Por Ricardo Moreira
O que já se notava na carreira de Paulinho da Viola ao alvorecer do primeiro ano década de 1970, é que apesar de seu jeito tímido e introspectivo, numa relação inversa, sua música conquistava abertamente representantes da escola veterana do canto popular como Elizeth Cardoso, da ala tradicional do samba vinculado às escolas e da nova geração de cantautores e intérpretes da MPB que viam nele uma fonte fresca de canções suscetíveis a qualquer acabamento artístico.
Apesar de tudo isso, Paulinho seguia inventando, como bom marceneiro amador, novos contornos para sua mobília musical feita de memórias e criações que serviriam no ano seguinte de fundo para mais uma dança aparentemente solitária para a qual, novamente, o mundo inteiro estaria convidado.
Felizmente, a viola de Paulinho não foi e nem nunca iria para o baú como a abertura de “A dança da Solidão” - um disco memorável de um artista pronto - anunciava. “Guardei minha viola”, um sucesso absoluto a partir de seu lançamento nas rádios, desfia sua queixa de amor malsucedido com a marcação rítmica do próprio violão “ameaçado” pelo samba. Ao mesmo tempo em que a letra credita a sofrida lembrança da mulher amada ao pobre do pinho de Paulinho, o arranjo deposita justamente nele a responsabilidade da levada vibrante do sucesso numa deliciosa “contradição” litero-musical.
Na segunda faixa do disco o artista resgata o antológico sambista Wilson Batista que assina com José Batista “Meu mundo é hoje (eu sou assim)”. O samba cheio de filosofia abrasileira a máxima budista que recomenda a libertação do sofrimento dual remorso/ansiedade causado pela estagnação da mente entre o passado e o futuro. É justamente no tempo presente que a obra ressurge ciclicamente como fez Teresa Cristina, por exemplo, em 2002 no seu tributo à obra de Paulinho da Viola. O disco da cantora filiada à geração de novos sambistas da Lapa, abre justamente com essa faixa emblemática que apesar de não ser de autoria do compositor homenageado, resume a filosofia de vida de Paulinho que o faria declarar: “eu não vivo no passado, o passado é que vive em mim”. O insight genial foi sacado pelo artista no documentário “Paulinho da Viola – Meu tempo é hoje” produzido em 2003, roteirizado pelo jornalista Zuenir Ventura e dirigido por Izabel Jaguaribe. O filme desvenda a relação do artista com o tempo e como atuam a nostalgia, saudade, passado, presente, futuro em seu universo particular.
Do morro da Mangueira, Paulinho desce com “Papelão” de Geraldo das Neves - um samba muito afeito à maneira mansa de Paulinho interpretar que segue embalado por solos intermitentes de trombone sob o chão seguro de um cavaquinho e da cozinha percussiva caracteristicamente portelense. Ainda da fonte verde e rosa aparece um dos ídolos do artista: Nelson Cavaquinho. Este, acompanhado de seu parceiro Ari Monteiro, faz o artista subir novamente o morro carregado da tristeza característica da poesia de Nelson. “Duas horas da manhã” é um samba em tom menor amarguradamente belo e deserto como a madrugada. Nesse ambiente, a solidão do violão e da leve percussão encontra companhia na cama de cordas melancólicas escritas pelo Maestro Lindolfo Gaya num arranjo soberbo.
Por “Ironia” do próprio Paulinho da Viola, já se tem um vislumbre do nível das composições do artista no álbum. Depois da faixa de abertura, esta é a segunda de sua própria autoria entre as seis que Paulinho selecionou para “A dança da Solidão”. Oito anos mais tarde, ela seria pinçada por Cristina Buarque de Hollanda para seu LP “Vejo Amanhecer”. Famosa pela sabedoria nas escolhas e pelo conhecimento profundo do repertório de samba, a irmã de Chico sempre soube onde estavam escondidas as pérolas do gênero e muitos anos mais tarde seria ela própria redescoberta por Paulinho para fazer parte fixa de sua banda nos vocais junto com sua filha Beatriz Faria. Já Bia, como é chamada pelo pai, depois da participação vocal na montagem do projeto Acústico MTV de 2007, acabou sendo selecionada para viver a figura principal no musical “Divina Elizeth” – representando uma das primeiras e mais importantes vozes a interpretar a obra de seu próprio pai.
Aqui o disco faz uma pausa descontraída porque chegou a hora de comer o famoso feijão da Tia Vicentina com o partido-alto “No pagode do Vavá” rolando de fundo. Um velho amigo não creditado no álbum divide o prato e a faixa com Paulinho: Élton Medeiros. Mas o parceiro não mete a colher na autoria que é creditada somente ao dono do disco. A música foi um grande sucesso de rádio e ajudou a popularizar o Partido-alto que é uma categoria de samba que usa um refrão fixo com versos intermediários ditos de improviso em desafio a outros participantes numa roda de samba. Outro favor foi o de explicar o termo “pagode”, hoje erroneamente creditado a um estilo de samba miscigenado, popular e menos refinado, mas que na verdade designa originalmente apenas o evento onde se toca, bebe, batuca e canta samba. Mas o melhor de todos os serviços prestados pela faixa é mesmo provar que é possível proporcionar alegria e diversão através da música sem abrir mão da qualidade.
A próxima faixa inspirou o nome do disco: “Dança da solidão”. Uma obra-prima que vem sendo atualizada a cada década por intérpretes que primam pela genialidade em escolher bem o seu repertório. A primeira foi a diva Beth Carvalho, em 1981, no álbum “Na Fonte” e Marisa Montefez em seu “Verde anil Amarelo Cor-de-rosa e Carvão”, de 1994 - um releitura praticamente definitiva com o vocalises geniais de Gilberto Gil. Dois anos depois a mesma Marisa lança nova versão da canção na porção ao vivo de seu “Barulhinho Bom”.
“Acontece” do Mestre Cartola é um “colírio” para os ouvidos. Paulinho, exuberante, interpreta a canção romântica ousando enveredar-se pelo bolero e, como sempre, acerta. Gal Costa, atenta, regravaria dois anos depois a mesma canção no disco coletivo com Caetano e Gil, “Temporada de Verão”. Não obstante Paulinho ter sido o primeiro de seus contemporâneos a instigar a MPB a reconhecer em Cartola o grande compositor que ele de fato é, no mesmo ano ele divide com Clara Nunes esse mérito por ter a mineira gravado a parceria de Cartola com Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho em “Alvorada no Morro”. O coroamento desse trabalho entre intuitivo e panfletário de disseminação se daria, em 1979, com Elis Regina descolando inédita a música “Basta de clamares inocência”, um ano antes do falecimento de Cartola, para o disco “Elis, Essa Mulher”.
“Coração imprudente” é o choro mais gostoso de Paulinho da Viola. Metade afirmação e metade pergunta, as primeiras linhas da letra de Capinam indagam: “O que pode fazer um coração machucado senão cair no chorinho, bater devagarinho pra não ser notado?”. Um sucesso de execução nas rádios brasileiras que quebrava de certa forma o modelo de música palatável a essa mídia na época. Ao lado de “Orgulho”, um choro moderno e amorfo, é a segunda parceria com o poeta, agora pós-tropicalista, Capinam. O ambiente estético da gravação é outra ousadia somente permitida a um sambista, caso este se chamasse Paulinho da Viola.
Em “Falso moralista” Paulinho vai convocando, um a um, mestres da cozinha rítmica que arregimentam do grande Marçal e até o parceiro Élton Medeiros com sua notável caixinha de fósforos para interpretar um samba de Nelson Sargento. Seu ex-companheiro no grupo A Voz do Morro, desafia a hipocrisia da sociedade num discurso a um tempo só elegante e ácido mostrando como se compra uma briga sem amarrotar o terno. Mais uma pincelada da aquarela azul, branca, verde e rosa.
Para abençoar a despedida de um disco que teve o mérito de a um tempo só, doce e veementemente, desafiar o preconceito que ainda obrigava o samba a entrar pela porta dos fundos no clube fechado da MPB, Paulinho da Viola desce o pano azul da Portela sobre o álbum com “Passado de glória”. Um samba-exaltação composto pelo Mestre Monarco para a escola do artista reverenciada desde seu batismo apadrinhado pelo primo Oscar Bigode. Mais uma reverência a uma das forças motrizes da cristalização de seu talento, embora Paulinho já tivesse feito passar um rio levando milhões de corações brasileiros para o altar da águia azul e branca.
Em resumo, depois de 1972, Paulinho nunca mais dançou só.
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