terça-feira, 3 de novembro de 2020

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*


Dom de iludir

“Dom de iludir”, de Caetano Veloso estabelece um diálogo com a canção “Pra que mentir”, de Noel Rosa e Vadico. Na canção parodiada o sujeito masculino questiona a mulher em relação ao dom que ela tem de iludir e de enganar. Já na canção de Caetano temos um sujeito feminino respondendo aos argumentos do homem.
É interessante observar a presença da conjunção "se" em momentos nodais na letra de "Pra que mentir", sugerindo uma interferência do sujeito masculino no comportamento da mulher que, por sua vez, em "Dom de iludir" usa isso a seu favor: investe no poder físico das palavras.
Mas mentir parece ser é um dom natural de todo humano já que a palavra não traduz o sentimento. Culpada pela queda do homem, a mulher desde sempre fingiu, ou foi obrigada a isso, pois desde cedo aprendeu que as sensações são intransmissíveis. Não é à toa, portanto, que Chico César canta "eu sei como pisar no coração de uma mulher, já fui mulher, eu sei, iluminando a potência do feminino e afirmando que as palavras carregam o grau ficcional da existência.
Recorrendo a História, percebemos que enquanto o homem ficou perdendo tempo questionando "pra que mentir", a mulher, algo distraída, provoca movimentos no ar: pane nos sistemas. Na canção ela desdenha mesmo do homem: "não me venha falar". Ela se impõe mandando o homem desviar o olhar inquisidor.
Há de fato uma apresentação do homem como senhor de tudo: "você está, você é, você faz, você quer, você tem". O que intensifica, de viés, a lúcida superioridade feminina: a mulher personificada na voz inflamada de Gal Costa (Minha voz minha vida, 1982) está noutro plano mais feliz de vida.
Aliás, os versos finais são deliciosamente cruéis: "você diz a verdade, a verdade é seu dom de iludir". Eles mostram que esta voz feminina tem consciência de suas estratégias para viver diante das investidas macho adulto e limitado sempre no comando.
A inversão semântica e a afirmação do jogo suspensivo que redefine verdade e mentira desestabilizam o homem acostumado à lógica clara. Se, como Bernardo Soares anotou em seu Livro do desassossego, "amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos", ou seja, todos nós mentidos porque a mentira está na base da nossa inscrição constitutiva humana e das relações que estabelecemos, como o homem pode querer que a mulher vá viver sem mentir?


***

Dom de iludir
(Caetano Veloso)

Não me venha falar
Na malícia de toda mulher
Cada um sabe a dor
E a delícia de ser o que é

Não me olhe como se a polícia
Andasse atrás de mim
Cale a boca
E não cale na boca
Notícia ruim

Você sabe explicar
Você sabe entender
Tudo bem
Você está, você é
Você faz, você quer
Você tem
Você diz a verdade
A verdade é seu dom de iludir

Como pode querer que a mulher
Vá viver sem mentir?




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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