terça-feira, 20 de agosto de 2019

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Oração à Rainha do Mar

Regravar Dorival Caymmi é para quem tem coragem. O que acrescentar a um cancioneiro ícone de nossa cultura e que já mereceu gravações memoráveis? Marina de la Riva encara o risco com beleza. A ponte sonora samba-zamba de Rainha do mar (2017) ilumina a poesia de Caymmi. Só pelo fato de unir "É doce morrer no mar" (Dorival Caymmi e Jorge Amado) a "Alfonsina y el mar" (Ariel Ramírez e Félix Luna) o disco já mereceria escuta atenta. Mas as belezas não param por aí. 
A récita de "Oração à Rainha do Mar" (Marina de la Riva), incluída entre o canto de "Sargaço Mar" mira no "fim de som, doida canção" de Caymmi. O canto dá lugar à fala. Os tons - "verde luz / verde cor de arrebentação" - do mar sonoro caymmiano se ajustam à oração de quem quer "morrer para viver com Iemanjá".
Nesse processo, as línguas se embaralham: "Deusa do amor, deusa do mar" e "Reina del Mar, Reina del Agua" num movimento que tenciona o medo e o desejo condensados na amorosa e assustada representação da entidade cantada. 
A destinatária da mensagem (do pedido) é Yemanjá, tão brasileira, quanto cubana. Outrora, por exemplo, os versos de "Mi Cocodrilo Verde" (José Dolores Quiñones) já deixaram essa relação entre a Iemanjá do Brasil e a Yemanyá de Cuba evidente: "En tu palmar se pierde / La clásica leyenda / De Yemanyá y Changó". 
O mar é ponte e a Rainha do Mar precisa ser mimada. É isso que Caymmi faz. Marina compreende isso. Com o destaque para o fato de que o pastiche engendrado por Marina de la Riva precisa cantar ao mesmo tempo a Rainha e Caymmi (o grande cantor da Rainha). A vocalização final de "Yemanjá Odoya", presente em "Sargaço Mar" e em "Oração à Rainha do Mar" sintetiza isso: o respeito pelo cantor, daí a oração ser recitada e não cantada; e a reverência que une - "Somos tus hijos / Venimos a pedirle la bendición, / Sabemos que no hay mal que por bien no venga / Y que hay más tiempo que vida, / Dicen que lo que está pa'ti nadie te lo quita" - os cantores à Iemanjá.


***

Oração à Rainha do Mar
(Marina de la Riva)

Reina del Mar,
Reina del Agua,
Somos tus hijos,
Venimos a pedirle la bendición,
Sabemos que no hay mal que por bien no venga
Y que hay más tiempo que vida,
Dicen que lo que está pa'ti nadie te lo quita,
Nadie te lo quita.
Bendecinos madre, bendecinos.
Yemanja Odoya... Bendecinos madre.
Yemanja Odoya... Bendecinos... Yemanjá Odoya.







* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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