mesmo tendo contra si um jornal de Assis Chateaubriand e o peso das canções de Herivelto, Dalva nunca disse uma palavra em sua defesa. E também não precisou: outros compositores, como Ataulfo Alves, Marino Pinto, Oswaldo Martins, Paulo Soledade, Humberto Teixeira, Nelson Cavaquinho, muitos outros — a nata dos autores da época —, passaram a fazer canções para que ela “respondesse” às acusações de Herivelto. Canções contundentes, terríveis, capazes de machucar — de ambos os lados. Os segredos nem precisavam escapar das quatro paredes, porque estas eram de vidro. Durante anos, o público acompanhou aquele confronto, ora torcendo por um, ora por outro, como se
fosse uma radionovela musical — como se não fosse de verdade. Ninguém parava para pensar no que estaria acontecendo à cabeça de Pery e do caçula Bily, filhos de Herivelto e Dalva. Separados de seus pais por despacho da Vara de Família, viram-se jogados em internatos e casas de parentes, onde ficavam expostos a todo tipo de humilhação e perguntas (“De que lado vocês estão?”, “É verdade que…?”). Eram filhos de pais famosos, e os artigos no Diário da Noite os deixavam nus diante da perversidade das outras crianças. “Bily e eu passamos a nos agarrar um ao outro”, escreve Pery. “Se já éramos unidos, ficamos mais ainda. Numa esperança infantil, sonhávamos com um milagre que desse um fim àquele drama.” Mas o drama parecia não ter fim.

Contra todas as expectativas, Dalva, sem Herivelto, encontrou a sua verdadeira voz e se tornou maior ainda do que nos tempos do Trio de uro. Numa saraivada de sucessos, lançou “Tudo acabado” (J. Piedade e Oswaldo Martins), “Errei, sim” (Ataulfo Alves), “Palhaço” (Nelson Cavaquinho, Oswaldo Martins e Washington), “Que será?” (Marino Pinto e Mário Rossi), “Calúnia” (Marino Pinto e Paulo Soledade) — todas estas “respostas” a Herivelto —, “Olhos verdes” (Vicente Paiva), “Rio de Janeiro” (Ary Barroso), “Zum-zum” (Fernando Lobo e Paulo Soledade), “Estrela do mar” (Marino Pinto e Paulo Soledade),
“Kalu” (Humberto Teixeira), “Neste mesmo lugar” (Klecius Caldas e Armando Cavalcanti)…
a lista não teria fim. A Rádio Nacional a declarou sua rainha. Dalva gravou no estúdio da Abbey Road, em Londres, com a orquestra de Roberto Inglez; foi sucesso na Argentina acompanhada por Francisco Canaro, tornou-se uma especialista em boleros e tangos. E, nos anos 60, quando a música brasileira tomou rumos que poderiam tê-la sepultado, ressurgiu espetacularmente com as últimas grandes canções feitas para o Carnaval: “Rancho da Praça Onze” (João Roberto Kelly e Francisco Any sio), em 1965; “Máscara negra” (Zé Kéti e Pereira Matos), em 1967; e “Bandeira branca” (Max Nunes e Laércio Alves), em 1970.

Herivelto nunca se conformou com que sua criação tivesse vida própria e atingisse dimensões muito maiores que as projetadas pelo criador — e ali começou novo drama: o da sua lenta e dolorosa decadência como artista e como homem. Um drama também para Pery, que levou as décadas seguintes tentando penetrar na carapaça daquele homem (tão cordial e aberto aos amigos), cujo amor represado — aos filhos e, segundo os amigos, à própria Dalva — devia lhe dilacerar a alma. Mas, enquanto Herivelto tentava a custo manter-se à tona, Dalva não percebia que seu enorme sucesso já começava a ser minado por um inimigo terrível: o alcoolismo. A tradicional ignorância dos familiares e médicos brasileiros a respeito dos mecanismos dessa doença fez com que aquilo tivesse o desfecho inevitável: anos numa espiral clássica de garrafas escondidas, goles roubados, um monstruoso acidente de carro, casamentos desfeitos, a impossibilidade de trabalhar e, por fim, a morte horrível. Tudo isso e muito mais está em Minhas duas estrelas. Se, ao lê-lo, você já não sairá ileso da experiência, imagine ter vivido tudo isso, cada dia de sua vida — até hoje —, como Pery Ribeiro. E, no entanto, ao assistir-lhe no palco ou ouvi-lo nos discos, você nunca pensaria em Pery como coadjuvante de um drama. Poucas personalidades da nossa música popular passam tanta euforia vital, tanta alegria de viver — cada canção atacada de maneira muscular e viril. De onde ele tirou essa energia musical e personalidade esfuziante que o têm caracterizado nos últimos quarenta anos? Agora sabemos: foi a forma que o Pery adulto encontrou para sobreviver ao Pery criança e adolescente.

Ao contar a história de seus pais, ele deixou de lado a sua própria, de tantos triunfos (foi, por exemplo, o primeiro no mundo a gravar “Garota de Ipanema” — que tal?), que ficará para outro livro. Aqui, o crucial era tentar expurgar seus fantasmas, o que ele fez com coragem invejável e a contribuição decisiva de sua mulher, Ana Duarte, que deu ao material a ordem e a sequência que o tornaram ainda mais eletrizante. Dalva ou Herivelto — de que lado está
Pery no livro? Essa é a pergunta que sempre o fez sofrer ao ouvir. Você conhecerá a resposta,
e talvez se surpreenda com ela — como sempre se surpreendem aqueles para quem a vida é um jogo de preto ou branco, sem os meios-tons que fazem o sofrimento e a dor serem às vezes um espelho do amor e da glória.


Ruy Castro




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