segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Ana Maria tinha um jovem assistente, que adorava punk e rock pesado, skates e quadrinhos, e vivia falando maravilhas de novas bandas de Brasília, onde tinha muitos amigos. Mas não mostrava nada. Uma tarde, finalmente, Tom Leão apresentou, excitadíssimo, um cassete com quatro músicas de uma dessas bandas planaltinas. Quando José Emílio ouviu a voz poderosa de Renato Russo e a pegada da Legião Urbana em “Será” e “Geração Coca-Cola”, ficou louco. Além de um grande letrista, culto, irônico e agressivo, ninguém no rock brasileiro cantava tão bem, com tanta potência e afinação, com tanta fúria e personalidade como Renato. Telefonou imediatamente para o diretor artístico da EMI, Jorge Davidson, que estava em negociações com a banda, dando uma força na contratação e se oferecendo para produzir o primeiro disco. A Fluminense FM tocava a demo direto, os ouvintes não paravam de pedir.

“Somos os filhos da revolução somos burgueses sem religião nós somos o futuro da nação geração Coca-Cola...” Cantava Renato e as jovens plateias deliravam, se identificavam com aquela sensação de vazio e de impossibilidade, tinham alguém para dizer o que eles pensavam e sentiam. Muita gente imaginava que a nova geração musical, do Ultraje a Rigor e dos Titãs, de Lobão e da Legião, por ter vivido praticamente a vida inteira numa ditadura fechada para o mundo, sem acesso à cultura internacional e à História brasileira, sofrendo lavagem cerebral dos militares, seria desinformada e individualista, tão ignorante e alienada quanto a autocrítica furiosa de Renato em “Geração Coca-Cola”. Ao contrário, Lobão, a Legião, o Ultraje e os Titãs — além de dezenas de outras bandas que brotavam como cogumelos não mais no eixo Rio-São Paulo mas na Bahia, em Minas, no Rio Grande do Sul e em Pernambuco — mostravam visão crítica, informação, independência e vontade de mudança. Nada mais punk do que os últimos estertores da era Figueiredo. Além de talentosos, eles eram, quem diria, intensamente políticos. A geração Coca-Cola não estava perdida. O amanhã estava chegando. Não teríamos eleições diretas, mas o Colégio Eleitoral poderia eleger um presidente civil, conservador e confiável para os militares, com o apoio das oligarquias e dos partidos que debandavam da ditadura moribunda. Com a economia devastada, o Brasil estava quebrado. Depois de 20 anos teríamos um presidente civil e, finalmente, o nosso Woodstock. Ou quase. Produzido por Roberto Medina, foi anunciado para janeiro de 85 o megafestival Rock in Rio, numa imensa área em Jacarepa-guá, com um palco monumental, som e luz ingleses e espaço para meio milhão de espectadores. Viriam estrelas como o Queen, Rod Stewart, o já decadente Yes, as new-wavers Go-Go’s, a alemã Nina Hagen, misturando ópera e rock pesado, os mais lights James Taylor e George Benson, além de uma inesperada delegação de heavy metal, com o AC/DC, Scorpions, Iron Maiden, Whitesnake e o veterano Ozzy Osbourne, comedor de morcegos e patriarca do metal.

Eles se apresentariam junto com as maiores estrelas do pop brasileiro, como Rita Lee, a Blitz, Lulu Santos, Erasmo Carlos, Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Alceu Valença, Elba Ramalho, Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Baby Consuelo, Eduardo Dusek, os novos Paralamas do Sucesso, Kid Abelha e Barão Vermelho, e até Ivan Lins, absolutamente estranho no ninho roqueiro, escalado para dividir a noite jazzística com George Benson. Em Roma, fui chamado pela TV Globo, que transmitiria ao vivo o festival, para ser o apresentador e comentarista dos shows. Cheguei ao Brasil às vésperas do Natal e encontrei o país eufórico. Com a candidatura invencível da chapa Tancredo Neves-José Sarney, apoiada pelas mesmas forças políticas que estavam (sempre estiveram e continuariam) no poder. Na transmissão da noite de abertura, nervoso e ao vivo, tentei fazer graça na apresentação de Erasmo Carlos: “... e como dizia Jair de Taumaturgo, vamos tirar o tapete da sala porque hoje é dia de rock! Eraaaasmo Carlos!” Erasmo entrou em cena e o diretor Aloysio Legey me disse que Boni queria falar comigo no fone. Apesar do volume que vinha do palco, meu ouvido quase estourou quando ele gritou: “Jair de Taumaturgo é a puta que o pariu!!!”

Entendi a mensagem e passei a fazer apresentações mais sóbrias, procurando aprofundar os comentários musicais. Realmente Jair e sua cabeça branca eram de um tempo em que a maioria do público do Rock in Rio nem tinha nascido. Com 40 anos me senti velhíssimo, como um patético neojair animando a garotada enquanto o amanhã não chegava. Graças a Deus eu não apresentava o festival do palco, mas de uma pequena cabine no alto de uma torre, acima das cabines de som e luz, no meio da plateia, a pouco mais de 20 metros do palco. De lá assisti ao festival de um dos melhores lugares possíveis: ficávamos só eu, um câmera e um assistente. De lá vi Erasmo Carlos ser vaiado por uma platéia de mais de 100 mil metaleiros furiosos, guerreiros de uma nova tribo urbana que ninguém esperava nem conhecia, que ninguém sabia que existia e onde se escondia. Mas eles estavam ali para gritar e cantar junto com o Iron Maiden e o Whitesnake, e para vaiar e jogar latas de cerveja e copos de areia em tudo que não fosse metal. E pesado. E em inglês.

Para Erasmo, patriarca do rock brasileiro, que a vida inteira (como todos nós) sonhou com o nosso Woodstock (onde ele seria um Chuck Berry e um Little Richard ao mesmo tempo), a esperada noite foi só desapontamento e decepção. Vaiado agressivamente, Erasmo mal conseguiu apresentar seus rocks e muito menos suas baladas. E descobriu assustado que legiões de jovens dos subúrbios e das periferias das grandes cidades estavam desenvolvendo uma outra cultura urbana, de skates e tatuagens, de quadrinhos e agressividade, movida a bandas de heavy metal internacional. Eram os metaleiros — novo terror das mães brasileiras. A imprensa fez um escândalo com a nova ameaça. Os artistas reclamaram. Uma nova radicalidade, agressiva e intolerante como as platéias dos velhos festivais, foi a novidade do dia. O Rock in Rio abriu pegando fogo. Nas noites seguintes, do alto de minha cabine a visão era maravilhosa: um mar humano de 200 mil pessoas, sentadas em paz ouvindo música, tomando cerveja e torrando unzinho, cantando em coro junto com Freddy Mercury e o Queen todas as letras de seus grandes sucessos, em inglês. Com Rod Stewart a mesma coisa, só que ainda melhor: um show de altíssimo nível sob chuva torrencial, que Rod, como escocês legítimo, tirou de letra, chutando bolas de futebol para a platéia e pensando se toda aquela galera estava mesmo cantando em inglês ou se ele tinha tomado um a mais. Ou cheirado uma a menos.

Para os Paralamas do Sucesso, o Rock in Rio foi o trampolim da vitória e lançou “Óculos” para o sucesso nacional, cantada em coro pela colossal plateia, ao vivo em rede nacional. Herbert Vianna saiu do festival como um novo herói da garotada e no final ainda ganhou a mocinha, Paula Toller, do Kid Abelha. “Por que você não olha pra mim? me diz o que é que eu tenho de mal, por que você não olha pra mim? por trás dessas lentes tem um cara legal.” Ovacionado pela multidão, Herbert dedica o show a Lobão, Ultraje a Rigor, Titãs e Magazine (ausentes do Rock in Rio) e a todos os grupos que tornaram possível o rock brasileiro. E começa a cantar “Inútil” como um inesperado bis. O público explode de alegria, 200 mil vozes em fúria cantam os versos históricos. Totalmente rock and roll. Os Paralamas rapidamente vendem mais de 100 mil discos e fazem 120 shows em um ano de estrada. A banda é uma das grandes do Rock Brasil, mas, além de “Óculos”, os seus novos grandes sucessos no disco e no show são as românticas “Me liga”, “Mensagem de amor” e “Meu erro”. Além dos Paralamas, a Blitz, Lulu Santos e Barão Vermelho fizeram bons espetáculos, profissionais, cheios de hits. A Erasmo foi dada uma segunda chance, quando se apresentou na mesma noite que James Taylor — uma das mais tranqüilas e aplaudidas do festival.

Todo o rock brasileiro (ausente e presente) teve no Rock in Rio um divisor de águas, que marcou a sua entrada oficial no mercado musical de massa. O grande ausente foi Raul Seixas, cada vez mais recluso, mais magro e mais drogado, com a barba maior, que se recusou a participar de tal caretice. Mas a rainha estava lá, Rita Lee era uma das grandes atrações do Rock in Rio e esperava-se uma apresentação não menos que consagradora, tal a popularidade que desfrutava, tantos os hits que emplacava, um atrás do outro, com Roberto de Carvalho, desde “Lança perfume”: “Saúde”, “Banho de espuma”, “Chega mais”, “Nem luxo nem lixo”, “Luz dei fuego”, “Flagra”, “Baila comigo”, “Alô alô marciano” e muitas outras. Mas havia um problema e Rita esperava uma solução. Assim como Raul, ela estava vivendo uma vida totalmente rock and roll, na estrada com a banda, entre aeroportos e quartos de hotel, tocando para multidões e submergindo num mar de drogas, com a saúde bastante debilitada. Mas pouco antes do festival, Rita conheceu o paranormal Thomas Green Morton, que começava a fazer sucesso nos círculos esotéricos entortando metais com os olhos e transformando água em perfume. Rita estava fraca e apavorada, queria cancelar o show, não tinha força para nada. Mas Thomas prometeu que a energizaria antes da apresentação e tudo correria bem.

Durante uma hora Thomas energizou Rita no camarim. Ela entrou no palco linda e carismática como sempre e cantou confiante os primeiros versos de “Nem luxo, nem lixo”: “Como vai você? assim como eu uma pessoa comum um filho de Deus nessa canoa furada remando contra a maré...” Mas o que saiu da sua garganta foi um sopro, um fio de voz trêmulo, mas que ainda assim lhe custou grande esforço. Estava perdida: a energização não pegou, a mágica não funcionou, a banda tocava alto e forte, com grande ritmo, mas a voz não lhe saía da garganta. Foi quando, como se percebesse seu sofrimento, o povo começou a cantar com ela, por ela. E cantou do início ao fim todas as músicas, com força e alegria, enquanto Rita sofria para sussurrar um mínimo e se comovia com a imensa prova de amor que o público carioca lhe dava. Foi uma das artistas mais aplaudidas do festival e saiu do palco desfalecendo, totalmente desenergizada. Mas se sentindo mais amada do que nunca. A noite de 15 de janeiro era muito especial. Tancredo Neves tinha sido eleito de manhã pelo Colégio Eleitoral o nosso primeiro presidente civil depois de 20 anos de governos militares. O último show da noite seria do Yes e encerrei a transmissão anunciando a banda e me despedindo feliz: “Boa noite presidente Tancredo Neves, boa noite Nova República, boa noite Brasil!” Mais uma noite. Expediente encerrado, em vez de ficar na cabine assistindo a um show chato, convido Barata, o assistente, para descer comigo. Ele tem metade de um baseado, o trabalho está terminado, podemos relaxar no meio da galera, comemorando a liberdade e a democracia. A poucos metros da cabine de som acendemos a bagana e, mal começamos a fumar, uma mão segurou firme no meu pulso e outra exibiu uma carteira: Polícia Federal.” stava muito escuro, mas o suficiente para ver a carteira e seu portador: um garotão de camisa esporte, como qualquer um daqueles em volta. O seu companheiro era um senhor de meiaidade, de paletó, que só faltava ter a palavra “cana” escrita na testa. Confiscaram a bagana, pegaram a mim e ao Barata pelo braço e nos levaram: “Vocês estão presos. Vamos para a Entorpecentes”, disse o garotão, nos encaminhando para a saída da Cidade do Rock.

Quando passávamos próximo das salas de produção da TV Globo, estava mais claro e tive a esperança de que alguém me visse, que avisassem que eu estava sendo preso. Mas ninguém viu. Talvez os policiais me reconhecessem como o apresentador do festival na televisão e livrassem a minha cara. Eles reconheceram. Mas foi pior. Aí eu vi um brilho nos olhos claros do garotão, seu sorriso de deboche, sua felicidade em pescar um peixe gordo. “Estás fodido. Quando isto estourar nos jornais tu vai ser demitido por justa causa. Vai precisar de um bom advogado. Se quiser eu tenho um.” Começava a intimidação, anunciava-se a extorsão, como as centenas que aconteceram durante o festival, onde a polícia fez a festa. Mas, em vez de acertar logo minhas contas, um pouco por civismo, um pouco por orgulho e um pouco por estupidez, resolvi resistir: “Se quiser me levar preso, pode levar. Eu não vou pagar um tostão.” O cara ficou furioso. Me jogou no banco de trás do Opala preto e branco e entrou na frente com o velho. Barata foi colocado em outro carro e a última visão que tive dele foi sua expressão desesperada mostrando as mãos algemadas no vidro de trás do carro que partia. Durante todo o longo trajeto entre Jacarepaguá e meu apartamento no Posto Seis, onde eles me acompanhariam para que eu telefonasse a meu advogado, as ameaças e intimidações do garotão foram crescendo: era o “bad cop”. O velho fazia o papel do “good cop”, me aconselhando a ter juízo, a não criar problemas, a aceitar a oferta do advogado deles e resolver tudo.

“Quem é o seu advogado?”, o garotão perguntou. Eu disse. Ele ficou feliz: “Esse é muito conhecido. Deve ser dos mais caros.” No meio da madrugada saí do carro e entrei com os dois canas no meu prédio, sob o olhar assustado do porteiro. Eles tinham esperança que eu tivesse dinheiro vivo ou dólares em casa, mas eu não tinha. E felizmente não resolveram fazer nenhuma revista, que teria piorado muito as coisas. Telefonei para meu advogado, que não estava. Deixei recado na secretária eletrônica. Eles ficaram furiosos e eu me senti um pouco menos ameaçado. Afinal, pelo menos meu advogado sabia que eu estava sendo levado para a Entorpecentes, na Praça Mauá. Eu não tinha medo do escândalo, não me sentia um criminoso, não estava fazendo mal a ninguém, não me envergonhava de nada, estava disposto a enfrentar as consequências. E absolutamente certo de que meu advogado (se recebesse o meu recado) impediria que eu fosse preso. A quantidade era mínima, eu era primário, os juízes estavam liberando todos os indiciados em condições parecidas — porque sabiam que a polícia achacava. Também achava que nenhum jornal noticiaria minha prisão por uma besteira daquelas e que a TV Globo não me demitiria por justa causa simplesmente porque eu não era seu funcionário ou contratado, estava apenas fazendo um free lance. Mas temia a violência do garotão, que estava com ódio de mim, por estar lhe dando tanto trabalho, por ele não poder me espancar como a qualquer um de seus presos sem arriscar um escândalo, porque eu não me submetia a seu banditismo.

“Vou te jogar na cadeia com um monte de assassino e estuprador pra tu ver o que é bom. Até teu advogado chegar já te mataram”, ameaçava dirigindo pela Avenida Atlântica rumo ao Centro da cidade. Quando entramos na Delegacia de Entorpecentes, na Praça Mauá, apesar do sórdido ambiente policial, dos móveis de ferro e fórmica e da luz fria, me senti mais seguro. Estava tudo aceso, havia gente entrando e saindo das salas. Telefonei de novo para meu advogado, que atendeu no primeiro toque, respirei aliviado, expliquei tudo rapidamente e ele me tranquilizou: “Estou indo para aí.” Estou salvo, pensei. Mas o garotão continuou me ameaçando, queria resolver tudo rápido, botou o revólver na mesa com força, na minha frente. Mandou que eu levantasse e fosse com eles até a sala do escrivão para lavrar o flagrante. Confirmei ao escrivão que estava fumando e que a bagana era minha. Mas disse que queria registrar que tinha sido ameaçado, coagido e achacado pelos policiais e que estava sendo preso porque não quis pagar. Pensei que o cara fosse me bater. Foi quando chegou meu advogado, com longa militância em delegacias e tribunais, e imediatamente tomou providências: foi conversar com meus captores. Voltou poucos minutos depois. “Não vou pagar”, eu disse antes que ele dissesse alguma coisa. Com calma e até um certo tédio, ele explicou: “Você não vai ser preso, não vai ser jogado na cadeia, ninguém vai te bater, mas você vai ser processado. Nenhum juiz vai te condenar, mas vai ser uma aporrinhação danada, você vai ter que prestar depoimentos, vai a Juízo, vai gastar uma grana de custas e advogados, e isto pode complicar a sua vida se você quer voltar para Roma...” Suspirei e, quase chorando de raiva, perguntei: “Quanto eles querem?” Ele respondeu: “Dois mil dólares.” Exatamente o que eu estava ganhando da TV Globo para apresentar todas as noites do Rock in Rio.

Abaixei a cabeça, ele disse ao escrivão para rasgar o flagrante e foi acertar o pagamento do resgate. Quando meu advogado me deixou em casa, o dia estava começando a clarear em Copacabana. Agradeci efusivamente e comprei os jornais, com as primeiras páginas ocupadas pela eleição de Tancredo e celebrando a volta à democracia. Na varanda de meu apartamento, diante do mar azul de Copacabana brilhando ao sol, sentei-me na espreguiçadeira para ler os jornais históricos, que registravam o fim do autoritarismo e da repressão e a alvorada fulgurante da Nova República. Acendi um baseado, agradeci a Deus e pensei, quase rindo sozinho: “O amanhã é hoje...” No dia seguinte ao final do Rock in Rio, o governador Leonel Brizola mandou botar abaixo a Cidade do Rock. O maior e melhor palco ao ar livre que o Brasil já viu, dezenas de banheiros, camarins, cabines, lojas, enfermarias, centrais elétricas e telefônicas. Toda a infra-estrutura necessária para produzir grandes espetáculos com artistas brasileiros e internacionais para grandes multidões transformada em terreno baldio, perdido nos confins de Jacarepaguá. Com o sucesso do festival, que teve poucos incidentes sem gravidade e maciço apoio popular, seus produtores pediram a renovação da licença que tinha sido dada provisoriamente à Cidade do Rock para continuar produzindo shows. Brizola negou terminantemente, depois de ter feito o possível para dificultar a realização do festival, produzido por Roberto Medina, irmão do deputado Rubem Medina — inimigo político e ferrenho adversário de Brizola no Estado. Poucas vezes o Rio de Janeiro teve uma exposição internacional tão boa, nunca teve a chance de um espaço de espetáculos como aquele, mas na briga eleitoral provinciana a juventude carioca acabou sofrendo rude golpe em suas ilusões libertárias. E logo pela mão do sonhado governo socialista-moreno de Brizola e do professor Darcy Ribeiro, maciçamente votado pelo eleitorado jovem (e pelo mundo musical em peso) e levado ao poder triunfalmente em 1982.

Brizola detestava rock. Instrumento de dominação americana, canto da sereia do imperialismo para seduzir os jovens, desviá-los da construção do socialismo moreno. Cuidadosamente, assessores mais jovens tentaram ponderar com o governador que, apesar dos eventuais benefícios eleitorais para os Medina, seria muito bom para o Rio ter um espaço tão bom, que tinha sido amplamente aprovado pela população, seria um gesto popular e democrático. Destruir seria antipático, poderia parecer autoritário, antiquado, argumentou um assessor mais corajoso. E, aproveitando o bom humor do velho caudilho, arriscou, meio brincando: “O senhor precisa ser mais moderno, governador.” “E você quer o
quê? Que eu queime um fuminho?”, devolveu Brizola com seu sotaque gaúcho, para gargalhadas gerais. E ordenou a demolição da Cidade do Rock. Rock e fuminho eram queridos de Neuzinha, a filha do governador, que conheci no calor da campanha de Brizola, de bonezinho vermelho do PDT, toda gostosinha em seu biquíni vermelho, distribuindo panfletos e sorrisos e fazendo sucesso na Praia de Ipanema. Principalmente entre os pirados, friques e doidões, que achavam o máximo ter como “primeira-filha” do Estado alguém tão parecida com eles, tão alegre e anárquica como Neuzinha. Com cabelos curtos e cacheados, além de muito bonitinha, Neuzinha era viva e inteligente, provocativa e irreverente, tocava piano, fazia letras engraçadas e queria ser cantora de rock. Depois da eleição de Brizola ela se tornou uma rockstar em Ipanema, mesmo sem disco e sem show. Entrou para a turma.

Bebia, fumava e cheirava, ia ao Circo Voador e ao Noites Cariocas, no Baixo Leblon protagonizava cenas de tapas e beijos com Cazuza. Coisas do Rio de Janeiro. Mas quando a Cidade do Rock foi arrasada, o rock “Jorge Maravilha”, de Julinho da Adelaide, parecia ter sido feito para ser cantado — não para o general Geisel — mas para Brizola: “Você não gosta de mim mas sua filha gosta.” Com ou sem sua cidade, o rock brasileiro saiu do festival como grande vitorioso, tornou-se um fenômeno de mídia, invadiu as paradas de sucessos e programas populares de televisão, era a nova mina de ouro das gravadoras. Assim como a bossa nova tinha sido o som dos anos JK e a MPB dos anos 70, o rock era o som da Nova República. Apesar da oposição de Brizola, Neuzinha, assessorada por Paulo Coelho, lançou o
seu primeiro disco. E pior: pela Som Livre — das Organizações Globo, dos arquiinimigos do governador. O pau quebrou no palácio. O disco não vendeu, mas a debochada new wave “Mintchura”, em parceria com o gaúcho Joe Eutanásia, era um sucesso de rádio, todo mundo conhecia. E Neuzinha se divertia: no melhor espírito roqueiro, ela mesma se dizia uma “mintchura”. No Noites Cariocas, logo depois do Rock in Rio, pouca gente se animou a subir o morro para ver uma nova banda paulista lançando seu primeiro compacto. Mas todo mundo gostou: a música era muito boa e o som deles era ótimo, um vigoroso technopop com teclados e baixo pulsante, uma boa atitude roqueira. Mas o melhor de tudo era o crooner e baixista, um garoto lindo, moreno, de nariz fino e olhos escuros, um pop star instantâneo, tocando e cantando com uma voz rouca e sexy e enlouquecendo todos os sexos da pista, o ex-jornalista Paulo Ricardo  Medeiros e o RPM (Revoluções Por Minuto): “Na madrugada, na mesa do bar, louras geladas vêm me consolar qualquer mulher é sempre assim vocês são todas iguais nos enlouquecem então se esquecem? e já não querem mais.”

Assim que chegou às rádios, “Louras geladas” borbulhou e explodiu, foi um sucesso maciço e quase imediato, saiu das FMs para as AMs, ganhou o Brasil. Quando as meninas e meninos viram Paulo Ricardo e o RPM na televisão, o Rock Brasil ganhou o seu primeiro símbolo sexual: não há rock and roll sem eles. Pouco mais de um mês depois de sua primeira apresentação, o RPM voltou ao Noites Cariocas, que dessa vez superlotou, recebendo um dos maiores públicos de sua história, com filas imensas se estendendo pela Praia Vermelha desde cedo. Paulo Ricardo era um ídolo, um pop star, “Louras geladas” um sucesso nacional. O rock é rápido. A Legião Urbana não poderia ter escolhido um melhor (ou pior) momento para o lançamento de seu primeiro LP, esperadíssimo no mundo roqueiro carioca, onde eles se tornavam cada vez mais conhecidos por shows e pelas ondas da Fluminense FM. Como o disco saiu junto com o Rock in Rio, sumiu na poeira, e levou alguns meses para deslanchar. Mas depois do festival, com vento a favor, se beneficiou da abertura das rádios, da imprensa e do público para a nova onda. Ao contrário das outras novas bandas de rock, que gravaram
primeiro compactos e só depois, já conhecidas, lançaram seus Lps, Renato Russo exigiu da EMI gravar um álbum logo de cara. Ele não ambicionava estourar um hit, mas mostrar um estilo, uma visão crítica de sua geração. E isto só funcionaria com várias músicas e enfoques diferentes sobre sexo e política, trabalho e religião, amor e revolução.

O disco foi recebido com grande entusiasmo pela crítica carioca, mesmo a que (ou)via o Rock Brasil com grandes desconfianças: Renato aparecia como o grande letrista do movimento. Carismático e radical, misturando uma doce tristeza permanente com explosões de agressividade e humor corrosivo, Renato era a novidade, um grande talento poético que surpreendeu os que achavam que aquela geração não sabia escrever, nem pensar, nem fazer música. Alguns chegavam a identificar nele uma espécie de versão anos 80 de Chico Buarque. Outros encontravam grandes semelhanças entre o seu timbre vocal e o de um ídolo da jovem guarda, Jerry Adriani. Todos reconheciam nele um cantor de verdade, potente, afinado, com estilo, e não um simples “compositor que canta”. Ou um mero “cantor de rock”. “Geração Coca-Cola”, “Que país é este?”, “Será”, “Teorema”, “Soldados” e “Por enquanto”, uma atrás da outra, estouram nas rádios cariocas e em seguida em todo o Brasil. No Noites Cariocas, a Legião Urbana faz shows consagradores, recebendo o amor feroz das jovens multidões de fãs ardorosos. “Será só imaginação? será que nada vai acontecer? será que é tudo isso em vão? será que vamos conseguir vencer?” Depois do Rock in Rio, meus planos eram retornar o mais rápido a Roma, mas fui seduzido por uma proposta de Daniel Filho, diretor artístico da TV Globo, para que me juntasse com Euclydes Marinho e Antônio Calmon, amigos queridos, para escrevermos um seriado jovem para televisão, com música, romance e aventura. Esta era a parte boa, junto com um bom salário. A nem tanto era como Daniel se referia ao programa: “Projeto Surf — com Kadu Moliterno e André de Biasi”. Nós
apelidamos de “Missão quase impossível”.

Chamamos Patrícia Travassos, ex-Asdrúbal, por seu humor e sua experiência teatral, para entrar no time com sua visão feminina. E começamos a nos reunir e a escrever. Em manobra que o psicanalista Hélio Pellegrino classificava de “conspiração a favor”, enquanto Daniel esperava esporte e ação para seu “Projeto Surf”, sonhávamos alto: um seriado pop, sobre jovens, sexo, comportamento, drogas, aventuras, humor — e, vá lá, alguma coisa de esporte, especialidade de Calmon, não por militância mas por ter dirigido os filmes Menino do Rio e Garota dourada. E mais: não bastaria criar personagens e histórias originais e divertidas, queríamos inventar um novo jeito de contar — com som e imagem — aquelas novidades, de uma maneira mais rock, mais pop. A música seria um dos grandes protagonistas do seriado, contando e comentando a história. Como diretor musical, montei uma trilha com Marina, Lulu, Lobão e os grandes nomes da nova geração. Na abertura, uma novidade: um rap, o “Rap do Arrepiado”, cantado por Sandra de Sá. O diretor escolhido por Daniel era Marcos Paulo, que teve que sair para fazer outro projeto e, por unanimidade entusiástica, exigimos — e Daniel concordou imediatamente — que o diretor fosse nosso amigo Guel Arraes. Pernambucano criado em Paris, Guel estudou cinema na França, foi assistente de Godard e vinha de uma experiência vitoriosa em dupla com Jorge Fernando na direção de novelas em “Guerra dos sexos”. Mas o trabalho nas novelas era exaustivo e a pressão violenta e Guel queria fazer um seriado, com mais possibilidades criativas e mais tempo de realização, queria experimentar. Como nós. De cara transformamos a dupla de protagonistas em um harmonioso triângulo amoroso com a mocinha “Zelda”, que insistimos para que fosse interpretada por Andréa Beltrão, jovem atriz talentosa e totalmente fora dos padrões de beleza de mocinhas da TV. Os dois surfistas-aventureiros, com naturalidade e humor, sob o
mesmo teto, viviam um romance simultâneo com a jovem jornalista. Como um Jules e Jim praieiro. Pra lá de alternativo.

As histórias seriam narradas por um disc-jockey de rádio, inspirado em Big Boy, mas negro, como seu próprio nome dizia: ‘ Black Boy. Só que o personagem seria interpretado por uma garota, e a escolhida foi Nara, filha de 20 anos de Gilberto Gil. Contrariando todas as séries do gênero, logo no final do primeiro episódio um dos heróis morria, despencando com sua moto de um despenhadeiro. Todo mundo chorava. A história acabava. Mas logo em seguida o herói voltava a aparecer, para as confraternizações finais com o resto da turma, sem nenhuma explicação. Em off, a DJ “Black Boy” falava em ritmo de rap sobre verdade e mentira, sobre o falso e o verdadeiro, sobre a realidade e a imaginação. O primeiro episódio de “Armação ilimitada” marca o primeiro nu frontal da televisão brasileira em horário nobre. Mas era uma piada visual: Zelda, nua em pêlo, pede carona na beira da estrada. Mas seus seios e sexo estão cobertos, mínima mas ostensivamente, por duas faixas negras horizontais, inseridas na edição. Como em clássicas imagens censuradas. Era uma piada visual com a Censura, com o fim da Censura na Nova República. Mas na véspera do programa ir ao ar, enquanto virava noites na edição com João Paulo de Carvalho, usando e abusando de slow e fast motions, numa linguagem muito mais próxima de videoclips do que de novelas, Guel Arraes recebeu a notícia de que a Censura Federal, que tinha visto uma versão semipronta para dar a liberação, tinha mandado cortar a cena. Apesar das tarjas negras, ou por causa delas. “De jeito nenhum!”, ofendeu-se Guel com seu sotaque recifoparisiense. Subiu nas tamancas. No caso, sandálias sertanejas, ‘ que usa sempre, até com paletó e gravata. “Deixe comigo que eu resolvo tudo com Fernando Lyra, que é amigo de meu pai, conheço desde criança.” Guel é filho de Miguel Arraes, o velho patriarca socialista, de volta triunfalmente a Pernambuco.

Fernando Lyra era seu correligionário, amigo e discípulo e devia muito a Arraes por sua nomeação para ministro da Justiça do governo Sarney. Guel voltou para a edição, não tocou na cena e muito menos falou com Fernando * Lyra. O programa foi ao ar inteiro, sem qualquer corte. A TV Globo ficou esperando a multa, o processo, o telefonema, a ida a Brasília. Mas não aconteceu nada: ou a Censura não viu, ou esqueceu que mandou cortar, ou achou melhor deixar para lá, ficando o visto pelo não visto. Era a alvorada bagunçada da Nova República. Pouco depois, quando Je Vous Salue Marie, de Godard, foi proibido, Fernando Lyra pediu tolerância com Sarney dizendo que ele era “a vanguarda do atraso”. Voltei para Roma, com Euclydes e sua nova mulher Christine Nazareth. Nosso contrato com Daniel para o “Armação ilimitada” era para trabalhar na criação e escrever os quatro primeiros capítulos: uma armação limitada e cumprida. De volta ao Parioli, à comida do Domenico, ao futebol no Olímpico.

Voltamos felizes: apesar do sucesso com os jovens, o “Armação ilimitada” era visto com desconfiança por Boni, que bancou a proposta de Daniel de colocar no horário nobre um seriado como aquele, com aquela linguagem e aqueles conceitos, em rede nacional. O público adulto estava detestando. Mas além dos jovens, as crianças gostavam. O programa estava correndo sérios riscos de rebaixamento na programação quando chegou a notícia de Barcelona: o “Armação ilimitada” tinha ganhado o Prêmio Ondas, da Espanha, um dos mais importantes do mercado internacional de TV, como “melhor programa juvenil”. Boni reuniu toda a equipe na sua sala, falou com entusiasmo da série, de seu humor pop e sua linguagem visual muito diferente de tudo que se via na nossa TV. E reforçou as “chamadas”, as audiências cresceram, o público foi assimilando os novos truques, o “Armação” se tornou um dos grandes sucessos do ano. Filipelli começou a vender o seriado no mercado internacional, mas na Itália o “Armação ilimitada” não seria exibido pelas redes de Berlusconi ou pela RAI: a TV Globo teria sua própria emissora.

Tinha comprado a Telemontecarlo, que transmitia de Mônaco para a Itália inteira, e o programa seria exibido junto com séries e novelas brasileiras, filmes e esportes internacionais. O jornalismo e alguns novos programas seriam produzidos em Roma. A TV Globo, associada ao Príncipe Rainier, iria competir, no multimilionário mercado italiano, com as três redes da RAI e com as três de Silvio Berlusconi, que juntas tinham mais de 90% da audiência, além de dezenas de emissoras locais independentes e semipiratas. O mercado de televisão na Itália foi desregulado no grito, quando emissoras independentes e mandados judiciais começaram a crescer como cogumelos. A nova legislação estava sendo discutida no Parlamento há dez anos, à italiana, sem definições à vista. Roberto Irineu Marinho mudou-se para um palazzo na Piazza Navona, nomeou o ítalo-brasileiro e ex-diretor comercial da Globo Dionisio Poli para diretor-geral, chamou meu ex-colega Ricardo Pereira, correspondente da Globo em Londres, para dirigir o jornalismo italiano, convocou um time de advogados e contadores e entrou no ar.

A programação da TMC teria várias produções da TV Globo, dubladas em italiano, que faziam grande sucesso nas redes de Berlusconi, alguns musicais, jornalísticos e especiais brasileiros, considerados muito superiores aos similares italianos, filmes e séries internacionais compradas no mercado anglo-americano, e um investimento colossal para montar na Itália uma Divisão de Jornalismo capaz de gerar de Roma um telejornal nos padrões do “Jornal nacional” e competir pau a pau com a RAI e Berlusconi. Toda a programação seria gerada de Roma para Montecarlo e de lá para a Itália inteira. No verão, a fina flor da música brasileira estava de volta a Roma. Gal Costa, Jorge Ben e João Gilberto se apresentariam, em dias diferentes, num grande festival de música à beira do Rio Tevere. No dia do show de João, no fim da tarde, Gal me telefonou: “João Gilberto não vai fazer o show, sabia?”, disse a voz inconfundível. Eu sabia. João tinha me telefonado pouco antes, “da casa de um amigo”, para dizer que não ia cantar à noite. Tinha saído do hotel, escondido dos empresários italianos furiosos com o cancelamento do show, com a perda da lotação esgotada (seis mil ingressos vendidos), com as despesas da viagem de João e seu secretário Otávio Terceiro. A coisa estava feia: “Só recebemos as passagens dois dias antes... o avião parou três horas em Paris antes de ir para Roma... o ar-condicionado do avião... o vírus... a gripe... a garganta...”, explica com voz rouca entre silêncios. João sabe que conheço alguns jornalistas e um dos empresários italianos que estão atrás dele, Sandro, dono do bar Manuia, casado com uma mulata brasileira. “Diga a eles que eu vim aqui para cantar. E não para não cantar. Que eu vou fazer Antibes e Montreux e depois eu volto aqui e faço o show”, pediu com voz sofrida. ‘A coisa estava feia desde o início da tarde. Como João não atendia o telefone, os empresários foram para o hotel. Com um médico. Se João estivesse mesmo com gripe, como dizia Otávio, o dottore lhe aplicaria uma injeção de efeito fulminante e ele estaria pronto para fazer o show. Foi quando João decidiu sair do hotel discretamente. Indiquei-lhe um médico, que atendia a Embaixada do Brasil, para o examinar e dar um atestado, e um advogado, para que ele pudesse sair do país. Mas pela fúria dos empresários deveria ter mandado também um guarda-costas. Os jornalistas e os empresários me ligam sem parar querendo saber de João. Digo o que ele me disse, não sei de onde. Ameaçam chamar os carabinieri. Um dos empresários, que eu não conhecia, diz que se encontrar João lhe dá um tiro. Coisa preta na Cidade Eterna. Sandro tenta em vão que Gal Costa e Jorge Ben façam um show juntos no lugar de João. No dia seguinte, devolvidos os ingressos e contabilizados os prejuízos, os ânimos estão, relativamente, mais calmos. João voltou para o hotel. Passo a tarde intermediando negociações entre ele e os italianos. Sandro quer que ele marque a nova data. Ele marca. Mas o outro empresário está furibundo e exige que João também deixe um depósito em dinheiro e pague pela publicidade. João se ofende. Diz que vai fazer o show depois de Antibes e Montreux. E parte para o Sul da França.

Mas o sócio de Sandro está cuspindo fogo. Diz que tem certeza absoluta de que João não vai voltar para fazer o show. E mais: que duvida até que ele faça o show em Antibes. E parte feroz para o Sul da França. — Em Antibes, assiste extasiado ao show perfeito de João, ovacionado pela platéia. Comovido, vai aos camarins se apresentar: nunca tinham se visto antes, se conheciam apenas por ameaças via terceiros. Abraça e beija João efusivamente. Tornam-se amigos de infância. Volta feliz para Roma certo que João fará o show na data marcada. Como de fato fez, com lotação esgotada e aplaudido de pé. Na primeira fila, o empresário truculento chorava e ria ao mesmo tempo. Quando chego a Montreux, o diretor do festival, Claude Nobs, está eufórico: João Gilberto já chegou. Antonio Carlos Jobim é esperado a qualquer momento: vai dividir com João a “Noite brasileira”. Miles Davis também já chegou e Ella Fitzgerald, Kid Creole and the Coconuts, Astor Piazzolla e King Sunny Adé chegam nos próximos dias junto com as estrelas que fazem as 20 noites do festival. João e Tom não se apresentam juntos há 23 anos, desde o histórico show do Au Bon
Gourmet junto com Vinícius e Os Cariocas. E Claude está excitado com a possibilidade de que eles façam duas ou três músicas juntos: o festival é gravado inteiro para disco (e lançado pela Warner) e um dueto de Tom e João é uma preciosidade. João não diz que sim nem não e Tom está na Espanha fazendo shows com sua Banda Nova e seu quinteto vocal feminino. No bar do Cassino, encontro os amigos Nesuhi Ertegun, big boss da Warner e grande fã de João, e Tommy LiPuma, que produziu “Amoroso”, um dos grandes discos de João. LiPuma também é o produtor de Miles Davis e diz que um de seus grandes sonhos é juntar os dois, e que Miles adora a idéia. Diz que a música de João e de Tom mudaram o jeito de Miles tocar no início dos anos 60, quando gravou, com arranjos de Gil Evans, o seu histórico Lp Quiet Nights. O show começa às nove mas já são sete e Tom Jobim ainda não chegou a Montreux. A esta hora ele e seus músicos estavam saindo de Madri num vôo atrasado e só chegariam a Genève às nove.

Mais uma hora de carro até Montreux. Na terra dos relógios, em plena quarta-feira, um show que começa com uma hora e meia de atraso c’est un escandal! Quando soube às sete horas que Tom estava saindo de Madri, Claude, em desespero, mandou buscar em Genève um brasileiro que tocava em bares, um certo Zé Barrense, para entreter a plateia que esperava... Tom Jobim e João Gilberto. Foi um completo desastre, aquele pobre nordestino cantando e tocando violão sozinho no meio do palco do Cassino de Montreux, mais de metade do público fugindo para os bares, entre pragas e piadas. São quase onze horas quando Tom Jobim entra no palco esbaforido e o público vaia e aplaude. Ânimos exaltados na noite alpina. Mas bastaram 20 minutos da magia jobiniana para encher de música e aplausos a sala, já desfalcada de um quarto do público. João, pronto desde as nove, assiste ao show da coxia. Tom sai de cena aplaudidíssimo e à meia-noite e meia, com metade da casa, João inicia sua histórica apresentação de duas horas e dez, que, lançada em seguida em álbum duplo, seria um dos seus grandes discos.  

Depois do show, a sala de imprensa fervilhava. Um nervoso crítico gay do Tribune de Genève afirmava irritado que Tom tinha atrasado porque não queria se apresentar “abrindo” para João, que tudo era uma briga de egos, de duas prima-donas tropicais. Desmenti energicamente e ironizei: “Você não entende nada de música: que cantor do mundo quer se apresentar depois de João Gilberto?” No dia seguinte João telefona, feliz com o show e com a paz suíça, e me lê um bilhete que recebeu de Antonio (como chamava Tom), pedindo desculpas pelo atraso e o cansaço e adiando o encontro. Desencontro histórico em Montreux. Convidado por Daniel Filho para integrar a equipe de criação de um novo musical para a TV Globo, voei para o Rio para uma breve temporada: o acerto era trabalhar no conceito, na estruturação, no formato, desenvolver os quatro primeiros programas e arrivederci Rio. O apelo era irresistível: um musical de luxo, com alta qualidade de som, montões de grana para convidados e para ter a dupla de apresentadores de meus sonhos: Chico Buarque e Caetano Veloso. Sugeri também que tivéssemos a cada programa, além de grandes nomes da MPB, jovens estrelas da nova geração e um convidado internacional — sempre um latino-americano. No primeiro programa teríamos Maria Bethânia e Rita Lee cantando sozinhas, com Chico e Caetano, e fazendo entre elas um inédito dueto. O grande mestre argentino Astor Piazzolla seria o convidado internacional.

Além do espírito nacionalista, a força máxima da MPB unida em volta de dois de seus grandes líderes, “Chico & Caetano” trabalharia pela integração latino-americana através da música. Os cubanos Pablo Milanés e Silvio Rodrigues, o panamenho Ruben Blades e o portoriquenho Willie Colon seriam os próximos. Em horário nobre, em rede nacional de televisão, toda semana. Rita Lee adorou ser convidada para o primeiro programa. E para bagunçar com o nacionalismo e a latinidade, em golpe de mestra, escolheu um velho sucesso de Carmen Miranda, um samba americano, em inglês, cantando com sotaque carregado: “IIIIII like you verrry much IIIIII think you’re grrrrand...” Montamos um regional para representar o Bando da Lua e Rita cantou com muita graça e humor, revirando os olhos azuis. Todo mundo adorou. Maria Bethânia especialmente, que em mais de 20 anos de vida artística nunca tinha falado com Rita Lee, que por sua vez jamais tinha trocado uma palavra com Chico Buarque em 20 anos de estrada musical.

Bethânia e Rita cantaram, por sugestão de Bethânia, “Baila comigo”, numa perfeita tradução da harmonia por contraste: a voz grave e vigorosa de Bethânia, sua interpretação teatral exuberante, com o fraseado cool e a performance pop de Rita. Mas o melhor, ou o pior, ainda estava para acontecer. O gran finale, com todo mundo cantando junto. Em momento não muito feliz, escolhi e insisti para que a música fosse uma nova de Caetano, que ele tinha feito para uma montagem teatral de Regina Duarte e que se chamava singelamente “Merda”. Não foi preciso insistir muito: todo mundo concordou. Era uma música para cima, para fora, animada, brincando com a velha tradição teatral de desejar “merda” aos atores em suas estreias, nada ofensivo ou agressivo, nada mais apropriado para a estréia do programa. E assim foi, no final, com todo mundo cantando e desejando “merda” para todo ; mundo no palco e o público aplaudindo. “Nem a loucura do amor, da maconha, do pó, do tabaco e do álcool * vale a loucura do ator quando abre-se em flor sob as luzes no palco...  Noite de estreia, tensão, medo, deslumbramento, feitiço, magia... Merda! Merda! Merda! Pra você desejo merda, merda, Merda pra você também...” No dia seguinte, uma nota numa coluna de jornal comentava a gravação do programa e adiantava que não havia possibilidade de o final ir ao ar. E que não era pela Censura Federal. Fiquei furioso, mas assim que a raiva passou vi claramente a situação — e como tinha sido irresponsável a minha escolha, que, cortada, deixaria o programa sem final. Deveríamos pelo menos ter gravado um final alternativo. Que
merda!Como pude imaginar que a TV Globo, com ou sem Censura, deixaria ir ao ar em rede nacional, em horário nobre, o primeiro time da música brasileira mandando todo mundo à merda? É claro que seria ofensivo para milhões de famílias, abusivo com milhões de crianças, uma total irresponsabilidade, gerada pela embriaguês democrática e dividida com todos os malucos que aceitaram a infeliz escolha. Mas ficou muito engraçado, divertidíssimo, como se ouviu no Lp da Som Livre com os melhores momentos do programa.

Em outro programa, o convidado especial era Tim Maia, que chegou para o ensaio à tarde doidão e animadíssimo, brincou com todo mundo, contou piadas, cantou divinamente, reclamou do som o tempo todo, com seu grito de guerra, terror dos técnicos de áudio: “Mais grave! Mais agudo! Mais eco! Mais retorno! Mais tudo!!!” E à noite não apareceu para a gravação. O programa foi ao ar com a gravação do ensaio, com o melhor das músicas e das piadas, num ambiente tão alegre e relaxado que seria impossível reproduzir num programa de televisão. O público adorou, vendo todo mundo à vontade, sem figurinos e maquiagens, se divertindo com o humor e a música de um grande personagem. Justamente quando não foi, Tim Maia foi a grande estrela de “Chico & Caetano”.



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