sábado, 21 de novembro de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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• CAPÍTULO 7 •
NA BATIDA DO PAGODE

Música e Nova República
A década de 1980 foi marcada por uma grande euforia gerada por significativas conquistas e mudanças do leme em direção a novos rumos para o país. Finalmente a sociedade civil podia participar do processo democrático elegendo seus representantes no plano municipal e estadual. Sindicatos surgiram, associações de moradores proliferaram, o povo foi às ruas manifestar seus direitos pedindo Diretas Já! Tinha início a Nova República e, no final da década, depois de um intervalo de mais de 25 anos, o Brasil elegeu um presidente que passava a governar sob a nova constituição, promulgada em 1988, e chamada de Cidadã.


Nova República

A Nova República teve início com a posse de José Sarney como presidente do Brasil, em 1985. O povo havia lutado por Diretas Já!, mas o Congresso Nacional resolveu eleger indiretamente Tancredo Neves. Com o falecimento de Tancredo, Sarney, seu vice, assumiu o comando do país. O governo Sarney foi marcado por planos econômicos que tentaram, em vão, controlar o processo inflacionário acachapante que vivia o Brasil (Planos Cruzado, Cruzado Novo, Bresser, Verão). A liberdade política levou a sociedade a ter maior consciência dos seus direitos, e muitos foram às ruas reivindicá-los. As greves eram constantes. No plano partidário houve a criação ou ressurgimento de inúmeros partidos políticos: PDT, PSDB, PTB, PFL, PSB, PCB, PV, PC do B... O Partido dos Trabalhadores, PT, tornou-se o maior partido de esquerda do país e hoje é o maior do mundo. Fomentado nas lutas operárias do ABCD paulista, aglutinou em torno de sua legenda líderes operários, sindicalistas, intelectuais, artistas, setores da classe média, setores do campo etc.


MST

O movimento social mais importante que apareceu nas décadas de 1980 e 1990 foi o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Lutando contra o latifúndio improdutivo, os trabalhadores do campo têm apoio dos partidos de esquerda e consolidaram-se como uma referência internacional na luta por uma vida digna. Em 1997 foi lançado o livro Terra, com texto de José Saramago (Prêmio Nobel de literatura), fotos do renomado fotógrafo Sebastião Salgado e um CD que reúne músicas do mestre Chico Buarque. Uma delas, em alusão à obra do escritor Guimarães Rosa, chama-se “Assentamento”, e diz assim: “Quando eu morrer, que me enterrem/ na beira do Chapadão/ contente com minha terra/ cansado de tanta guerra/ crescido de coração...”
A cultura, de forma geral, e a música popular, em particular, passaram a reverberar essa onda de mobilização e questionamentos. Mas é sobretudo no rock brasileiro, batizado de BRock pelo jornalista Arthur Dapieve, que encontramos as letras mais inquietas e picantes de crítica social.
Segundo Rita Lee, uma das poucas artistas do rock que conseguiu seu espaço sem ser marginalizada, “roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido”. Talvez por isso, desde o fim da Jovem Guarda, o rock vinha perdendo seu espaço na indústria fonográfica. Isso mudou na década de 1980. No festival “MPB 80”, da Rede Globo, foram plantadas as sementes da new wave no Brasil, representadas pelo grupo Gang 90 & As Absurdetes. Foi ali também que surgiu para o grande público um fenômeno do pop-rock brasileiro chamado Blitz. As performances teatrais e caricatas e as letras irreverentes associaram o grupo àsapresentações do teatro de revista do início do século passado.
Aberto o mercado, nomes como Cazuza, Roger Moreira, Herbert Vianna e Renato Russo lideraram um movimento de dezenas de bandas: Paralamas do Sucesso, Titãs, Legião Urbana, Ultraje a Rigor, Plebe Rude, Camisa de Vênus, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, entre outros. É bom lembrar nesse brevíssimo histórico da “Geração Coca-Cola” que, a partir dos anos 1980, o mercado fonográfico passou também a acolher e portanto estimular cada vez mais a produção de músicas cantadas em português (nos seus mais variados estilos: rock, pagode, axé-music, sertanejo etc.). Isso só vem corroborar a força da música brasileira, haja vista que muitas rádios e TVs de países europeus já haviam sucumbido ao internacionalismo comercial da língua inglesa.


“Inútil”e “Geração Coca-Cola”

As letras dessas duas músicas representam muito do clima que a juventude vivia na sociedade brasileira dos anos 1980. “Inútil” foi lançada pelo grupo Ultraje a Rigor, de São Paulo, que faz uma mistura de antropofagia cultural com o rock mais tradicional de Bill Halley e seus Cometas. Nela, Roger Moreira e sua turma brincam com o período de transição do país, entre o governo militar e o civil. “A gente pede grana e não consegue pagar” critica a altíssima dívida externa brasileira. E, como não poderia deixar de ser, a letra
faz referência à surpreendente derrota da excelente seleção de 82 na copa da Espanha: “A gente joga bola e não consegue ganhar.../ Inútil, a gente somos inútil...” Já a música da Legião Urbana, “Geração Coca-Cola”, traça um perfil dos jovens da época, pós-golpe militar de 64 e fortemente influenciados pela cultura norte-americana: “Quando nascemos fomos programados/ a receber o que vocês nos empurraram/ com os enlatados dos usa, de 9 às 6/ desde pequenos nós comemos lixo/ comercial e industrial/ mas agora chegou nossa vez/ vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês...”
E agora, com a poesia cantada ainda na língua de Camões, vamos mudar a batida para o ritmo dos “pagodes”, dos partideiros, dessa linhagem do samba considerada por alguns a mais nobre, por outros a mais comercial. Vem chegando o banjo para fazer sucesso ao lado da guitarra!

* * *

“Sim, é o Cacique de Ramos
planta onde em todos os ramos
cantam os passarinhos das manhãs
lá o samba é alta bandeira...”
LUIZ CARLOS DA VILA, “Doce refúgio”

Os sambistas cariocas, desde os tempos de Tia Ciata, falavam em pagode para caracterizar o samba de forma íntima, carinhosa. Assim, samba e pagode eram uma coisa só, uma festa, onde as pessoas se reuniam para comer, beber, dançar, cantar e quem sabe, paquerar.
Não se sabe o que veio primeiro, mas o fato é que, com o tempo, o gênero foi mudando e o termo também adquiriu novas acepções. Na década de 1980, o que ficou conhecido como pagode, também chamado de fundo de quintal ou de pagode de mesa, não era somente a festa do samba, mas um novo jeito de se fazer samba cujas mais profundas raízes saíram do bloco carnavalesco Cacique de Ramos.
Fundado no início dos anos 1960, o Cacique passou a reunir, no fim da década seguinte, seus principais compositores e amigos todas as quartas-feiras à noite para um pagode. Foi na casa dos pais de Bira (o Bira Presidente) e Ubirani que começou a reunião da rapaziada boa de samba. Nomes como Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Sombrinha, Almir Guineto, Beto Sem Braço, Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila, Neoci, Jovelina Pérola Negra, entre outros, eram presença garantida. Bira, pandeirista e fundador do grupo Fundo de Quintal, descreve o novo timbre que a turma do Cacique trouxe para o mundo do samba: “Foi Almir Guineto, integrante do Fundo no primeiro disco, quem introduziu o banjo no samba. Depois, foi a vez de Ubirani criar o repique de mão, e ainda tivemos a implantação do tantã, criação do Sereno. Antigamente, o samba era tocado com reco-reco, tamborim etc. Hoje ... apresenta instrumentos novos e consagrados.”
De certa forma, foi ali que surgiu essa nova variante do samba. Os pagodes aconteciam no subúrbio do Rio de Janeiro, no já citado Cacique, mas também no Clube do Samba, liderado por João Nogueira. Esses ambientes criaram a primeira geração de compositores, depois da ascensão das escolas de samba, que construíram sua carreira fora da Mangueira, do Salgueiro, da Portela, do Império Serrano. Era uma resposta competente dos compositores contra a institucionalização do gênero ocorrido nas quadras de samba.
Do ponto de vista musical, a novidade das rodas de pagode foi o surgimento de algumas inovações melódicas, mas principalmente rítmicas. Para começo de conversa, o banjo foi “reinventado” por Almir Guineto e reintroduzido nos conjuntos de samba, participando da percussão e da harmonia ao mesmo tempo. Outra novidade foi o resgate do tantã, ou tambora, um pequeno atabaque que serve para marcar o tempo forte. Nei Lopes conta que também o repique foi uma inovação do pagode, “um tambor menor, de timbre agudo, em que a importância da batida está no sincopado conseguido com os dedos da mão esquerda percutindo, às vezes até com anéis, o corpo metálico do instrumento”.
Se o banjo entrou porque soava mais alto que o cavaquinho sem ser preciso muito esforço, alguns outros instrumentos foram deixados de lado pelo motivo inverso. Foi o caso do agogô, do tamborim e do reco-reco. Todas essas modificações proporcionadas pela geração do Cacique de Ramos levantaram uma reflexão para o mundo do samba: seria então o pagode um novo gênero musical? Estava instaurada a polêmica. A partir do instante em que o pagode saiu dos subúrbios e ganhou as gravadoras, as rádios, a mídia de forma geral, em meados da década de 1980, começava o que muitos chamam até hoje de “movimento do pagode”. 
Em 1985, a gravadora RGE lançou o LP Raça brasileira, marcando a estreia de nomes como Jovelina Pérola Negra, Zeca Pagodinho, Elaine Machado, Pedrinho da Flor e Mauro Diniz. Nessa mesma época já faziam sucesso os discos do Fundo de Quintal, tanto que os novos pagodeiros participaram até do especial de Roberto Carlos, na Rede Globo.
Na década de 1990, a coisa pegou fogo. O pagode, de alma e coração suburbanos, tomou o trem, desceu na Central e fez baldeação num ônibus até saltar na bela e bronzeada Zona Sul carioca. Caiu no gosto popular e foi sendo “azeitado” pelas grandes gravadoras. O samba, criticavam alguns, estava se descaracterizando. A indústria fonográfica estava se apropriando do pagode e despersonificando-o.
Foi então que surgiu a expressão “samba de raiz” para designar o trabalho de sambistas tradicionais, que não sofriam “interferência” da indústria fonográfica do pagode. Alguns chegavam mesmo a dizer que havia um pagode “de raiz”, carioca, que se contrapunha ao pagode “comercial”, feito, muitas vezes, por grupos paulistanos.
O pagode que começou a ser feito e tocado pelas rádios nos anos 1990 é marcado por uma matriz “pop-brega” muito diferente do pagode dos anos 1980. Enquanto os “pagodeiros do Cacique” mantinham a saudável relação dos instrumentistas e compositores com escolas de samba e grupos de choro, reinventando a tradição, o chamado “pagode paulista” era criado por músicos oriundos de bandas de rock das garagens paulistanas. Advém daí a diferença de
qualidade melódica e harmônica. Houve uma ruptura nas características da música urbana carioca levada para São Paulo. A “geração Cacique” bebeu nas fontes históricas do samba, por isso a criação de uma linguagem moderna sem rompimento dos laços.


Partido-alto

“Modernamente, espécie de samba cantado em forma de desafio por dois ou mais solistas e que se compõe de uma parte coral (refrão ou primeira) e uma parte solada com versos improvisados ou do repertório tradicional, os quais podem ou não se referir ao assunto do refrão”, nos diz o cobra dos estudos afro, Nei Lopes. Foi Martinho que pôs o partido-alto (sem improviso) na roda comercial. Mas a tradição se mantém vivíssima em nossa cultura musical. Nilton Campolino, Zeca Pagodinho, Dudu Nobre, Arlindo Cruz e Almir Guineto são grandes versadores. Outros dois merecem atenção: Aniceto do Império e Xangô da Mangueira. O primeiro já nos deixou, mas entrou para a história como o maior de todos os partideiros. Coreógrafo de jongo, assíduo imperiano, criou um tipo especial de partido: o diálogo entre o solista e a roda. Veja um exemplo de como, por mais de 40 minutos, ele versava sobre qualquer assunto, levando o público ao riso freqüente:

“Eu vou cantar agora
Porque já está...”

Aniceto parava e repetia, pedindo resposta:
“Porque já está?”

Aí o pessoal atinava e respondia, completando a melodia e a rima intuitivas:
“Na hora!”

Aniceto, então, continuava:
“Que o homem que é homem Não?...”

O coro, já agora alerta, ia só respondendo:
“Não chora.”

Aniceto começava a dialogar com o grupo, que até parecia coisa ensaiada, mas era improviso puro mesmo:

“Ela se chama Aurora
E diz que já vai...”

Todos emendavam logo:
“Embora.”

O negro velho ria, satisfeito, e ia em frente:
“Urubu pra cantar...”

E a resposta estava na cara:
“Demora.”

O partideiro então, com toda a malícia da raça estampada nas feições fortes, perguntava:
“E a mulher do meu filho
É a ...”
Metade dizia:
“Aurora.”
E o resto cantava:
“Dora.”
Aniceto agora se esbaldava. Sacudia severamente a cabeçorra numa negativa enérgica:
“Não senhor, não e não
É a minha nora.”

Xangô da Mangueira gravou com Aniceto do Império “O namoro de Maria”. Sete vezes campeão pela Verde-e-rosa como diretor de harmonia, Xangô gravou em parceria com Jorge Zagaia uns dos mais belos versos da história do samba no partido-alto, em “Diretor de harmonia”: “Sou eu o diretor de harmonia/ apito para entrar a bateria/ sou eu quem manda o mestre-de-sala/ se apresentar à porta-bandeira Maria/ se estou errado me perdoa/ eu sou o samba em pessoa/ você já pensou/ quando a velhice chegar/ e eu não puder mais sambar.” Xangô lançou nos primeiros anos da década de 1970 o LP O rei do partido-alto, título pelo qual era conhecido na época, deixando-nos preciosidades como “Quando eu vim de Minas”, sucesso na voz de Clara Nunes, “Piso na barra da saia”, “No tempo do mil-réis”, “Carolina, meu bem”, “Divergência”...




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