Por Laura Macedo
Vinicius de Moraes, em crônica escrita em 1965, relata como conheceu Baden Powell bem como o surgimento das músicas que marcaram a parceria.
De Baden, quando o conheci em começos de 1962, tudo que sabia era que era autor, com Billy Blanco, de um belo samba que andava correndo à boca pequena entre o pessoal de música: “Samba triste”.
“Samba triste” (Baden Powell / Billy Blanco) # Elizeth Cardoso e Moacyr Silva Quarteto.
Lembro-me dessa noite como se fosse hoje: eu tinha ido assistir o show do meu parceiro Antonio Carlos Jobim na boate Arpège – historicamente seu primeiro – e quando o conjunto retomou as danças, vi alguém se aproximar dos músicos e dentro em pouco a sala se enchia de sons de improviso de jazz em guitarra elétrica. Era Baden, e estava ele com a cachorra, fazendo misérias no instrumento. Fiquei ouvindo, maravilhado, lembrando-me dos grandes guitarristas de jazz que conheci nos Estados Unidos e achando Baden páreo para qualquer um deles. Depois fomos apresentados.
- Eu estava tocando para você – disse-me ele. Tenho aí umas coisinhas que gostaria que você pusesse letra, caso você tope.
Nessa mesma noite, no fundo da boate já vazia, mostrou-me dois ou três temas que vibrei de saída. Dei-lhe meu telefone e endereço. Cerca de uma semana depois, indo a São Paulo, encontrei a cantora Carmen Costa [foto ao lado], que me pediu um samba sonoro sobre assunto brasileiro. Estava de partida para os Estados Unidos e queria chegar lá com uma música bem característica, na esperança de que funcionasse um pouco como “O que é que a baiana tem” para a minha querida e inesquecível Carmen Miranda. De maneira que, quando Baden me procurou, propus-lhe o samba. Carmen Costa havia me falado alguma coisa sobre café, pois estava contando com uma ajuda qualquer do IBC [Instituto Brasileiro do Café].
- Vamos fazer a receita de como se faz um bom café – falei com Baden.
Duas horas depois o samba estava pronto. Não sei o que a Carmen Costa fez com ele nos EUA, mas sei que o meu bom Ciro Monteiro gravou-o, e muito bem, em 1965, num LP nosso, feito em Paris especialmente para ele onde há apenas um samba em que, na moita, deu parceria a Baden... “para não destoar” – explicou-nos mais tarde, na sua natural modéstia.
E a partir daí o menino de Varre-e-Sai – um sarro! – não saiu mais do apartamento que eu morava, no Parque Guinle. Duvido que haja na MPB uma parceria que tenha feito tanto, em tão pouco tempo. Meu repertório com Baden alcança por aí umas cinqüenta músicas. Pois bem: seguramente a metade foi feita nesta época, num período não superior a três meses. Compúnhamos dia e noite, com muito uísque na cuca – mesmo porque quem era que ia pensar em comer? “Bom dia amigo”, “Samba em prelúdio”, “Só por amor”, “Consolação” e os primeiros afro-sambas datam desse período de criação e bem dizer incoercível, como “Canto da pedra preta”, “Canto de Iemanjá” e “Berimbau”. E duas bela valsas que muito amo, “Além do amor” e “Valsa sem nome”: esta, para mim, inexcedível em nossa parceria.
[Ouçam algumas das pérolas citadas da dupla Vinicius & Baden]
“Samba em prelúdio” # Vinicius de Moraes & Odete Lara.
“Só por amor” # Odete Lara
“Consolação” # Mariana Leporace
“Canto da Pedra Preta” # Baden e Quarteto em Cy
“Canto de Ossanha/ Bocchê / Canto de Iemanjá / Canto de Xangô” # Mariana Leporace
“Berimbau” # Mariana Leporace
“Além do amor” # Odete Lara
“Valsa sem nome” # Elizeth Cardoso
Daí nos tornamos íntimos amigos, sem reservas nem segredos um para o outro. Um disco folclórico que tinha recebido do meu amigo Carlos Coqueiro, da Bahia, foi a pedra de toque para darmos partida aos afro-sambas, como os designei. Nele havia sambas-de-roda, pontos de candomblé e toques de berimbau que nos sideravam. Baden partiu pouco depois para a Bahia e andou escutando in loco os cantares do candomblé baiano e frequentando os terreiros. Voltou a mil, inteiramente tomado pelos cantos e ritos dos orixás, e me explicava horas seguidas os fundaamentos da mitologia afro-baiana. Assim fui absorvendo o que há de mais rico e orgânico nessa bela religião, e quando os temas de Baden vieram, eu estava, mesmo sem ser um crente (“pero que las hay, las hay”...), preparando para formulá-los a meu modo. Pouco a pouco, surgiram “Canto de Xangô” [acima], “Tristeza e solidão”, “Bocoché [acima]”, e outros ainda; e finalmente “canto de Ossanha”[acima] (que realmente se escreve Ossain, mas a pronúncia popular fixou daquela forma) e agora “Desafio”, ainda inédito.
“Tristeza e solidão” # Paulo Bellinati & Mônica Salmaso
Mas mesmo no período dos afro-sambas, não deixamos outros sambas e canções, ao azar de nossas vidas e nossas viagens a São Paulo, onde nos apresentávamos com freqüência nos programas de TV de Elis Regina. São Paulo, diga-se de passagem, nos dá uma sorte bárbara. Nos Apartamentos Excelsior, onde nos hospedávamos sempre, nasceram “Canto de Ossanha”, “Deixa”, “História antiga”, “Apelo”, entre os principais. E em minhas estadas na clínica São Vicente, onde me internava uma vez por ano para uma recauchutagem geral, vieram à luz ‘Samba da bêncão”, em 1962, e posteriormente “Pra que chorar”, “Amei tanto”, “Cavalo marinho”, “Tome meu coração”, dos que me lembro.
“Deixa” # Vinicius de Moraes & Odete Lara
“Apelo” # Mariana Leporace
“Samba da benção” # Vinicius de Moraes & Odete Lara
“Pra que chorar” # Mariana Leporace e Folia de 3
“Cavalo Marinho” # Mário Telles (vídeo Luciano Hortêncio)
Nossa vida em Paris, durante 1963-64, foi também farta de canções. Além das feitas para “Ópera do Nordeste”, uma tragédia minha que um dia pretendo encenar, com música de Baden, o Natal de 63 nos deu, na mesma noite, “Formosa”, feita especialmente para distrair os convidados à ceia que eu dava, e “Velho amigo”, cantiga em lembrança ao pai de Beden que morrera no Natal anterior, e que evitamos tocar pelas recordações doídas que nos traz. A choradeira foi geral. E pouco antes do meu regresso, em 1964, Baden deixou-me um tema lindo, sobre o qual escrevi “Tempo feliz”, um samba que dá um belo recado.
“Formosa” # Rabo de Lagartixa
“Tempo feliz” # Mariana Leporace
Vinicius de Moraes o branco mais negro do Brasil, segundo sua própria definição. Sua poesia transformou a música tornando-se um divisor de águas na história da MPB.
Baden Powell, um dos maiores virtuoses do violão brasileiro oriundo da Escola de Sátiro Bilhar, Quincas Laranjeiras e João Pernambuco. Excelente compositor, parceiro de grandes nomes da MPB.
Como vimos, a dupla - Vinicius e Baden -, produziu uma verdadeira obra prima que encantou e, até hoje, encanta as novas gerações, encharcando nossa alma de poesia e musicalidade.
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Fonte:
- Vinicius de Moraes – Samba Falado (crônicas musicais), de Miguel Jost, Sérgio Cohn e Simone Campos (Org.). – Rio de Janeiro: Ed. Beco do Azougue, 2008.
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