sábado, 7 de novembro de 2020

QUANDO O HUMOR É COISA MUITO SÉRIA

Por Leonardo Malcher


Falar da carreira de Chico Anysio é falar de genialidade, por tudo o que produziu na televisão, teatro e escrita, sempre com sua pegada contundente, muitas vezes ácida e recheada de muito humor. Juntamente com Arnaud Rodrigues a produção e a qualidade chegaram ao ápice do humor brasileiro. Desta união e amizade prolífica, que já dava frutos ainda nas aparições da dupla em "Chico City" surge a história de Baiano e os Novos Caetanos, grupo composto pela inusitada e engraçadíssima união de Baiano – Chico Anysio - imitando graciosamente Caetano Veloso que acabara de voltar do exílio na Inglaterra - Paulinho Cabeça de Profeta - alusão a Paulinho Boca de Cantor, um dos líderes do grupo Novos Baianos, juntamente com o violonista e arranjador Renato Piau.

Foto: Reprodução

É possível, principalmente nos dias de hoje, refletirmos acerca do que o humor tem para nos contar, para nos fazer refletir. Acredito que as performances e gravações dos Baianos e os Novos Caetanos em suas tiradas super engraçadas, para muita gente, não passavam de um humor pela sátira aos trejeitos de Caetano e a própria relação de Baiano com Paulinho em músicas que, mesmo que não fossem profundamente bem compreendidas pelas pessoas, eram muito bem arranjadas e executadas, o que fazia o público além de se divertir, também se embalar com aquele som. 

Que humor era aquele? A verdade é que ele não tinha nada de banal, de pueril. Ao ser pensado, refletido em profundidade, apresentava claramente um profundo teor de crítica social em relação à ditadura militar em um período de plena vigência e crueldade do governo Médici e seu famigerado AI-5. A própria referência e homenagem em forma de sátira a Caetano Veloso que retornara do exílio poucos anos antes e ao sucesso estrondoso dos Novos Baianos em seu estilo de vida libertário e de forte tendência de contracultura já são indícios do fundo crítico do grupo. Além disso, a crítica à desigualdade social que se agravava com a forte industrialização encampada pelos governos militares também tem lugar marcante em suas letras. 

O disco de lançamento da dupla Baiano e Paulinho Cabeça de Profeta aconteceu em 1974, tinha como título "Sangue no Cacto" e ficou conhecido como "Vô Batê Pa Tu", primeira faixa do álbum e provavelmente a mais conhecida. Depois do rompimento da amizade por um período de poucos anos, Baiano e os Novos Caetanos ainda lançaram mais dois álbuns, "A Volta" (1982) e "Sudamérica" (1985), mas sem o mesmo sucesso do primeiro. Em todos os três discos há várias referências à cultura brasileira em seus vários ritmos, estilos musicais e em várias faixas as participações especiais de outros personagens inesquecíveis de Chico e Arnaud, como Véio Zuza, Painho e Lingote. 

Foto: Reprodução

Mais especificamente sobre o primeiro disco, é fundamental destacar que as letras por todas as faixas trazem uma crítica dura ao período que vivenciávamos. Muito há para se refletir, extrair, pensar e destacar da obra de Baiano e os Novos Caetanos neste álbum. Só para ficar com alguns exemplos, que como disse, perpassam pelo álbum todo, a primeira faixa "Vou Batê Pa Tu" já é um grande chamado de alerta para a deduração e o papo de “altas transações” do período da repressão como vemos em "Deduração, um cara louco. Que dançou com tudo. Entregação com dedo de veludo. Com quem não tenho grandes ligações", mostrando que a ameaça pairava por sobre a cabeça de muitos e muitos e os X9s estavam à solta.


No samba rock "Nega" a levada termina com Baiano afirmando “A eletrônica está substituindo o coração. A inspiração passou a depender do transistor, o poeta, de aço, de poesia programada... é demais pra meus sentimentos, tá sabendo?" 

A vida simples do campo, o contato com a natureza, as tradições e o folclore brasileiro estão tanto nas músicas quanto nas letras. Em um momento onde a cultura hippie ainda fazia sucesso e assustava as famílias tradicionais e o próprio Estado Brasileiro. Podemos perceber isso em "Cidadão da Mata": "Amo, amo a mata! Porque nela não há preços. Amo o verde que me envolve... o verde sincero que me diz que a esperança, não é a última que morre. Quem morre por último é o herói. E o herói, é o cabra que não teve tempo de correr...", críticas com o mesmo teor em oposição à rotina cotidiana da urbana também estão presentes em outra canção que ficou famosa pela pegada do baião bem acelerado e que era, na verdade, uma exaltação à cultura hippie e ao uso livre de substâncias alucinógenas em "Dendalei" uma indicação de que tudo (ou quase) estava sendo feito "dentro da lei" onde dizia: "Sou fã da viração do vento. Sou fã do livre pensamento. Sou fã da luz do nascimento. Sou fã aqui do melhor momento". 

Dentre as mensagens de sucesso da política econômica propagandeada pelos governos militares tinha aquela que Delfim Neto utilizava “o bolo precisa crescer para depois ser repartido” com o que ficou conhecido como o "Milagre Econômico" nos anos de chumbo crítica direta presente em "Aldeia". O Brasil estava virando uma verdadeira aldeia de pedras e de ferro, expondo a desigualdade e o abismo social que se asseverava. Podemos perceber isso nas referências como “Em cada rosto uma expressão. Em cada bucho a digestão. Um novo carro, nova capa. Enquanto velho me pede pão. Sementes de ferro, semeia” E nossas vidas, para longe dos rocks rurais e da natureza, passaram a apresentarem-se encrustadas neste contexto onde o país se endividava e o cidadão brasileiro também, num quase clamor que a letra/música fazem “O pão nosso de cada dia, dái-nos hoje, creditai, nossas dívidas. Assim como não nos perdoam nossos credores. Não nos perdoam nossos credores...” E o retrato do Brasil se complexifica e se torna clara na luta pela vida e contra a morte a cada dia, “Lá vem a procissão. Toca o sino late o cão. E todo mundo corre e todo mundo morre de pasta na mão. Oh de pasta na mão”


Mas como mostram os Baianos e os Novos Caetanos, continuamos ainda hoje numa labuta e numa batalha quase que selvagem pelo pão de cada dia. Tão selvagem como o Urubu faminto torcendo com raiva para que o boi morra e vire a sua próxima refeição. Em "O Urubu Tá com Raiva do Boi" (Geraldo Nunes e Venâncio), Baiano (Chico Anysio) começa assim conversando com Paulinho: "Legal... me amarro nesse som, tá sabendo? O medo, a angústia, o sufoco, a neurose, a poluição. Os juros, o fim... nada de novo. A gente de novo só tem os sete pecados industriais. Diga Paulinho, diga... Eu vou contigo Paulinho, diga" 

E nesse vai da valsa (sem qualquer trocadilho) apesar e além de tudo, continuamos vivendo, passando por cima das adversidades mas, como mostram Chico e Arnaud, sem que nos permitamos não criticar e refletir sobre a realidade em que vivemos naquele período e diria, que vivemos hoje. "O norte, a morte, a falta de sorte... Eu tô vivo, tá sabendo? Vivo sem norte, vivo sem sorte, eu vivo... Eu vivo, Paulinho. Aí a gente encontra um cabra na rua e pergunta: 'Tudo bem?' E ele diz pá gente: 'Tudo bem!' Não é um barato, Paulinho? É um barato..." 

Um grande barato mesmo é poder pensar de forma bem humorada, crítica e contextualizada a produção desta dupla. E nos fazer pensar no que, afinal mudou? Ou ainda diria: Quem é, hoje, o urubu e o boi de quem? Dessa resposta, quem vai ser o herói, quem vai morrer por último? Baiano, Paulinho, Piau, Chico e Arnaud são um verdadeiro barato!!!

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