domingo, 18 de agosto de 2019

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Por Luiz Américo Lisboa Junior


Nelson Sargento - Sonho de um Sambista (1979)


Existem pessoas que nasceram para brilhar, outras que ficaram fadadas ao anonimato e aquelas que se tornam importantes e ficam entre essas duas posições, adoradas por poucos, aclamadas por muitos, desconhecidas da maioria. Esta necessidade que muitos artistas possuem de manterem-se em evidencia parece mais uma tentativa desesperada de alimentar seu ego e tentar diminuir suas carências, pois, têm gente que para aparecer faz de tudo, se submete as mais vexatórias situações não conseguindo viver sem um fotógrafo por perto ou ver sua cara estampada nas revistas ou em programas de TV. É um prazer neurótico que infelizmente faz parte do nosso cotidiano e a todo o momento convivemos com essa excessiva exposição de “celebridades”. No campo da música isso se da de forma também desenfreada, e a maioria dos grandes astros de hoje não fazem jus ao tamanho de sua exposição já que seu produto artístico não corresponde em equivalência ao seu sucesso. 

Ocorre que nem sempre a fama é prerrogativa para avaliação do conjunto da obra de um determinado compositor, intérprete ou grupo musical, é preciso cautela para não se deixar levar pela emoção do momento e ter um posicionamento crítico que busque a isenção. Porém como vivemos numa época de prazeres fúteis dominado pelo materialismo e pelo consumo, o imediato passa a ser mais importante do que qualquer outra coisa que demande médio ou longo prazo, pois as pessoas só estão interessadas no aqui e agora.

É uma pena verificar que essa é uma tendência consolidada e que só tende a crescer, produzindo na sociedade uma diminuição cada vez maior do seu tempo de reflexão, pois o pragmatismo está entranhado como um valor e a palavra cada vez mais distante das pessoas, chego mesmo a pensar que a palavra morreu, o diálogo encontra-se em processo de extinção e a robotização do homem já é uma realidade. Matamos o ser e incorporamos a criatura.

Se formos parar para pensar nestas poucas reflexões poderemos crer que elas podem não atingir o seu intuito, contudo, acredito os leitores não ficarão indiferentes, pelo menos durante a leitura desse texto. Vamos então voltar à questão inicial e falar de um artista que se enquadra naquela posição mediana, adorado por poucos, admirado por muitos e desconhecido pela maioria, trata-se do sambista Nelson Sargento, compositor de grandes méritos que conserva sua essência justamente por não se deixar levar pela neurose da fama, mas consciente de seu valor para a cultura nacional. Esse homem de 82 anos é um baluarte do samba juntamente com tantos outros que como ele ainda mantêm viva uma tradição onde o mais importante é traduzir em versos e melodias um tipo de sentimento pátrio cada vez mais distante, utilizando uma linguagem popular/rebuscada traduzindo o verdadeiro caráter de nossa gente, ou seja, o primitivo ser brasileiro que infelizmente só é lembrado de modo estereotipado pelos que desconhecem nossa gênese malandra/heróica/sobrevivente/lírica.


Nelson Sargento é um artista completo, pois alem de compositor é ator e pintor, nunca teve a divulgação e o reconhecimento à sua altura, porém, tenho certeza que ele não liga pra isso, pois no fundo sabe de sua importância e contribuição a cultura brasileira. Em 1979 gravou seu primeiro LP, Sonho de um sambista, na gravadora Eldorado interpretando o melhor de seu repertório. Sua poética mistura ironia, humor e momentos de lirismo, como, “A terra é quem da a vida para a flor, num coração sincero é que desponta um grande amor” (A noite se repete); “Os amores que arranjo morrem prematuros, é uma luta tremenda pra sobreviver, eu não tenho passado, presente ou futuro, mesmo assim lhe asseguro que quero viver” (Muito tempo depois); “Se eu voltar a teus braços vou repetir meus fracassos tudo aquilo que passou, eu sinto-me tão alegre é justo que eu não me entregue a teus caprichos amor” (Minha vez de sorrir); “Desabrocham as flores nos campos, nos jardins e nos quintais, a primavera é a estação dos vegetais” (Primavera); “Destruamos nosso lar paraíso que fizemos com carinho e amor, pois hoje ele é simplesmente residência da dor” (Por Deus por favor); “O nosso amor é tão bonito, ela finge que me ama e eu finjo que acredito, nosso falso amor é tão sincero isto me faz bem feliz, ela faz tudo que eu quero, eu faço tudo que ela diz” (Falso amor sincero). 

O repertório do disco ainda inclui Triangulo amoroso; Sonho de um sambista; Infra estrutura; Lei do cão e dois grandes sambas, Falso moralista e Agoniza mais não morre, este último um grito de alerta premonitório contra a descaracterização do samba por ele já observado e que veio a tornar-se realidade anos depois com o advento da febre dos pagodeiros oxigenados. Portanto, nada mais adequado do que terminar este breve comentário sobre Nelson Sargento e seu primeiro LP com os belos e verdadeiros versos deste que é a síntese do seu compromisso com as suas/nossas tradições.

Samba agoniza, mas não morre, alguém sempre te socorre
Antes do suspiro derradeiro, samba, negro forte, destemido
Foi duramente perseguido, na esquina, no botequim, no terreiro
Samba, inocente, pé no chão, a fidalguia no salão
Te abraçou, te envolveu, mudaram toda tua estrutura
Te impuseram outra cultura e você não percebeu.

Músicas: 
01) Triangulo amoroso (Nelson Sargento)
02) Falso moralista (Nelson Sargento)
03) Agoniza mas não morre (Nelson Sargento)
04) A noite se repete (Nelson Sargento)
05) Muito tempo depois (Nelson Sargento)
06) Minha vez de sorrir (Nelson Sargento/Batista da Mangueira)
07) Sonho de um sambista (Nelson Sargento)
08) Infra estrutura (Nelson Sargento)
09) Primavera (Nelson Sargento/Alfredo Português/Jose Bispo)
10) Por Deus por favor (Nelson Sargento)
11) Falso amor sincero (Nelson Sargento)
12) Lei do cão (Nelson Sargento)

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