quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O TEMPO É O SENHOR DA RAZÃO

Em seu primeiro projeto fonográfico, Vivi Rocha sincretiza experiências vividas, temas atuais e ambíguos sentimentos tão inerentes a condução humana  

Por Bruno Negromonte


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Nietzsche acreditava na teoria de que aqueles que se identificam completamente com sua época são os que primeiros fracassam e que, como o próprio tempo, passam e são aniquilados. Sou adepto do conceito de que na arte tal afirmativa faz-se também válida e  desse modo acaba sendo passiva de aceitação a necessidade de atribuir àquilo que é feito em forma de arte algumas características que podem corroborar para torná-la atemporal. Quantos fenômenos midiáticos hoje amargam o limbo do esquecimento? O contrário também acontece. Não por benesse dos grandes canais de comunicação, mas por uma série de características que acabam por eternizar. A resposta talvez seja resultado da soma de fatores que levam a esse tipo de contexto, e dentre esses qualificativos há quem defenda a ideia de que um dos mais notórios pressupostos que caracterizam uma obra de arte (seja ela em que campo for)  é o fato dela sempre buscar possibilitar uma próxima e renovada experiência, uma espécie de recomeço que posteriormente gerará outro, e mais outros e assim suscetivamente de modo interminável. Claro que esse tipo de experiência não pode ser dissociada do tempo e, talvez uma década já possa já possa ser suficiente para evidenciar toda essa teoria como pode-se ver a partir do trabalho da artista aqui em questão. Para além da filosofia teórica eis que existe o sentimento, a emoção e outros atributos que acabam por tornar qualquer vã teoria palavras ao vento como podemos perceber ao longo da audição de "Entreatos", um disco maturado por uma década e que chega para elencar dentro da música popular brasileira contemporânea o nome de Vivi Rocha, artista que, sem pressa, eterniza agora a sua plenitude a partir de uma boa obra que tem a capacidade de nos dizer algo sobre o espírito de seu tempo, e Vivi Rocha  para apresentar tal característica em letra e melodia a partir desse seu debute fonográfico. 



Cantora, compositora e instrumentista, Vivi Rocha traz consigo a consciência do tempo atemporal da arte. E maturá-la de modo solitário ao longo de uma década resultou neste seu primeiro trabalho solo autoral intitulado de "Entreatos". Formada em canto erudito pelo Instituto de Artes da UNESP e piano popular, Vivi traz em sua bagagem cerca de 10 anos na cena lírica paulistana, a artista decidiu reunir suas influências ecléticas e a vontade de discutir temas contemporâneos o que acabou por gerar um projeto composto por onze faixas totalmente autorais, tem início com "Aquilo que me falta", canção que nos remete aos ares portenhos através do notório ritmo imbuído de sentimentalismo e sensualidade que é o tango. Em um tom de romantismo "Num mesmo espaço" segue a linha jazzy e dentro das variáveis rítmicas o disco conta com a valseada On danse” canção de alterna português e inglês. Dando continuidade o disco apresenta faixas como  Aquilo que me falta”, Transpondo barreiras”, Mais amore a “Monólogos coletivos”, que cita “Não existe amor em SP”, do rapper CrioloO disco ainda com "Amor em baldeação", uma faixa que traz como temática principal desencontros e que ganhou um vídeo clipe. sob o roteiro de Rafael Frazão e Michele Carolina e que conta com as participações dos atores Karen Ka, Laura Sobenes, Jimmy Wong, Cléia Plácido e Pedro Galiza.



Vivi Rocha - Foto Karen Montija (18)"Entreatos" é uma síntese madura e bem feita das fontes a qual a cantora, instrumentista e compositora bebeu. O disco é o resultado de todo processo de maturação a qual a artista vem somando ao longo da última década dentro de todas as façanhas que conseguiu somar seja como participante do Coro Lírico do Theatro Municipal de São Paulo, seja como instrumentista, autora e arranjadora. "Entreatos" não apenas reafirma o talento da artista, mas oportuniza a vazão de um talento represado por anos a fio e que agora atende aos anseios daqueles sedentos por música de qualidade como pode-se afirmar ao ouvir o álbum. Na tessitura sonora do álbum estão, além da voz e piano de Vivi Rocha, nomes como Gilberto Assis (atuando no baixo e na produção do álbum), Luciana Silva (executando o clarinete),  Rodolfo Coutinho (bandolim), Luiz Sena (violoncelo) e Priscila Brigante (na bateria). O disco ainda conta com as participações de Ale Damasceno (também executando bateria), Matthew Taylor (fagote), Milena Salvatti (violoncelo) e Vicente Falek (acordeom)

Se "O tempo é a grande estrela modelando o artista ao seu feitio" como bem definiu Chico Buarque na canção "O tempo e o artista" não se pode afirmar, mas há de se levar em consideração (de modo até veemente) que, sem sombra de dúvidas, os anos acumulados como experiência artística de Vivi Rocha trouxeram-lhe um plus a mais ao já descomedido talento nato e que hoje evidencia de modo perene em "Entreatos". Vivi Rocha mostra-se como mais uma representante em tempos onde a visibilidade autoral da mulher dentro da música brasileira vem ganhando cada vez mais espaços. Seu lado instrumentista e autoral  reitera  a importância do gênero neste contexto que até pouco tempo atrás era, com algumas raras exceções, perceptivelmente masculino. Sua singular e abrangente sonoridade e poesia a elevam a um patamar de destaque dentro da conjuntura musical atualmente existente. Visceral, a sua poesia transcende o lugar-comum e as peculiaridades presentes nas relações humanas e interpessoais, levando-nos a crença de que música não é apenas, digamos, uma modalidade de poesia, mas sim a própria de modo cantada. Como bem sintetizou a própria artista, o álbum vem a ser um retrato de um processo intenso”. Um retrato pessoal que acaba por desnudar uma artista prenha de um talento que não merecia mais ser represado de modo algum. Sorte nossa, seus contemporâneos, que hoje temos a oportunidade de usufruir de toda essa plenitude artística que resultou em um álbum sem firulas, um disco que apesar de toda abrangência de ritmos faz-se coeso do início ao fim. Um disco que foge dos clichês mercadológicos que tomam conta dos grandes meios de comunicação existentes e talvez por isso (torço que não) acabe por tornar-se não pérolas ao porcos, mas pérolas aos poucos ouvidos que atentem para tamanha qualidade. 

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