CAPÍTULO 22
Conheci Elis Regina em 1968 através de seu marido, Ronaldo Bôscoli, e de seu diretor musical, Roberto Menescal. Ela sabia de antemão que Ronaldo, Menescal e eu éramos amigos do tempo da bossa nova. Porém, bem ao seu estilo, e para mostrar que era ela quem mandava, recebeu-me friamente em casa, deixando claro, ao sentar no sofá, antes de oferecer qualquer whisky, que, apesar da minha amizade com Bôscoli e Menescal, ela não pretendia ficar na CBD.
Poucos minutos depois, Bôscoli desceu do quarto e, pela primeira vez, tive o privilégio de assistir à explosão de uma briga monumental, o passatempo favorito do casal. Sentamos todos à mesa de jantar e, graças ao vinho, o ambiente foi se aliviando até que, na hora da sobremesa, consegui de Elis um ano de trégua, quando tomaria uma decisão definitiva quanto à sua permanência na gravadora.
Aprendi a gostar dessa personagem forte, dura de coração, generosa, sempre pronta a socorrer qualquer pessoa em perigo e dividida entre paixões passageiras e ódios exagerados. Trabalharíamos juntos de 1968 a 1981.
Na tarde do sábado de Carnaval de 1970, fui visitar Elis na casa das encostas da avenida Niemeyer. Entrei casa adentro... Não havia ninguém. Subi até o primeiro andar... Não havia ninguém, tampouco. Subi, então, para a piscina... E outra vez ninguém... A não ser uma moça desconhecida, tranquilamente nadando na piscina:
—Você está procurando Elis ? Eu também — disse, com uma voz rouca e olhos esverdeados.
Era Márcia Mendes, repórter e apresentadora do “Jornal Hoje”, da TV Globo. Ficamos mais um tempo esperando por Elis, que não chegava, e lhe dei uma carona até sua casa, no final do Leblon.
—Você não quer subir? — perguntou. — Não, Márcia , obrigado. Se um dia subir, será para nunca mais sair — disse eu.
Ela simplesmente sorriu. Os seus olhos e a sua voz não saíam do meu coração. E o coração batia forte, em pânico — eu já estava apaixonado. Poucos dias depois, telefonei para ela e me mudei de armas e bagagem.
A nossa vida era muito tranquila, até que Márcia não parava de ter uma febre ligeira, que não passava.
— Márcia , vai ver o médico — dizia eu.
Uma quarta-feira — todas as quartas-feiras eu ia para São Paulo —, ao chegar ao escritório, recebo um recado da clínica: era para eu voltar urgentemente para o Rio, pois Márcia seria operada de emergência. Quando cheguei à clínica, no início da noite, encontrei Márcia, já operada, sozinha, abandonada, aos prantos...
— Eu estou com câncer... Me tiraram tudo... Os ovários... Não posso mais ter filhos e nem sei se ainda posso ser mulher...
O médico chegou nesse mesmo momento, e eu, louco de raiva com sua indelicadeza, disse:
— Seu idiota, você não podia esperar minha volta para dar a notícia?!
E lhe dei uma bofetada desesperada. Márcia tinha 24 anos, era belíssima, celebrada, porém mutilada…
Guilherme Araújo era um personagem caótico, de humor irascível, de uma lógica incoerente, porém dono de uma criatividade privilegiada e de uma sensibilidade aguda, que foi de uma importância capital no lançamento dos seus artistas Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa.
Foi por meio dele que conheci Caetano. O dia e a hora do encontro foram marcados com muita cerimônia e suspense, para que não houvesse a menor dúvida da minha parte de que era um grande privilégio conhecer Caetano.
Entrei no saguão do hotel, Guilherme pediu que eu me sentasse — pois não se sabia ainda se Caetano poderia me receber —, e ali fiquei, durante uma boa hora cheia de incertezas. Enfim, subi sozinho, bati na porta e alguém, muito compenetrado e silencioso, abriu. Lá ao fundo da suíte estava Caetano, com uma bela bata branca, semi-deitado num sofá, me esperando.
De fato, o personagem era impressionante, o sorriso era impressionante, o olhar era impressionante, a doçura era impressionante... Porém, sua postura ligeiramente aristocrática estabelecia uma certa distância. Em Caetano descobri uma inteligência invulgar, e falava suavemente coisas que, de imediato, eu não entendia, por serem demasiadamente originais e sofisticadas para meu universo de reflexões da época.
Dois acontecimentos logo me fizeram entender que o Brasil, que eu havia deixado de um jeito cinco anos antes, tinha virado de cabeça para baixo. O primeiro foi ao entrar no estúdio em São Paulo. Os Mutantes — Arnaldo e Sérgio ainda meninos, lindos e comoventes; Rita, um sonho de beleza anglo-saxônica, dotada de uma voz de muita personalidade — estavam gravando sua participação no antológico disco Tropicália. Fiquei impressionado e entusiasmado pelo vigor, pelo frescor, pela qualidade musical e poética, e pela extrema originalidade e modernidade do grupo.
Semanas depois, cheguei ao TUCA para assistir às eliminatórias da final paulista do III Festival Internacional da Canção, em 15 de setembro de 1968. Eu me recordava, no tempo da bossa nova, de um público jovem, quieto e respeitoso ao ouvir seus ídolos, e, quando sentei na poltrona, com Nelson Motta ao lado, fiquei abismado com as reações tumultuadas do público, que iam num crescendo e culminaram com a apresentação de Caetano e Os LP Tropicália ou Panis et Circencis (Philips, 1968), participação dos Mutantes na faixa “Panis et Circencis” (Gil e Caetano ) e, junto com Gil, Caetano e Gal, nas faixas “Parque industrial” (Tom Zé) e “Hino ao Senhor do Bonfim” (João Wanderley e Petion de Vilar). Teatro da Universidade Católica de São Paulo.
Mutantes em “É proibido proibir” . Era tanto grito que não se podia ouvir a canção. Objetos e tomates caíam sobre o palco, e eu, boquiaberto, pensava: “O que aconteceu ao Brasil durante meus cinco anos de ausência?!”
O discurso de revolta do Caetano* em meio aos protestos dos estudantes me impressionou tanto que eu pedi na mesma hora ao Manoel Barenbeim, coordenador das gravações dos tropicalistas, que obtivesse uma cópia áudio da gravação ao vivo feita pela emissora de TV, para ser o lado B do disco da mesma canção gravada em estúdio dias antes. Em seguida, dei instruções para que o compacto fosse distribuído o mais breve possível para as rádios e para as lojas.
A primeira vez que vi o Gil foi durante a performance da mesma música. Naquela noite, quando ele subiu ao palco para dar seu apoio ao Caetano e aos Mutantes, vi um personagem gordo e barbudo, com uma atitude antipaticamente agressiva. Confesso que não gostei nada e temi por nossos futuros encontros. Mal sabia eu que, paulatinamente, Gil se tornaria o mais fiel companheiro da minha vida profissional, nas horas felizes e nos episódios difíceis.
*“Essa é a juventude que diz que quer tomar o poder? (...) Se vocês forem em política como são em estética, estamos fritos” (trechos do discurso de Caetano Veloso ).
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