quinta-feira, 26 de novembro de 2020

UM DISCO PARA OUVIR E LEMBRAR A SAGA DO INCAPTURÁVEL MONSTRO SONORO DE ARRIGO BARNABÉ

Por Juliana Wendpap Batista


Em 15 de novembro de 1980, no auditório da Faculdade de Arquitetura da USP, aconteceu o show de lançamento do LP "Clara Crocodilo", de Arrigo Barnabé e Banda Sabor de Veneno. Com ingressos esgotados, o show foi sucesso e obteve repercussão positiva na imprensa. Arrigo Barnabé (1951) era então um jovem músico, que estava em São Paulo há menos de uma década. Natural de Londrina, no Paraná, teria se mudado para a capital com o intuito de cursar a universidade. Na metrópole, encontrou motivações que o fizeram optar pela carreira de músico profissional. A projeção alcançada em 1980 foi fruto do trabalho iniciado em 1972, na cidade natal do compositor, quando, em companhia do amigo Mário Lúcio Cortes, ele compôs a primeira das oito canções que integram esse disco. Tal canção tornou-se a faixa-título e já trazia o personagem que ficou conhecido no Brasil e internacionalmente. A notoriedade da obra de Arrigo Barnabé iniciou-se quando ele ganhou o prêmio de melhor música, no Primeiro Festival Universitário da TV Cultura de São Paulo, em maio de 1979. A música vencedora foi "Diversões Eletrônicas", escrita em parceria com Lourdes Regina Porto. Gravada a primeira vez ao vivo durante o mesmo festival e lançada em disco pela Continental, essa canção foi regravada e consta entre as faixas do disco "Clara Crocodilo".

Com as músicas compostas em pleno vigor da ditadura civil-militar no Brasil, o lançamento do LP na fase inicial do processo de redemocratização foi marcante. O princípio do regime, na década de 1960, coincidiu com a era dos grandes festivais de música, que acabaram por instituir o que era, e quem fazia parte da MPB, em sigla com letras maiúsculas, conforme conhecemos hoje (Bastos, 2009). Nesse intermezzo, no meio de vozes como as de Chico Buarque e Elis Regina, surgiu o forte desejo de inovação estética dos tropicalistas, movimento musical liderado principalmente por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Herdeiro dessas tendências, Arrigo Barnabé almejou ir além do tropicalismo e chamou a atenção da crítica especializada da época com sua voz rouca, que cortava letras ácidas sobre a vida nas grandes cidades. Ficou conhecido como um personagem polêmico da pós-tropicália e foi parar nas páginas amarelas da revista Veja, no início da década de 1980 (Souza, 1982). O emblema de inovação se deve ao caráter dessa obra, um LP considerado importante e chocante pelas críticas realizadas nos dias que seguiram seu lançamento. Tal repercussão pode ser dimensionada por meio dos títulos de algumas das matérias veiculadas em jornais e revistas da grande imprensa. As críticas indicam a ousadia do músico em enunciados como: "Arrigo, o som novo com sabor de veneno" (Soares, 1980a), "O sabor de veneno do ousado Arrigo Barnabé" (Soares, 1980b) e "Arrigo, o desbravador" (Fiorillo, 1981).

Arrigo Barnabé (Foto: Reprodução) 



MARGINÁLIA URBANA

Uma das grandes novidades do disco está no enredo criado pelas composições, que funcionam como contos musicados, numa linguagem dinâmica próxima do cinema e das histórias em quadrinhos. A transgressão da obra começa na temática, que descreve a marginália urbana. Um tema tão incomum para o texto poético quanto o atonalismo e dodecafonismo utilizados pelo compositor na escrita das músicas. O texto poético controverso complementa-se na contundente sonoridade dissonante da harmonia, que é misturada a locuções radiofônicas e ruídos da cidade, e distribuída em polirritmias que lembram Stravinsky. A sensação sonora opera na constituição dramática da obra e é propiciada pelo emprego do atonalismo, que se refere a toda música que não respeita as leis do sistema tonal e descentraliza a ação de uma nota tônica, trocando as escalas por séries de sons. A suspensão das funções tonais foi uma iniciativa do austríaco Schoenberg, que em 1923 sistematizou a série dodecafônica conhecida hoje (Lelong; Soleil, 1991). Os trabalhos com a também chamada música serial o tornaram um dos principais representantes da música moderna do século XX. Sua composição mais emblemática é Pierrot Lunaire, cuja estreia em 16 de outubro de 1912 impactou a sociedade europeia apresentando o caráter dissonante da música. Isso trouxe novas possibilidades sonoras que referenciaram o subsequente universo musical, como no evidente caso da obra de Arrigo Barnabé.


"ÓPERA POPULAR CONTEMPORÂNEA"

O LP "Clara Crocodilo" desenvolve uma narrativa musical que retrata situações, lugares e certos personagens, os quais fizeram parte do cotidiano de uma grande cidade, como São Paulo, ao longo da década de 1970. Cada uma das canções atua como um pequeno conto, os quais encadeados tecem um enredo do que se pode chamar de uma “ópera popular contemporânea” (Machado, 2011). Seu desenrolar culmina no surgimento do personagem principal, o monstro Clara Crocodilo. O disco apresenta oito faixas que contabilizam 41 minutos e 67 segundos de gravação (41’67”), divididos em quatro canções no lado 1 (20’26”), e quatro canções no lado 2 (21’41”). O roteiro temático narra a saga de um office-boy que foi transformado em um monstro híbrido após ser submetido a experimentos químicos em uma indústria multinacional. O script apresenta os seguintes personagens nas referidas canções, aqui descritas na ordem que aparecem no disco:

Lado 1) a prostituta e seu freguês – "Acapulco Drive-in"; o casal da edição pornográfica – "Orgasmo Total", o bêbado, a mulher e o gigolô – "Diversões Eletrônicas";

Lado 2) o extraterrestre – "Sabor de Veneno"; a viúva que virou prostituta depois da morte do marido – "Infortúnio"; a vedete e a enfermeira – "Office-boy"; e o monstro "Clara Crocodilo".

Ressalta-se que "Instante", a quarta faixa do lado 1, é a única das músicas do LP que não apresenta personagens e cuja temática não se enquadra no submundo de uma metrópole. Do ponto de vista do texto musical, todas as faixas do disco utilizam a técnica da composição serial. Entre as composições, as mais antigas – "Clara Crocodilo" (1972) e "Sabor de Veneno" (1973) – são baseadas em séries de oito e seis alturas, sendo que as demais canções, compostas a partir de 1974, são de fato dodecafônicas (Cavazotti, 1993). Recursos de texto como paródia, ironia, narração e adaptação são encontradas nas canções. A combinação tende a criação de um enredo crítico, de tom malicioso e irônico. As narrativas musicais são norteadas pela estética do Kitsch, onde o brega toma nova conotação ao misturar-se à música moderna.


O álbum em sua totalidade gera um discurso, no qual elementos populares e eruditos são sobrepostos produzindo sons e imagens que representam uma cidade povoada por personagens que parecem ter saído de um filme de ficção científica. O monstro mutante, a prostituta, o bêbado, a viúva desesperada e uma garota que, parodiando a famosa Garota de Ipanema da canção de Tom Jobim, nos traz não “um doce balanço”, mas sim “um doce amargo do futuro”. A estória do monstro mutante, Clara Crocodilo, trouxe à tona a dissonância, a sensação de "Infortúnio", na qual viviam os habitantes das grandes cidades. Seres solitários oprimidos pela sociedade industrializada do sistema capitalista. Apesar da expressiva sensação de pessimismo diante da capacidade humana, as canções trazem uma mensagem de resistência e ruptura.


A crítica também se dirige à ditadura que mantinha suas marcas, inclusive na censura de canções durante os festivais universitários e controle do lançamento de novos discos. Arrigo Barnabé não teve obras censuradas e o personagem principal da obra, tal como a própria essência de sua música, é apresentado como um ser “incapturável”. Clara Crocodilo é um ser da ambiguidade, meio humano-meio réptil, meio homem-meio mulher, como expresso em seu nome, o que lembra a androgenia da contracultura. O monstro é descrito como um transgressor da ordem social, o “inimigo público número um”. As referências para a criação dessa figura dramática, teriam se originado na antiarte de Hélio Oiticica, cujos ideais estéticos contribuíram anteriormente na consolidação do movimento tropicalista. Foi propagando o ideário “seja marginal, seja herói” (Oiticica, 1968), que Arrigo Barnabé tornou-se um artista reconhecido. Além disso, passou a ser considerado um dos principais representantes do que se convencionou chamar de Vanguarda Paulista.



ARRIGO BARNABÉ E A VANGUARDA PAULISTA

Nessa movimentação artística, junto a Arrigo Barnabé, encontravam-se Itamar Assumpção e os grupos Rumo, Premeditando o Breque e Língua de Trapo. Nesse cenário despontaram também vozes femininas que se destacavam em meio aos grupos. Entre outros nomes, devem ser citadas as cantoras Suzana Salles e Vânia Bastos, as vozes estridentes e agudas da Banda Sabor de Veneno. São delas e de Tetê Espíndola, que fez participação especial no LP, as vozes que contrastam e dialogam com Arrigo Barnabé em "Clara Crocodilo". Quanto à Vanguarda Paulista, não é possível afirmar que existam elementos semelhantes suficientes capazes de projetar uma ideia unificadora e coesa para os projetos desses artistas. Estudos recentes sobre a também chamada Vanguarda Paulistana são consensuais em afirmar que o termo foi cunhado pela imprensa e crítica especializada da época (Giorgio, 2005; Machado, 2007; Marrach, 2011). Contudo, os ideais de renovação estética, além do descompromisso em agradar públicos e gravadoras, podem ser apontados como fator comum entre eles. Esse aspecto alavancou a produção de discos independentes naquele contexto.

O trabalho de Arrigo Barnabé foi um precursor dessa motivação. Após insucessos buscando uma gravadora que lançasse seu trabalho, o compositor resolveu fazê-lo de forma independente (Soares, 1980b). O material foi produzido pelo compositor, músico e produtor musical Robinson Borba, o qual financiou com recursos próprios todas as etapas de elaboração e divulgação do "Clara Crocodilo". A boa repercussão alcançada pelo LP incentivou novos artistas a investirem na produção independente de seus trabalhos, especialmente outros alunos da Universidade de São Paulo (USP). Arrigo Barnabé também estudou na instituição. Ele foi aluno de música, na Escola de Comunicação e Artes, curso depois trocado pelo de arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. O músico afirma que sua passagem pela FAU interferiu na sua maneira de compor e referenciou a criação da canção "Clara Crocodilo", concebida a partir da noção de criação modular que lá aprendeu. Transpondo a ideia para séries de notas, ele e Mário Cortes escreveram linhas melódicas que foram sobrepostas. A ideia foi aperfeiçoada e sistematizada pelo compositor depois que o mesmo tomou conhecimento da obra de Schoenberg (Batista, 2013).


DERIVAÇÕES DE CLARA CROCODILO

A canção "Clara Crocodilo" teve sua primeira versão apresentada na cidade de Londrina, em março de 1973, durante o show intitulado "Na Boca do Bode”. O tema derivou outras sete músicas, as quais foram organizadas em um disco. O LP deu origem ao show e, por conseguinte, a uma “ópera-rock” dirigida pela coreógrafa Lalá Denheinzelin. O elenco dessa montagem contou com a preparação corporal do renomado bailarino Klauss Vianna. Essa adaptação das canções do álbum para um espetáculo cênico musical, também foi sucesso e obteve ótimas críticas da imprensa (Portinari, 1981). Acrescenta-se às derivações que ocorreram logo na sequência de lançamento do disco, o curta cinematográfico "A Estória de Clara Crocodilo". Baseado na canção, o curta metragem de 11 minutos foi lançado em 1981 e dirigido por Cristina Santeiro (Folha de São Paulo, 1981, p.36). Em 1999, a estória foi recontada musicalmente no CD intitulado a "Saga de Clara Crocodilo", com dez faixas que são adaptações das canções originais. Com outras vozes e instrumentação, as músicas são parte da vontade de retomar e aperfeiçoar o trabalho inicial. Além disso, as mudanças foram necessárias considerando que, mesmo tendo sido lançado de maneira independente, o álbum teve seus direitos comprados pela gravadora Ariola. O fato impediu que Arrigo Barnabé relançasse o álbum original (Sanches, 1999).


MARCAS DA MODERNA MÚSICA BRASILEIRA

Os desdobramentos dessa obra musical desde sua gênese são variados, tais como os elementos utilizados em sua composição. Misturada ao forte apelo à visualidade, a música moderna é acometida pelo flerte com as histórias em quadrinhos e filmes de ficção científica. A capa desenhada por Luiz Gê segue a linha e ilustra o olho profundo de um réptil que draga a quem lhe olha com profundidade. Circundando o olho, em letras com formato e cor de sangue escorre o nome do monstro. Após o disco retirado do envelope e colocado para tocar, tem início uma experiência musical que conduz o ouvinte pelos caminhos de uma cidade povoada de neons, fliperamas, prostituição e violência. No cenário, traços da música brasileira são encontrados em citações de canções de célebres intérpretes, como Orestes Barbosa, que aparecem em meio a locuções radiofônicas, feitas ao modo dos repórteres policiais sensacionalistas. Com a inovação da linguagem na organização de um discurso gerador de um conceito, que é o próprio personagem, o LP inaugura uma nova forma de compor e marca ativamente o cenário da música brasileira na década de 1980. Foi a primeira e mais conhecida obra de Arrigo Barnabé, que constituiu a partir de então uma carreira sólida com vários discos lançados, muitas trilhas compostas para filmes e trabalhos na televisão, cinema e rádio. Esse texto é um convite para ouvir a obra musical do compositor e desbravar sonoridades pelos labirintos da moderna música brasileira.

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