sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

O QUE PODE UM FUNK?




Tutudum! Hipnótico o novo clipe de Anitta! Retomando essa figura meio arquetípica do Brasil, o funk feminino de Anitta incorporou as questões de gênero conjugando a malandragem com um feminino plural.

Vai, Malandra, o clipe, traz verdadeiros memes visuais, culturais e musicais que valem por um tratado sociológico. Ainda não se escreveu, e faz falta, um tratado sobre os corpos pensantes das mulheres, para além do imaginário em torno da bunda, da raba, do bumbum, do traseiro da mulher brasileira, que virou um disparador de questões sensações! O corpo sexualizado na era da sua ressignificação pelas próprias mulheres!

Um corpo que o funk, o samba, o biquíni de fita isolante, toda a cultura solar carioca já vem dizendo, tem tempo, que não precisa ser apenas objeto e signo de assujeitamento, toda vez que quiser se exibir.

A bunda (e o corpo das mulheres) pode se deslocar da objetificação para a subjetivação! A bunda viva de Anitta com sua celulite sem photoshop é sujeito e não objeto. Se as mulheres fazem o que quiserem com seus corpos (a Marcha das Vadias explicou isso para a classe média), elas podem inclusive se “autoexplorarem”, ensina o funk. A bunda ostentação de Anitta no início do clipe já aponta para esse outro feminismo (de mulheres brancas, apenas? Acho que não!)

Sabemos que o feminismo negro questiona, e com muitas razões, o feminismo branco liberal. Pois a emancipação do corpo as vezes se confunde com sua exposição e objetificação, para um grupo em que racismo e sexismo significaram a exploração violentíssima do corpo exposto e hipersexualizdo da mulher negra servindo ao gozo de seus algozes. Mas é sempre assim?

Foram as mulheres do funk (Tati Quebra Barraco, Deise Tigrona, Anitta etc.) e depois as meninas pretas do rap e do pop (de Nega Gizza a Karol Conka) que vem fazendo essa outra política, esse outro feminismo, na marra. Expondo seus corpos de maneira ativa, muitas vezes escandalosa, falando de desejo, sexualidade, multi parceiros, posições sexuais, motel, masturbação, corpo gordo, celulite, beleza negra, sexo anal, oral, sexismo, patriarcalismo, gozo, de forma explícita e desencanada.

Leila Diniz (mulher branca da Zona Sul) virou musa pelo seu comportamento libertário, que agradava mulheres e homens, mas existe toda uma linhagem outra das mulheres negras e brancas periféricas que ainda são consideradas “vulgares” quando assumem sua virilidade. E fato é que essas mulheres da periferia meteram o pé, entraram nas universidades e hoje temos entre as novas divas contemporâneas, de Anitta até uma jovem negra universitária, fashion e filósofa, como Djamila Ribeiro e outras mulheres incríveis e lacradoras, como se diz.

Mas voltemos ao corpo. A “surra de bunda” que Anitta mostra a certa altura no clipe não é só sacanagem ou vulgaridade. Se Anitta decide oferecer seu bumbum para ser cutucado por dedos masculinos ou feito percussão de forma lúdica, quem vai achar ruim? Os homens brincaram com seus paus por séculos e erigiram uma cultura falocêntrica, que se auto homenageia, um paucentrismo, que produziu “tudo que está aí”.

Deixem as mulheres brincarem com suas bundas, bucetas etc. E mais: deixem as mulheres ganharem dinheiro e projeção com seus corpos, no comando da própria monetização de suas vidas – e não sendo assujeitadas. As mulheres têm que ter o copyright e serem as principais beneficiadas de séculos de assujeitamento e sexismo.

Essa periferia global, cultural, potente, dos corpos que falam, do parlamento dos corpos (das mulheres, dos gays, trans) é o que torna ainda mais intolerável e insuportável o massacre epidêmico dos corpos negros e periféricos, pela polícia e pelo Estado, ou o feminicídio, em um país como o Brasil.

Existe uma potência dos corpos periféricos, negros, femininos, que o funk ostentou, que o rap e o feminismo negro deslocou, tirou do lugar de “objeto”, numa reviravolta cultural que explicita o outro lado: o racismo de base da nossa sociedade e as contradições da cultura pop global brasileira.

Além do funk hipnótico minimalista – “Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum. Tutudum!” -, Anitta coloca os homens de coadjuvantes: o incrível funkeiro brasileiro MC Zaac e o rapper norte-americano Maejor . Ela comanda o espetáculo pop.

Desde o início do ano 2000, quando explodiu a produção cultural das periferias em todos os campos, que certo estranhamento se dá. Quando se vê que, mesmo querendo entrar no mundo do consumo, das marcas, das comodidades do mundo capitalismo, parte dos artistas, produtores culturais, ativistas da periferia que ascenderam socialmente, não querem abrir mão da sua cultura e pertencimento, do seu território.

Estão aí, no clipe de Anitta, filmado no Vidigal, os memes culturais da periferia pop e global: a popozuda com o corpo sendo regado por homens sarados que as servem; o biquíni de fita isolante da Érika do Bronze (a mulher que monetizou a marquinha de sol! Isso que é startup!); o pobre-star que pauta os editoriais da moda praia ao ativismo; a reinvenção do cotidiano que transforma a carroceria de um caminhão velho em piscina e felicidade; a funkeira negra, gorda e glamourosa, Jojo Toddynho; a cultura evangélica “Ergo a bandeira da vitória em nome de Jesus”; as trans, o black power nos corpos e cabelos, as louraças e os meninos de cabelos descoloridos.

Toda essa cultura da laje, de uma pobreza potente, inventa mundos, modas, gírias, linguagem, inventa a sua própria vida. Se hoje o Brasil, associado a corrupção das suas elites, crise ética, perda de direitos, retrocessos comportamentais, tem outros horizontes, passa por essa força dos corpos e sujeitos que emergiram das bordas e podem reinventar a nossa trágica e solar democracia. Os corpos como política.


Anitta e a Teoria King Kong

Uma outra questão: Anitta faz parte da emergência de um feminino e feminismo viril! O masculinismo e a virilidade podem, sim, ser apropriados e transformados pelas mulheres, como propõe a Teoria King Kong, de Virginie Despentes, o manifesto mais ácido para um outro feminismo que chuta uma quantidade extraordinária de baldes e lugares comuns sobre as mulheres e reivindica para si as vantagens inerentes à masculinidade e à virilidade.

Do que nos diz Virginie Despentes e que vale para o feminismo viril de Anittas e que tais eu destacaria:

– “o exercício direto do poder”, pois espera-se que renunciemos a esse tipo de prazer em função do nosso sexo.

– o direito de comercializar e negociar nossos “encantos” e explicitar essas relações em contratos saudáveis e claros entre sexos. “Não precisa nem complicá-lo e nem culpabilizá-lo”. E aqui Despentes está falando, inclusive, da prostituição como trabalho digno e todos os demais usos monetizáveis que podemos fazer de nossos corpos. Como fazem as “minas” do funk!

O desafio é um só: abandonar a “arte do servilismo” que diz que as mulheres não devem se expor, não devem falar alto; não devem se expressar em tons categóricos; não devem sentar com as pernas abertas; não devem se expressar num tom autoritário; não devem falar de dinheiro; não devem conquistar poder; não devem ocupar um posto de autoridade; não procurar prestígio; não rir muito alto; não ser muito engraçada. A lista de “nãos” é infinita!

Por isso é tão importante as Anittas e as mulheres que estão produzindo um outro imaginário, mesmo clichês, mesmo questionáveis, mesmo dentro de um campo de consumo. É possível politizar o pop, o fervo, o funk? Na real, tudo já é político. Estamos em uma disputa de imaginários.

“O que pode um corpo?”, Pergunta o filósofo. E o que pode um corpo de uma mulher do funk, o que podem as mulheres das periferias, as negras e brancas? A mais incrível batalha não começa na mente, começa nos corpos e pode ser ao som do hipnótico tutudum.

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