terça-feira, 11 de setembro de 2018

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Barulho feio

Os versos "Por seres tão inventivo / E pareceres contínuo", de Caetano Veloso soam para mim como síntese da audição do disco Barulho feio(2014), de Rômulo Fróes. Mas penso também no conto “Ideais do canário”, de Machado de Assis. Primeiro porque a certa altura Rômulo faz uma referência direta a uma "gaiola de ouro, canário sem choro (...) Vida sem gosto, não te quero mais / Mas os animais, lambem meu rosto". Segundo porque nesse conto temos tanto o discurso do narrador, que só aparece diretamente em contato com o leitor no primeiro parágrafo, já que ele empresta a voz da narrativa, numa consciente falsa tentativa de capturar o real, ao seu protagonista; quanto a narrativa em si, o relato de Macedo a cerca dos acontecimentos que lhe fizeram se tornar “todo canário”. Algo muito próximo do gesto do sujeito-flaneur criado por Rômulo.
Os dois planos se entrecruzam para a textura do texto. Assim também acontece nas canções desse disco. O fio narrativo da "vida real" - o som direto capturado nas ruas de São Paulo - é significado qual colar de pérolas que as canções são. A "vida real" permite a Rômulo a criação de uma narrativa complexa, fragmentada, mas melódica, tanto pela entrada e saída de foco das vozes das ruas, quanto pelo encadeamento das canções-adornos.
A semelhança com o discurso do canário de Machado é pertinente, ou seja, a arte e os acontecimentos cotidianos surgem como uma perspectivação da realidade. O canário lembra à personagem Macedo, e ao leitor, que o mundo é uma criação do homem, assim como os sujeitos das canções lembram ao ouvinte que os acontecimentos são invenções, ficções. “Fora daí (da loja do belchior, da canção, da ficção), tudo é ilusão e mentira”, escreveria Machado. "Mente pra mim, mas não mente pra mim / Me diz a verdade, fica à vontade", canta Rômulo. Cantando, o cancionista rearranja o real.
Ao longo de “Ideias de canário” o narrador cria a ilusão de que quem está narrando é Macedo: “disse ele”, pontua no segundo parágrafo. Porém, o conto é, de fato um “resumo da narração” de Macedo, como está destacado já no primeiro parágrafo. Ora, não é outro o gesto de Rômulo Fróes ao sugerir que quem está cantando é a rua e suas personagens "anônimas". O sujeito-flaneur criado por Rômulo é metonímia do próprio ouvinte contemporâneo de canção, que tem suas audições em aparelhos móveis interferidas pelos diversos sons da cidade ao redor.
O sujeito-flaneur ouve as ruas porque sabe que o acaso mostra novas trilhas. E a rua, por sua vez, participa das canções reivindicando para si a origem da palavra cantada. Desse plano, os referentes devem ser buscados dentro da própria textura do disco. Destaco aqui a canção que dá nome ao trabalho: "Barulho feio", de Rômulo Fróes e Nuno Ramos.
A canção demora a entrar, está engasgada, há um "barulho feio" interferindo. Um ruído que parece ser o som de um microfone roçando um tecido. Entra o violão e em seguida a voz. Montando a base cancional. Mas aos poucos entram em cena também outros sons: o baixo acústico de Marcelo Cabral e a guitarra de Guilherme Held. E o barulho não desaparece por completo, apenas está fora do foco, ou foi incorporado, ou tornou-se naturalizado dentro da canção.
Esse jogo de protagonismo e coadjuvância entre a canção assobiável e o barulho atravessa o disco. É o motor da obra. Sons que se acumulam e se dispersam, como as vozes de uma metrópole. Essas vozes ocupam os espaços deixados pela ausência da voz do cantor. E vice versa. “Mas atenção, escuta o rádio / Minha canção vai acender teu silêncio como um raio”, diz o sujeito de "Como um raio", outra canção de Romulo Fróes e Nuno Ramos presente no disco. Desse modo, podemos dizer que não há diferenciação nítida das instâncias rua e canção. Uma está e é na outra.
Essa busca de beleza, ou de harmonia na dissonância é o estímulo dos sujeitos cancionais. Ao final, a canção devolve o protagonismo às ruas. Ouvimos o que parece ser uma manifestação, restos de um depoimento exaltado - "Eu já tô de saco cheio" - como a referendar e ratificar aquilo que o sujeito da canção acabou de dizer: "Ninguém cantará, ninguém vai chorar / Por mim". Antes disso, o sujeito canta apontando de onde vem a canção: "Taí meu gogó, é só pra você / Me pega aqui dentro, você vem no vento / Não quero você, invento você / Tô cheia de ódio, quebrei o agogô / Criei a serpente, furei o meu bumbo / Porém lá no fundo, ouvi de repente / Toda essa gente".
Ouvir gente é exercício de quem canta. Para capturar nos modos da palavra falada os elementos de formação e invenção da palavra cantada. O som das ruas também é manipulado a serviço do estético. "Quero você, invento você", canta o sujeito. Artista inventivo, Rômulo Fróes trabalha forçando os limites da canção. Seu trabalho como cancionista vai se caracterizando pela diversidade de técnicas e procedimentos. Mas é sobretudo nas combinações intrigantes e acumulativas de materiais sonoros que reside a ética de sua obra.Canário e urubu.
Barulho feio é um disco que equilibra invenção e tradição, afirmando, como fez Gal Costa ao cantar que "o autotune não basta pra fazer o canto andar pelos caminhos que levam à grande beleza", que "barulho feio tem gente no meio". O resultado parece sempre ser um ensaio geral do gesto em direção à potência-ó.


***

Barulho feio
(Romulo Fróes / Nuno Ramos)

Barulho feio, tem gente no meio
De ponta cabeça, a minha cabeça
Bicho sem dono, sofro sem sono
Cadê todo mundo? Será que no fundo?
Gaiola de ouro, canário sem choro
Dentro do quarto, pássaro preto
Vida sem gosto, não te quero mais 
Mas os animais, lambem meu rosto
Mente pra mim, mas não mente pra mim
Me diz a verdade, fica à vontade 
Pele de cobra, coxa de atriz
Fui infeliz, sou eu quem te diz
Ninguém cantará, ninguém sofrerá
Ninguém pintará, nem publicará
Ninguém filmará, ressuscitará
Ninguém sambará, ninguém lembrará
De mim
Láialáialáialáia...

Tomo o metrô, tô no shopping sem dó
Taí meu gogó, é só pra você
Me pega aqui dentro, você vem no vento
Não quero você, invento você
Tô cheia de ódio, quebrei o agogô
Criei a serpente, furei o meu bumbo
Porém lá no fundo, ouvi de repente
Toda essa gente, laialalaiá
Um cara de sorte, quem é que me morde
Pessoa esquisita, frase esquisita
Amor sem futuro, por isso ele é puro
Tô dentro dum corpo, procuro outro corpo
Meu corpo é jardim, um sol só pra mim
Na veia da noite, no umbigo da noite
Carícia total, um cara legal
Ninguém cantará, ninguém vai chorar
Por mim
Láialáialáialáia...


* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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