Dedé me chamou para ir até a varandinha atapetada e envidraçada que ficava junto à sala de visitas. Ela queria me mostrar uma coisa impressionante: São Paulo à noite, vista da janela do nosso vigésimo andar, enquanto estávamos sob o efeito do auasca. Não sei o que ela via. Era óbvio que, sem nos explicarmos muito, externávamos reações muito semelhantes. A mim impressionou-me sobretudo a sensação de que a cidade estava - era - morta. Não que fosse triste - e muito menos feia. Era algo imenso, metálico, brilhante apesar de escuro (tudo
parecia negro), mas, diferentemente de Dedé, dos amigos, do apartamento - e até do tapete de náilon -, sobretudo dos anjos hindus que eu via por trás de minhas pálpebras, não parecia ter vida. Voltei ao quarto do som e retomei a experiência celestial dos olhos fechados.
Quando, alguns anos depois, li As portas da percepção e Céu e inferno, de Aldous Huxley, recebi com rápida naturalidade suas observações sobre o papel da cor na aferição, pela mente, da realidade do percebido. O preto-e-branco, ou qualquer monocromatismo, é a marca mesma da representação, da abstração, da irrealidade. A cor, antes de nos aparecer como um mero atributo (como alguns amigos meus argumentaram contra Huxley ), tem o gosto do real quando captado pela visão. Sem dúvida usamos automaticamente a cor como prova de realidade. Há vários outros indicadores - constância, correspondência interestésica etc. - que asseguram o real e o opõem às alucinações, às ilusões e aos sonhos.
Chegamos a uma intuição de evidência da realidade. No caso dessas visões obtidas com o auasca, sobretudo por causa da cor - e a despeito de não haver nenhuma manifestação sonora, tátil ou olfativa -, era-me evidente que o que eu via de olhos fechados era mais real do que o que eu via de olhos abertos. Mas o que quer dizer mais real? Eu podia me ver vendo o que via e, embora sabendo que tudo eram instâncias ilusórias, era capaz de julgar o que se aproximava mais do real absoluto. Não havia nenhuma desvalorização do real cotidiano: eu sabia de mim, dos meus e do mundo - e minha capacidade de amor por tudo isso estava muito aumentada. Apenas eu entrara em contato com um nível de realidade mais funda e mais intensa. E o fato de eu poder amar com mais força o que aí se apresentava contribuía para a intensificação do meu amor pelo mundano comum. Eu me sentia feliz. Mas essa felicidade, embora sentida com arrebatamento, também era vista de longe, como um mero aspecto desse mundo menos real do que aquele dos anjos hindus.
Estes eram também reconhecidos como meus ancestrais: eram todas as pessoas que existiram para que eu chegasse a ser. Eram também todas as pessoas que realmente existiam. Diferentemente de nós, elas existiam desde sempre e para sempre, o círculo sem fim de sua dança (porque era um círculo, embora não se vissem seus limites e, ainda que ele não fosse bidimensional, não era uma esfera) era um movimento de aproximação do absoluto. Nós éramos contingentes, elas eram necessárias.
De fato, logo elas descreviam em sua dança a formação de um centro de tudo: algo que, sem deixar de ser uma multidão de dançarinos nus, era ao mesmo tempo um rosto e uma fonte. Eu sabia que me aproximava do sentido último de todas as coisas. Daquele rosto emanava perenemente tudo. Aquela fonte olhava e sabia. Os anjos não simplesmente emprestavam seus corpos nus para que o desenho se realizasse: seus semblantes amáveis, a qualidade da cor de sua pele, o estilo de seus movimentos, comunicavam a ideia de face e de fonte. Eles traziam em seus olhares e seus gestos (é preciso relembrar que eu sentia conhecê-los cada um individualmente) a mensagem de poder, sabedoria, inevitabilidade e grandeza da cara da pessoa-fonte. Não sei se tive, diante dessa representação da ideia de Deus, o súbito retraimento de quem aprendeu que a face do Criador não pode ser contemplada. O fato é que, num dado momento, considerei que talvez me tivesse deixado ir longe demais. Uma outra possibilidade de interpretação que minha lembrança autoriza é a de que, naquele momento, o efeito do auasca começou a dar mostras de extinguir- se. Porque eu não quis deixar de ver o ser central que se revelava: o que eu quis, repentinamente, foi deixar de ter visto tudo o que vira, sentido tudo o que sentira.
Um enorme cansaço, combinado com uma enorme excitação, me deixou em estado de desespero. Decidi abrir os olhos e sair do quarto do som, onde estivera quase todo o tempo, e ir para a sala de jantar. Mas a ideia da infinidade de processos mentais complexos que isso implicava me paralisou. Então tive medo de não ser mentalmente capaz de decidir (e realizar a decisão de) dar dez passos.
Compreendi, com a mesma lucidez com que pude compreender tudo o que vira sob o efeito do alucinógeno, que estava louco. Em suma: já não era capaz de voltar a sentir-me integro como enquanto via anjos e átomos sem perder o mundo, nem de voltar a integrar-me nesse mundo cuja realidade fora posta em questão. De todo modo, minha mente estava exausta das operações estéticas, lógicas e afetivas a que se dedicara com tanta espontaneidade.
Eu sentia a mesma saudade das pessoas e das coisas que tinha experimentado com o lança-perfume e com a maconha, só que, em vez de sentir-me como um fantasma numa zona penumbrosa na periferia da vida, sentia-me vivo, demasiado vivo, cheio de nervos ativos e em incontrolável desordem. Arranquei-me da imobilidade com violência, mas percebi com grande decepção que isso não me trouxe de volta a inteireza do eu. O modo brusco como me movi e os gritos com que tentei me comunicar explicando o que sentia logo preocuparam meus amigos, que, a partir desse momento - pois todos já estavam também voltando da "viagem" - , passaram a cuidar de mim, procurando acalmar-me por meio de carícias ou repreensões. Lembro de Duda falando muito sério, como a dar à minha possível capacidade de autocontrole uma característica de responsabilidade moral. E Dedé falando pouco, omitindo-se, arriscando investidas esporádicas, esperando captar um momento bom para ser útil de fato. (Como, em retrospecto, vejo esses dois sendo tão caracteristicamente eles mesmos!) Eu sabia que já não sabia quem, o que era eu. Pedi então que Dedé me levasse ao espelho do banheiro. Vendo-me, pensei, reconquisto-me. Mas o que vi no espelho – embora na lembrança eu reconheça como tendo sido exatamente meu rosto, nem mais nem menos - me pareceu uma imagem indecifrável. O fato de, mesmo então, eu saber que essa imagem indecifrável era, não uma deformação decorrente de alucinação, mas meu rosto de sempre, me dava a certeza de que estava louco. Esse eu que tinha tal certeza era como que indestrutível: ele não fica louco, não dorme, não morre, não se distrai. Eu sofria com a percepção intelectual e sensorial da existência como se sofre ao ouvir um giz que range sobre o quadro- negro ou uma unha sobre o vidro. Por algumas horas andei de um lado para outro do apartamento, vivendo no inferno. O mal, com efeito, era vivido como eterno. A intensidade da dor se multiplicava com a perspectiva de sua perpetuação e o reconhecimento de sua duração já longuíssima.
Curiosamente, de todos os amigos presentes, apenas um me volta sempre à memória como estando, de algum modo, ligado - seja como indutor ou mero espectador - aos primeiros momentos de esperança de melhora. Waly Salomão, com sua cara larga, sua modéstia autêntica escondida sob um egocentrismo espetaculoso, sua doçura acuada pelo brilhantismo e pelas reações às vezes injustas, parece que estava qualificado para dar-me as boas -vindas de volta à vida. Waly me fora anunciado como João Gilberto: um colega do clássico (Wanderlino) me disse que eu, que gostava de coisas loucas, precisava conhecer um sujeito maravilhoso, um conterrâneo seu (da cidade de Jequié, no interior da Bahia) que tinha muito a ver comigo. Ficou de trazê-lo até o Severino Vieira (Waly estudava no Central) para fazer as apresentações. Depois de uns dois alarmes falsos, finalmente nos encontramos. Wanderlino falara-lhe também de mim. Waly não me decepcionou, mas me parece que, embora não o tenha desagradado, eu não o entusiasmei. Wanderlino sabia mais do que nós: em pouco tempo, Waly e eu tínhamos nos tornado amigos e o somos até hoje. Sua capacidade de surpreender com associações de idéias insuspeitadas e reveladoras, seu humor genuinamente anárquico e de uma inteligência que mete medo, enfim, toda a sua imensa energia tão destrutiva quanto enriquecedora me apaixona. Nesse dia da viagem de auasca percebi com clareza o que já vislumbrava desde sempre: essa fúria e festa permanente também me comove. Não foi uma volta segura. Sentado com Waly na varandinha atapetada, com o sol já entrando pelas vidraças, eu tateava em direção à resignação a uma aliança provisória e precária com o real. Acho que todos os outros, inclusive Dedé, tinham ido dormir, tranqüilizados com minhas mostras de retorno à normalidade. A cara de Waly, seu clima de doce seriedade (o exato oposto de sua persona habitual), ficou relacionada, para mim, aos momentos em que a frágil felicidade se apresentava como possível. Como no caso do lança-perfume - mas de modo muito mais complexo - a suave alegria de voltar à vida era estragada pela certeza de que a experiência recém-finda representaria uma ameaça para sempre. De fato, por mais de um mês eu me senti vivendo como que um palmo acima de tudo o que existe. E por mais de um ano certos resquícios específicos se mantiveram. Na verdade, algo de essencial mudou em mim a partir daquela noite.
Dos quatro baianos, a única que ainda não tinha atingido o estrelato - apesar do prestigio entre músicos e amantes da bossa nova - era Gal. Uma tarde, acompanhando-a a um ensaio para um programa importante da TV Record - oportunidade que vinha se mostrando difícil para ela -, deparamo-nos com um sumário cancelamento de sua escalação. Indignei-me com o desrespeito com que a trataram e submeti minha própria apresentação à dela. Os produtores presentes não me deram ouvidos e então mandei dizer a Paulinho Machado de Carvalho que ele metesse a televisão dele no cu. Saí e nunca mais cantei na Record, a não ser já nos anos 90, numa edição saudosista do talk show de Ronnie Von, o antigo Pequeno Príncipe dos anos 60, quando a emissora já não tinha nem importância nem audiência (embora a conversa com Ronnie Von tenha tido importância afetiva para mim).
Eu realmente odiei o cinismo do star sy stem exibido no episódio e apostei tudo na qualidade do canto de Gal, que tal cinismo ameaçava. Mas havia uma situação mal resolvida entre nós e a direção da emissora que servia de pano de fundo para a cena. Todos os grandes acontecimentos surgidos nos festivais se transformavam automaticamente num programa semanal em horário nobre. Fora assim com Elis, com Nara e Chico, com VanDré, com o próprio Gil pré-tropicalista. Os tropicalistas, no entanto, pareciam deixar os chefes sem saber o que fazer, embora todos nos corredores da Record falassem num programa a ser liderado por mim. Em algumas conversas com o próprio Paulinho Machado de Carvalho, eu notara a insegurança diante das idéias esboçadas. Eu e Gil queríamos levar o que insinuamos com "Alegria, alegria" e Domingo no parque às últimas conseqüências. Um programa semanal de uma hora era muito poder demais para ir parar nas mãos de quem tinha planos assim tão audaciosos. Tanto Paulinho quanto os principais produtores da emissora nos tratavam com carinho e pareciam sinceramente nos querer bem. Isso não significava que quisessem pôr-se em risco por nossa causa. Com a minha súbita saída da Record - que Guilherme, pegado de surpresa, acolheu com uma corajosa receptividade, inimaginável em qualquer outro empresário -, Gil também decidiu desligar-se e logo tínhamos um convite da TV Tupi para realizarmos ali o nosso programa.
Guilherme tinha como fórmula máxima de elogio a expressão "divino, maravilhoso!", não raro complementada com um "internacional!" se o entusiasmo o exigisse. Essa marca de frivolidade era tomada meramente como tal por todos no nosso meio. Resolvi usá-la - também a título de homenagem aos aspectos grandiosos da personalidade de Guilherme - como mote para a canção que Gil e eu estávamos preparando para Gal cantar no próximo festival da Record (os participantes do festival não precisavam ser contratados da emissora: Gal cantaria nossa composição e, mesmo que fizesse sucesso, não assinaria com a Record e viria conosco para a Tupi). A canção trazia sugestões do clima de rebeldia estudantil contra a ditadura e quase prefigurava, em suas imagens violentas, a luta armada. A melodia era, deliberadamente, o pop mais doce e pegadiço. Mas as palavras chamavam uma "menina" ("quantos anos você tem?") para participar de algo não dito mas que requeria a "atenção para as janelas no alto/ Atenção, ao pisar o asfalto, o mangue/ Atenção para o sangue sobre o chão", tudo convergindo para o refrão (que se anunciava explicitamente: "Atenção, tudo é perigoso/ Tudo é divino, maravilhoso/ Atenção para o refrão"): "É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte". Gal deu-lhe uma interpretação vibrante que marcou a virada de seu estilo, incluindo um repertório de sons vocais inédito entre nós, do qual não estavam ausentes nem os grunhidos de Janis Joplin nem os guinchos de James Brown. Divino, maravilhoso também foi o nome que escolhemos para o programa que estrearíamos na TV Tupi. Essa emissora - a mais antiga do Brasil - não era tão vista quanto a Record, e sobretudo não tinha tradição de trabalhar com música.
Os programas eram idealizados por mim e dirigidos por Fernando Faro, um pioneiro da TV "de vanguarda" entre nós, mais Antônio Abujamra e Cassiano Gabus Mendes - ambos grandes nomes do teatro e da televisão brasileiros. Teríamos como participantes fixos do programa Os Mutantes, Gal e Tom Zé, além de Gil e eu.
Tivemos como convidados Jorge Bem, Juca Chaves (um cançonetista satírico que surgiu durante a bossa nova e, embora inicialmente confundido com ela, era o antibossanovista por excelência) e Paulinho da Viola (que tampouco se identificava com a bossa nova). Eu participava das reuniões de criação na TV Tupi - e dos ensaios e dos próprios programas - com o coração gelado: estava consciente do valor de cada ideia, de cada decisão, mas não as vivenciava eu mesmo afetivamente: o auasca tinha me feito passar a viver numa espécie de universo paralelo em que eu mantinha os meus velhos interesses, tinha as mesmas reações de antes, a mesma inspiração, o mesmo tesão, a mesma insônia, mas estava fora disso tudo. Via-me viver, mas, intimamente, não cria. Sabia que a vida não é real - e que não existe nada para se pôr em seu lugar. Paradoxalmente, sentia-me bastante triste com isso. Uma tristeza serena e estável que não servia para aquecer a existência. Por vezes revoltava-me - mas mantendo a mesma frieza - contra o auasca e suas visões ("mirações", como as chamam os que hoje o tomam ritual e regularmente). Arrependia -me de ter bebido a droga. Às vezes meditava – sem entusiasmo - sobre o sentido religioso da experiência. Lembrava-me das piadas teológicas de Rogério ("Eu não creio em Deus, mas eu vi!", ou, "É óbvio que Deus não existe, mas a inexistência de Deus é apenas um dos aspectos de sua existência"). Sobretudo considerava a ironia de eu mesmo ter inventado o brado "Deus está solto!" para acompanhar (junto com o poema místico-sebastianista de Pessoa) a apresentação de "É proibido proibir". Todas essas observações surgiam indiferentemente em minha cabeça. Mas, com o passar do tempo, comecei a indagar com mais empenho sobre o que se passara. A medida que eu me tornava de novo capaz de integrar-me mais verdadeiramente à vida, opunha o valor místico do que experimentara - e o valor do misticismo em geral - ao apego genuíno à realidade, tal como se apresenta sob a forma de fé na constância das leis da matéria. O curioso é que esse apego à materialidade e à vida é que revalorizava tanto o transe místico quanto sua negação: quanto mais longe eu me sentia do mundo, mais longe eu me sentia do céu. Inversamente, quanto mais cremos na realidade da vida, mais nos convencemos de que há algo que podemos pôr-lhe no lugar. Assim, enquanto as "mirações" eram vividas como deslumbrantes e benfazejas, o mundo cotidiano, embora relegado a um plano inferior de realidade, era amado e protegido com naturalidade. Ao passo que, ao desfazer - se a capacidade de querer e de entender, perdiam-se os dois mundos.
Isso só confirma meu apego à realidade material. Eu tinha tomado um alucinógeno que me dera visões tramadas pelo meu próprio cérebro de modo a se imporem como mais reais do que o mundo. Esse mesmo alucinógeno quase me fizera perder para sempre a razão. Um acidente que me tivesse lesado o sistema nervoso central poderia ter produzido ambas as coisas. Como já disse, a principio eu relembrava as visões e as sensações provocadas pelo auasca com asco e horror. Só à medida que fui me readaptando ao senso comum é que pude readquirir algum interesse e carinho pelo mundo maravilhoso que se engendrara em mim. No entanto, não me sentia tranquilamente reinstalado na vida. As ilustrações indianas, que me eram até então quase desconhecidas (a capa do LP Axis, bold as love, de Hendrix, era o que eu vira de mais parecido a minhas visões até tê-las), começaram a ficar de moda com a difusão do movimento Hare Krishna. As descrições (e reproduções) de mandalas (rosáceas de catedrais, cenas de filmes de Esther Williams dirigidas por Busby Berkeley) encontradas num livro de Jung (e as constantes referências a elas nas conversas de Roberto Pinho) me eram familiares, mas passaram a produzir um efeito de repulsa íntima. Até mais de um ano depois, já no exílio londrino, eu não podia olhar por muito tempo uma dessas gravuras de Krishna sem me sentir como que hipnotizado e à beira de reengendrar as alucinações. O fato de minha mãe parecer-se com uma indiana era - e é - levado em consideração. (Rodrigo, meu irmão mais velho, costumava dizer, quando éramos crianças, que o ator Sabu era a cara de minha mãe.) Na verdade, verifiquei em Londres que muitos homens indianos mais velhos se pareciam com meu pai (que era obviamente um mulato). Eu próprio fui muitas vezes confundido com um paquistanês (o que me fazia temer os skinheads). Mas ouvi pelo menos um relato de experiência com auasca em que o sujeito, um brasileiro branco (ou pelo menos muito mais passível de ser qualificado como tal do que eu), viu multiplicarem-se durante horas diante de si chineses, homens e mulheres chineses que formavam, com seus chapéus tipicamente chineses, as mais variadas composições decorativas. Não me pareceu que ele tivesse atribuído a essas visões o valor afetivo e religioso que atribui às minhas. Mas a semelhança entre as duas experiências (e a inexistência de fatos que o desmintam) me leva a crer que uma exacerbação da capacidade lúdica de criar padrões decorativos pode ser desencadeada por uma droga como aquela. E que a produção dessas imagens pode ou não estar acompanhada de uma exaltação do dom de amar, entender e julgar. Além disso, ninguém sabe o repertório de formas, estruturas, temas e operações que portamos no cérebro. Eu tinha lido nas memórias de Simone de Beauvoir que Sartre passara um ano assombrado por lagostas e caranguejos gigantes que lhe tinham ficado como resíduo de sua viagem com mescalina. Esses crustáceos não tinham tido para ele o menor valor simbólico: não eram uma visão do Mal. No entanto, eles o enchiam de angústia. Sobretudo porque representavam para ele a perda da razão.
Mick Jagger é citado como tendo dito que só tem bad trip quem não gosta de si mesmo. Quando, pouco tempo depois de eu tomar auasca, ficou de moda as pessoas tomarem ácido lisérgico, havia de tudo: pessoas que tinham dezenas de viagens boas e, de repente, uma ruim; pessoas que só as tinham más, mas ainda assim não desistiam de seguir tomando; pessoas que nada sentiam; pessoas que, sempre tendo viagens ótimas, um belo dia enlouqueciam sob o efeito da droga sem a principio parecerem sofrer (todas estas últimas sofreram muito, depois; a maioria fez um grande esforço - em geral consideravelmente bem-sucedido de recuperação).
Ter gritado na TV "Deus está solto" ao cantar "E proibido proibir", foi um gesto inspirado pela constatação de que a religiosidade estava sendo tão reprimida quanto o sexo. Eu próprio tive educação católica em casa. Frequentei sempre escolas públicas (as escolas religiosas eram todas pagas), mas o diretor do Ginásio Teodoro Sampaio era o padre Antenor. O fiscal do mesmo estabelecimento era o padre Fenelon. E o diretor do Departamento de Filosofia da Universidade da Bahia era o padre Pinheiro. Além de termos todos a obrigação de ir à missa todos os domingos, exigia-se que rezássemos antes de dormir, e que nos benzêssemos antes de entrar no mar, num trem, num avião.
Quando fiz a primeira comunhão, fui muito cheio de medo receber a hóstia. Tinham me dito que Deus entraria em meu corpo, que uma grande paz me inundaria a alma, que eu seria envolvido numa luz puríssima. Eu me perguntava como seriam essas sensações. Apesar de essas coisas me serem ditas em tom calmo e amável, eu sentia um medo que só não era pânico porque eu vagamente adivinhava, pela observação das pessoas que comungavam (e de todos os meus irmãos mais velhos que já tinham feito a primeira comunhão), a falácia dessas promessas ou ameaças. Não me considerei cem por cento sincero na confissão.
Tremi antes de comungar e senti -me decepcionado e aliviado ao perceber que nada me acontecera. Por que eu tinha tanto medo de Deus? Não sei. Não é tão frequente que não se o tenha. O fato é que rompi intelectualmente com a religião cedo demais e sem superar esse medo.
A missa dos domingos, embora por vezes sua obrigatoriedade me impacientasse, não era nem desinteressante nem desagradável. A liturgia católica é bela e exuberante (era-o ainda mais quando não se usava microfone, o padre ficava de costas para nós e falava em latim). Guardei do quarto do santo e das missas na Igreja da Purificação um gosto pelo ritual. Por outro lado, o candomblé estava sempre presente. Não apenas ouvíamos falar coisas como "meu santo não vai com o dele" ou "eu tenho santo forte"; ou sabíamos os nomes de Iemanjá e Xangô, Oxum e Oxóssi (das canções de Cay mmi, mas também das conversas de amigos e parentes); como também íamos às festas anuais de Sultão das Matas, em casa de Edite, irmã biológica de Nicinha, minha irmã de criação. Lembro a primeira vez que vi Edite possuída. Eu, ainda pequeno, não tinha autorização de permanecer na festa até o fim. Alguma coisa acontecia depois do samba-deroda que não me era permitido ver. Não sei à displicência de quem se deve o fato de, numa dessas festas, eu, ao sair pelo corredor para voltar para casa, deparar-me com Edite vestida de índio, de olhos fechados, sendo quase arrastada por duas outras mulheres de olhos abertos. Era ela, sem dúvida, mas seu rosto tinha uma expressão que eu nunca lhe tinha visto antes: o lábio inferior avançado, o vinco entre as sobrancelhas fundíssimo, as narinas enormes. Parecia um homem zangado. O que eu mais me perguntava era: "O que será que Edite está sentindo?; se a pessoa é ela e não é ela, se está acordada e não está acordada, então o que sente?". Tive medo. Tive medo por estar diante do inexplicável e tive medo por imaginar-me na situação. Esse medo nunca me deixou de todo. Ele desempenhou parte relevante na ansiedade pré-primeira comunhão. E durante o porre de lança-perfume, o barato da maconha e a viagem de auasca.
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