Os banhos de sol a que, me diziam, todos os presos têm direito - e que, portanto, todos os presídios têm obrigação de propiciar - chegaram com certo atraso. Acompanhado por um soldado portando uma metralhadora sempre apontada para mim, deixei pela primeira vez a cela que já se me afigurava eterna. O maior trabalho que minha mente teve foi o de negociar com a excitação inevitável que esse fato produzia, aceitando pouco a pouco a evidência de que, apesar do alívio físico resultante da exposição a maiores e mais variados espaços, eu estava testemunhando antes uma reafirmação do confinamento - a prisão tinha aderido à minha pessoa, seguiria comigo por toda parte - do que uma verdadeira experiência de liberdade, mesmo relativa: me tiraram da cela por alguns minutos apenas para que me sentisse mais preso do que nunca. O soldadinho que caminhava a um passo de mim com sua metralhadora em permanente ameaça (eu sentia um medo estável durante todo o tempo em que o cano da arma apontava para mim) me pedia que não falasse, não parasse de caminhar, não me afastasse dele nem tentasse andar mais rápido, caso contrário seria obrigado a atirar em mim (ele também demonstrava medo no modo falsamente agressivo com que falava e no subtom de súplica perceptível na frase: "Não me obrigue a fazer isso"). Era reconfortador, apesar de tudo, ver outras pessoas movendo-se sob o sol, entrando e saindo de portas, embora o fato de serem todos homens e fardados funcionasse como uma reafirmação a mais
da prisão como tendo tomado conta de tudo, e do caráter de pesadelo que o mundo adquirira desde aquela madrugada em São Paulo. Um outro homem sem farda passeava pelo pátio. Era, evidentemente, um preso: seu guarda armado o seguia de perto como o meu a mim. Forçando uma aproximação a que o soldado que o acompanhava se opôs com firmeza duvidosa, ele veio até mim e me dirigiu a voz, para grande nervosismo do meu guarda, que agora implorava que eu não falasse com o estranho: "Você não pode, eu tenho ordens de atirar". Só não entrei em pânico por causa da expressão segura e desdenhosa dessas ameaças que se estampava na cara do meu teimoso interlocutor. Ele me chamava pelo nome com desenvoltura e seus olhos pareciam dizer: "Ninguém vai nos matar, eu já conheço esses soldadinhos assustados, conversemos". Era Ênio Silveira. Seu desassombro me transmitiu não apenas a impressão de que ele era familiarizado com prisões e carcereiros: sua alta estatura, seus modos desembaraçados e elegantes, sua segurança, pareciam impor-se, por alguma força de classe, àqueles adolescentes fardados. Era como um adulto falando a crianças, mas, sobretudo, como o "doutor" falando a dois pobres-diabos. Perguntou-me se os livros tinham chegado a minhas mãos. Eu disse que sim e agradeci com o que creio (quase não creio) que tenha sido um sorriso. Ele sim sorria sem tensão visível. Foi a única vez que o vi. Ele se afastou acompanhado do seu guarda, deixando a impressão de que o tinha feito por deliberação própria e não por obediência ou medo. Na verdade dirigiu um gesto sutil aos soldados que parecia querer dizer: "Muito bem, eu conheço as regras do jogo, é claro que não vou exagerar, o meu senso de medida me autoriza essas pequenas contravenções, já comuniquei ao meu companheiro as trivialidades
que desejava comunicar, agora podemos seguir". O soldado que era responsável por mim mostrou-se muito mais nervoso do que o outro. Tanto quanto eu próprio me mostrava mais assustado do que o famoso editor. Alguns minutos depois eu estava de volta à cela.
Não sei se houve um outro banho de sol. Lembro do pátio grande (mas não muito grande), da luz intensa e do calor. E essas lembranças às vezes surgem independentes do encontro com Ênio, como se uma das sessões de caminhada tivesse sido dominada por esse incidente e a outra tivesse transcorrido toda em silêncio e observação. Talvez tudo tenha se dado numa única saída ao pátio interno. Se houve dois banhos de sol, não sei em qual dos dois eu e o velho da cela ao lado decidimos aproveitar a oportunidade para nos conhecermos visualmente. Agrada-me pensar que fui eu que ganhei coragem e, antes de ser levado para fora do corredor (ou, quem sabe, antes de ser reintroduzido na cela), pedi aos carcereiros que me deixassem ver o velho e falar-lhe de frente. Mas é mais provável que a sugestão tenha partido dele. Seja como for, os soldados atenderam ao nosso pedido, e eu vi a cabeça achatada e quase toda careca de um homem de olhos de índio que sorria discretamente para mim com esse ar cruamente sincero que faz com que nos nordestinos a bondade ou a ternura nunca pareçam piegas. Dava para ver que se tratava de um homem troncudo. É possível que tenha havido também uma oportunidade de, depois disso, eu vê-lo passar no corredor para seu turno de exposição ao sol. Talvez ele tivesse sido levado outras vezes para isso, antes da minha primeira vez, e eu não tenha me dado conta: deitado no chão, sem saber da existência das caminhadas, eu não imaginaria que algo assim se passasse e, embora às vezes ouvisse diálogos entre guardas e presos, quase nunca me dispunha a esticar-me para olhar. Nessa vez em que sem dúvida nos vimos, não lembro o que nos dissemos. Mas creio que ele mencionou minha carreira de cantor, com agradecimentos pelas muitas vezes que cantei "Súplica", e de alguma forma deixou claro que esperava que eu não demorasse muito na cadeia, embora soubesse que ele próprio ainda tinha muito tempo de reclusão pela frente.
Julguei ver cumprir-se a boa previsão do velho quanto ao tempo que eu permaneceria na prisão quando um soldado chegou com minhas roupas e sapatos e um oficial ordenou que eu tomasse banho e me vestisse para ir embora. Não pensei que estivesse sendo libertado imediatamente, apenas considerei, com muito otimismo, que afinal eles me conduziriam para o interrogatório. Na verdade, essa ideia do interrogatório tinha se tornado uma obsessão, pois representava a única ligação com os últimos momentos de vida real que eu experimentara antes de entrar no pesadelo. De minha cela, podia ouvir que eles se comunicavam com Gil provavelmente dando instruções semelhantes às que me tinham dado. Tomei banho, vesti a roupa e, em pouco tempo, me encontrava ao lado de Gil, em algum lugar sob pilotis, de pé, costas contra a parede, esperando não sabíamos o quê. Nos disseram, com veemência, que, para o nosso próprio bem, não trocássemos uma só palavra. Escoltados por soldados e oficiais, Gil e eu tentávamos nos comunicar silenciosamente. Enviávamos interrogações e mensagens de apoio mútuo no sentido de manter a integridade mental e a paciência.
Por fim, jogaram-nos nos fundos de um camburão e bateram a porta com brutalidade, deixando-nos na total escuridão. O carro arrancou e, como eles tivessem disparado a sirene, aproveitei para tentar falar com Gil, certo de que não nos ouviriam. Ainda assim, cochichávamos. Na verdade, apenas repetimos as perguntas que já nos tínhamos feito sem palavras: aonde nos levarão?; haverá, afinal, um interrogatório?; o que será que está, de fato, acontecendo?; e, depois de rodarmos aos solavancos por muito tempo, onde será que estamos agora? O som da sirene era inacreditavelmente intenso e parecia sair de dentro de nós. Como era um ruído habitual da cidade, o qual sempre ouvíramos de longe como indicador de que se transportava um ferido, um bandido ou um enfermo, ser chacoalhado dentro do ventre do monstro que produz tal gemido, e, ainda por cima, na mais completa escuridão, fazia-nos sentir como se estivéssemos no coração do mal - e pela primeira vez pensei em como seria doloroso para os membros de uma boa família ter seu filho ou irmão preso por algum crime. Pensei em meu pai e minha mãe. Em como eles, embora com certeza não se envergonhassem de mim, sofreriam se soubessem que eu estava rodando as ruas da cidade do Rio de Janeiro dentro de um carro de polícia com a sirene em estardalhaço penoso e constante.
Quantos pais de família estariam andando pelas calçadas à beira das ruas por onde o camburão passava! E quão longe tantos deles sentiriam que suas vidas estavam daquele som estridente e queixoso em cujo núcleo inescrutável eu agora me encontrava instalado! Meus olhos se esbugalhavam na escuridão à medida que a viatura avançava, entre freios bruscos e arranques ruidosos. Gil e eu desistimos de falar. A inexplicável demora da barulhenta viagem nos fazia imaginar que os policiais estavam rodando sem rumo apenas para nos meter medo. Não lembro de ter comentado isso com Gil nesses termos, nem de tê-lo feito depois da volta à liberdade, mas tenho certeza de que Gil pensava exatamente a mesma coisa que eu. Sentíamos medo. O carro em que estávamos não era do exército nem da Polícia Federal. Talvez pertencesse à Polícia Militar. É mais provável que fosse da Polícia Civil, pois lembro de dois ou três homens à paisana tomando os assentos da frente. Isso dava a impressão de que qualquer coisa podia acontecer conosco sem que ninguém se desse conta. Um aparelho repressor tão confuso, sem mandado de prisão, sem interrogatório e com tantas polícias envolvidas, produzia a sensação de que tínhamos sido atirados num inferno de que os solavancos no escuro e as curvas fechadas ao som do grito dolorido mas impiedoso da sirene eram apenas um indício. Em breve, com efeito, se multiplicariam no Brasil os casos de desaparecidos, e cada vez um número maior de pais de família teriam seus filhos em situação semelhante à nossa, ou bem pior. Fomos despejados num outro quartel da PE, na vila militar que se encontra no distante subúrbio de Deodoro, o que talvez explicasse a viagem demorada, embora não fosse suficiente para justificar o tortuoso do caminho percorrido. De todo modo, não lembro com clareza a chegada à vila. Não fomos entregues pelos paisanos aos nossos novos hospedeiros militares à porta de um edifício, mas em algum descampado do terreno pertencente a um quartel. Foi a única vez que nos trataram com alguma violência física: algemados com as mãos para trás, levamos alguns empurrões e trancos enquanto nos apressavam o passo. As algemas foram retiradas, não sei por quê, antes que entrássemos no quartel. Era um complexo de edificações modernas de um só andar, cujo prédio principal, onde se encontravam as celas, me lembrava o Ginásio Teodoro Sampaio, onde eu estudara em Santo Amaro. Como tinha acontecido na PE da Barão de Mesquita, disseram que tirássemos as roupas, conservando apenas as cuecas tipo sunga que usávamos, e nos conduziram para as celas. Só que dessa vez eram xadrezes grandes, onde vários outros já se encontravam presos. Os soldados me puseram no primeiro xadrez do corredor e seguiram com Gil para um imediatamente ao lado. Experimentei uma emoção de que não me sabia mais capaz, ao ver outras pessoas em situação bastante próxima da minha para que pudéssemos falar em pé de igualdade. E essas pessoas não tinham o ar desesperado ou sonâmbulo que já devia ser o meu. Creio que não chorei, mas era como se tivesse chorado. Abracei nervosamente muitos deles como se estivesse reencontrando amigos, embora fossem pessoas que eu nunca tinha visto antes. Eles reagiram com compreensão e naturalidade, correspondendo aos abraços e dizendo o que lhes fosse possível para me acalmar.
Eram todos aparentemente mais moços do que eu. Um deles, demonstrando espírito de liderança, propôs que rezássemos um terço em conjunto e, para isso, nos dispôs em círculo no meio do xadrez. É o único companheiro de prisão de quem fiquei amigo mas de cujo nome não esqueceria mesmo se isso não acontecesse - e ele não tivesse se tornado um grande ator e ainda maior agitador cultural do Rio de janeiro dos anos 70 em diante: é que ele tinha sido batizado e registrado com o inesquecível nome de Perfeito Fortuna. Em sua maioria, os garotos com quem eu dividiria de agora em diante aquela cela eram de uma associação católica de bairro ligada a algum padre de esquerda. Me senti muito reconfortado com a ideia da oração coletiva: era um modo ritual de eles dizerem que estávamos juntos e que, assim, podíamos fazer alguma coisa. Mas a oração mal começou. Um sargento ou tenente que ouvira o som das vozes rezando veio enfurecido, ordenou ao soldado que abrisse a porta gradeada, entrou no xadrez, e, aos palavrões, arrebatou o terço da mão do nosso líder. Isso me fez retroceder de maneira dolorosa ao estado de abulia do qual acreditava estar começando a poder sair. Aquele bando de jovens usando apenas cuecas mínimas e sem saber ao certo o que estava se passando com eles, jogados numa cela quente como um forno, tinham readquirido momentaneamente, por meio do ritual do rosário, uma
dignidade humana, uma compostura que a brutalidade do militar destruíra em poucos segundos. Os rapazes, no entanto, resmungaram indignados, segredando uma fúria contra o tirano que, se não chegava até ele, reforçava o moral do grupo ofendido. Alguns deles, percebendo que eu tinha sido atingido especialmente pela agressão, tentaram me consolar e encorajar dizendo que não me assustasse, que aqueles babacas eram assim mesmo mas nós sempre acharíamos meios de manter nossa integridade.
Ficamos pelo menos mais uma semana nesse segundo quartel da PE. Como na primeira semana, não vi Gil nem uma vez. E, diferentemente do que acontecia (ou foi dito que aconteceria) no quartel da Barão de Mesquita, não havia banhos de sol. Era janeiro no Rio, pior, na baixada da Zona Norte da cidade, o que significa um calor de ficção científica. A água do único chuveiro que usávamos parecia aquecida artificialmente, mas nós sabíamos que isso se devia somente à ação do sol sobre o tanque. O banheiro aqui era um pequeno cômodo independente, com um chuveiro, uma pia e um vaso sanitário, anexo ao xadrez propriamente dito, do qual se separava por uma porta que, naturalmente, não se podia trancar. Soube pelos meus companheiros que, no xadrez ao lado, Gil estava na companhia de vários escritores e jornalistas famosos. Entre estes, Ferreira Gullar era particularmente querido por sua capacidade de encorajar, seu senso de solidariedade e seu talento para encontrar soluções inventivas mesmo naquela situação tão pobre de possibilidades. Um garoto que tinha sido transferido do xadrez deles para o nosso (um magrelinho de óculos cujos olhos de japonês e audácia quase suicida no trato com os militares lhe valeram o apelido de Sumidinha, numa referência a um ex-preso, este um nisei de verdade - ou seria isso um trocadilho cujo humor não alcancei? -, de nome Sumida, de quem se dizia ter sido assassinado pelos militares) falava de Gullar com os olhos cintilando de admiração. Ele me informou sobre um mecanismo, idealizado e construído por Gullar, que tornava possível a comunicação escrita entre os dois xadrezes, através de um sistema de cordões que passava bilhetes de um lado para o outro por cima do tanque de água que servia aos dois banheiros. A caneta (conseguida com uma astúcia cujos detalhes eu não conheci) e os papéis (subtraídos à ração de papel pardo que substituía o papel higiênico) ficavam escondidos em cima de um muro rente ao tanque, junto aos cordões, e, toda vez que se fazia necessária uma comunicação, um preso entrava no banheiro enquanto os outros guardavam a grade para avisar no caso de algum oficial ou soldado se aproximar. Havia um sinal de batidas na parede para anunciar o envio de um bilhete, e havia um outro sinal para alertar sobre a chegada de um militar. Gil nunca me mandou nenhum recado, nem eu a ele. Um dia chegou para mim um bilhete do jornalista Paulo Francis, perguntando se eu tinha notícias de Ênio Silveira. Respondi prontamente, informando de maneira sucinta sobre seu bom estado de saúde e sua solicitude em enviar-me livros. Sumidinha também nos contou que havia um homem com problemas de locomoção que tinha sido literalmente despejado de uma cadeira de rodas dentro do xadrez por ser um homônimo do escritor Antônio Callado, contra quem havia uma ordem de prisão. Apesar da insistência dos outros presos em dizer que aquele homem não era o escritor Callado, que eles todos conheciam bem, os militares o mantiveram ali por alguns dias supondo que os colegas negavam-lhe a identidade por pena. O verdadeiro Antônio Callado chegou ao quartel da PE da Vila Militar enquanto ainda estávamos ali e , assim, seu desafortunado xará foi libertado.
Tão marcante quando rememoro o mom ento da detenção, a escova de dentes - que deve ter me acompanhado durante todo o período – parece ter sumido da minha lembrança dos dias em que estive preso. Por mais que me esforce, não consigo lembrar de mim mesmo escovando os dentes em nenhuma das três celas em que vivi por dois meses. Tampouco tenho lembrança de ver meus companheiros da Vila Militar o fazendo. Não tenho dúvida de que escovava os dentes diariamente, desde o primeiro dia na Barão de Mesquita. Mas não sei sequer como foi tratada a questão da escova nos momentos em que, ao chegar a cada um dos três quartéis por onde passamos, nos despojavam de todos os nossos pertences e roupas.
Eles nos mandavam tirar os relógios, as carteiras com o que houvesse de dinheiro e documentos, e, por fim, as roupas, com exceção apenas das cuecas mínimas, tipo sunga, então ainda uma novidade (e, no entanto, todos os rapazes do meu xadrez usavam-nas igualmente, sem nenhum caso de preferência pelo que a essa altura se começou a chamar de "cueca samba-canção" - embora esta devesse ser encontradiça no xadrez de Gil, cheio de homens mais velhos). Quanto às escovas, certamente as trouxéramos de casa nos bolsos, mas não lembro de receber a minha de volta quando lhes entregava a camisa, ou de, por exemplo, caminhar para dentro da cela quase nu com uma escova na mão. Tampouco sei o que fazia com a escova cada vez que deixava um quartel, nem mesmo o que fiz com ela ao ser solto. O modo como nossa memória seleciona é curioso. Claro que não lembramos "tudo". Mas no caso de um cotidiano tão empobrecido, por que esquecemos tão totalmente mesmo a experiência de algo que, com absoluta certeza, sabemos que se deu? Sem dúvida minha mente criou mecanismos para se defender, e essas amnésias específicas devem ter desempenhado um papel nesse processo. Talvez os gestos meramente automáticos de todo dia tenham sido esquecidos à medida mesma que se realizavam. Estou certo de que escovei os dentes todos os dias em que estive preso, mas o fiz num tal grau de entorpecimento que nada ficou em mim que pudesse trazer de volta uma imagem ou uma sensação que o confirme. Do mesmo modo, nunca consegui lembrar com segurança se havia ou não toalha de banho, fosse na solitária, fosse no xadrez. Estou quase certo de que na Vila Militar, onde éramos tantos, não tínhamos toalhas para nos enxugar depois do banho. De resto, isso não era necessário, uma vez que o calor era tão intenso que mal saíamos do chuveiro já nos sentíamos secos. Lembro de sentir a cueca, que vestia sobre o corpo molhado, secando em contato com a pele. Mas não sei se se pode confiar nessas lembranças: eu não estava suficientemente desperto ou lúcido no momento mesmo em que realizava esses atos para guardar deles uma ideia precisa.
Desse modo, apesar de me sentir consideravelmente mais animado do que na solitária, meu sono continuava irresistível. Não que se possa dizer que eu estivesse menos infeliz. A presença de outros rapazes com quem podia conversar representava um alívio depois de uma semana sozinho. É verdade que de vez em quando nos diziam que não nos era permitido conversar. Mas todos - presos e carcereiros – sabíamos que uma tal proibição era praticamente impossível. As vezes, quando estávamos falando alto, um sargento gritava para que nos calássemos. Perfeito Fortuna, que reagia com humor a qualquer tipo de agressão, não se intimidava com tais gritos e encenava números musicais e monólogos teatrais, improvisando figurinos com os lençóis. (Pois havia lençóis e colchões espalhados pelo chão, e pelo menos uma cama sobre a qual revezávamos). Ora ele era um galã, ora uma vedete. Muitas vezes cheguei a rir. No entanto, aquela subvida se arrastava sem esboçar uma solução: ninguém falava em interrogatório. Além disso, nos dias de visita, todos podiam sair da cela para falar com seus familiares na varanda ou na sala grande da entrada, menos eu e Gil: continuávamos incomunicáveis. Os meninos, ao deixarem o xadrez para as visitas, tentavam me consolar com palavras carinhosas. Eu ficava sozinho na cela enorme. Nem isso me fazia chorar.
Um detalhe terrível me levou às lágrimas inúmeras vezes quando lembrado depois que fui solto: as discussões de Dedé com os oficiais nas tentativas que ela fez de falar comigo nesses dias de visita, e que eu ouvia estarrecido de dentro da cela, sem que ela soubesse que eu podia ouvir. Ela insistia em me ver, respondendo com ira e coragem às ameaças dos militares que nem sequer lhe confirmavam minha presença ali. Eles não sabiam - nem eu, é claro - como ela havia descoberto meu paradeiro. Ela alegava que não sei que autoridade lhe assegurara o direito de me visitar. Aparentemente, alguém lhe prometera isso, mas ninguém dera uma ordem nesse sentido aos meus hospedeiros. Ao menos uma vez percebi que ela estava chorando enquanto falava com os oficiais. Ouvir a voz de Dedé, aquele timbre cheio de confusão e verdade, aquela emissão em carne viva - e ouvir-lhe a voz sem poder ver-lhe o rosto, tocar-lhe a pele ou lhe dar resposta -, era para mim, nas circunstâncias em que me encontrava, uma experiência dilacerante: sem ser capaz de tirar-me totalmente do estado de loucura a que fora levado, aquela voz, vinda do passado remoto e inconvincente que eu guardava na memória, tinha ainda o poder de me enternecer. E esse enternecimento desequilibrava a letargia que era minha proteção. Eu sentia o ímpeto de abraçar e beijar, cheio de gratidão, aquela mulherzinha que era minha e que existia e que era a fonte de todo o bem possível e que estava a poucos passos de mim sem me saber tão próximo, apenas uma parede nos separando. A primeira vez que, sozinho na cela, reconheci sua voz, assustei-me e descri. Agora que a repetição teimosa confirmava-lhe a realidade, eu, embora me mantivesse imóvel, não sabia o que fazer para conter o impulso de sair dali, de libertar-me das paredes e das restrições, de espernear contra minha desgraça. Dedé, chorando em voz alta dizia aos militares que voltaria no próximo dia de visita, com a certeza de que então haveria uma ordem de permissão para nosso encontro. E a ponta dessa esperança me mantinha inerte, me dava forças para adiar o descontrole iminente. Alguns minutos depois, meus companheiros de xadrez voltavam com doces caseiros que me ofereciam, e me davam noticias de Dedé. Eles a viam, mas não podiam lhe dizer nada, nem mesmo que eu estava de fato ali. Ela própria tomou a iniciativa de mandar recados e pedir noticias através de familiares dos outros presos, mas esse expediente foi pouco usado, pois em poucos dias seríamos transferidos uma outra vez.
Meu sono continuava irresistível, mas não igualmente freqüente. Mesmo antes dessas tardes em que eu ouvia a voz de Dedé, o estímulo que eu encontrara no mero fato de ter companhia era suficiente para fazer uma diferença quanto a isso. É possível que eu dormisse tão cedo quanto na solitária, mas creio que a sesta já não era infalível. No entanto, como já disse, vários fatores de depressão contribuíam para a perpetuação do torpor, o primeiro deles sendo, é claro, a ausência de qualquer sinal de que nossa situação pudesse se resolver. Na solitária eu já tinha desistido até mesmo de pensar em me masturbar: as tentativas me deixaram amedrontado. Aqui no xadrez da Vila, além de tudo eu não estava sozinho: não havia desejo nem oportunidade para a masturbação. Um dia um dos rapazes do xadrez afirmou, numa conversa de que todos participávamos, que os militares punham uma "substância broxante" em nossa comida. Hoje penso que isso devia ser um mito consolador. Pelo menos o foi para mim: tomei -o como uma explicação satisfatória da total inapetência sexual a que me via reduzido. Com efeito, depois de quinze dias sem sexo, eu não tinha tido nem mesmo uma polução noturna. Mas tenho razões para crer que já não dormia tão profundamente durante a noite. Uma terceira cela era reservada para os presos comuns. Todos nós, presos políticos, sabiamo-nos sob a proteção de uma ordem de não-agressão física a que, por vezes, alguns oficiais se referiam com desdém e impaciência. A irritação com essa ordem não raro se manifestava em sessões de humor negro, com algum oficial, apontando o cano do revólver para dentro do xadrez, num protesto contra a benevolência de seus superiores, a dizer: "Se fosse por mim, eu metia logo bala em vocês". (Sumidinha, no seu jeito temerário, desafiava o tenente ou capitão a fazer o que ameaçava). Os presos comuns não se beneficiavam dessa benevolência. Podia-se também verificar uma alta rotatividade no terceiro xadrez: presos chegavam durante a noite, outros entravam e saiam no mesmo dia, vários passavam de saída pelo corredor sob as ameaças dos carcereiros que os aconselhavam a não mais se arriscar a aparecer diante deles na rua. Dizia-se tratar-se de ladrões e contraventores das redondezas da Vila, pequenos criminosos da Zona Norte. As vezes eu era acordado no meio da noite por gritos horrendos vindos do corredor. Eram surras intermináveis e, mais de uma vez, ouvi as vozes dos verdugos pedirem com urgência a "padiola".
Essas vozes por vezes pareciam surpresas com o resultado dos maus-tratos. De uma feita, pelo menos, tive a quase-certeza de que a vitima tinha morrido. Alguns dos meus companheiros de cela insinuavam que tudo aquilo podia ser encenação para nos amedrontar. Mas tal insinuação não era convincente. Outros alimentavam o ódio aos algozes considerando que aquela gente pobre podia ser espancada e mesmo assassinada ali sem que ninguém tomasse conhecimento. De fato, desde essa experiência na PE da Vila Militar, passei a ter uma ideia diferente da sociedade brasileira, a ter uma medida da exclusão dos pobres e dos descendentes de escravos que a mera estatística nunca me daria. Mas seriam sempre realmente de presos comuns os gemidos infernais que ouvíamos nas noites da Vila Militar? A longa duração de algumas dessas sessões de tortura de que éramos testemunhas auditivas me leva a supor que talvez, durante a noite, fossem trazidos alguns militantes de quem se queria arrancar confissões importantíssimas.
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