terça-feira, 27 de dezembro de 2016

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Disco repleto de clássicos da dupla Aldir e João completa quatro décadas

Por Rodrigo Mattar


Existem artistas, músicas e discos que entram na vida da gente sem explicação e não saem mais – igualmente sem que se explique o motivo.

Trago de volta a seção Discos eternos para falar de um artista, de algumas músicas e de um disco que eu guardei para sempre na memória. Cortesia do mineiro de Ponte NovaJoão Bosco e seu Galos de Briga.

E como pode um disco editado em 1976, quando o blogueiro tinha apenas cinco anos de idade, chamar tanto a atenção de uma criança a ponto de, já adulto, perseguir um exemplar em Compact Disc nas lojas e adquiri-lo?

Existe o fascínio pela capa, é claro. O vermelho-sangue de fundo, um olho solitário, São Jorge impondo-se sobre um dragão e, em primeiro plano, uma pata de galo com esporas de rinha, remetendo ao título do LP.

Bosco, cuja carreira de cantor, compositor e violonista começou após um rápido flerte enquanto habitante de Ponte Nova com o iê-iê-iê da Jovem Guarda e em paralelo com o curso de Engenharia Civil que estudou em Ouro Preto, lançava em 76 seu terceiro trabalho, sem contar o disco “de bolso” que O Pasquim lançara quatro anos antes com “Agnus Sei”. Naquele mesmo ano, Elis Regina deu impulso à carreira de João ao cantar “Bala Com Bala” e o maravilhoso bolero “Dois pra lá, dois pra cá”, com letra de um tijucano de ideias brilhantes e afiadas: Aldir Blanc.

A parceria Bosco-Blanc foi uma das mais profícuas da música brasileira nos anos 70 e, embora segundo João, tenha se desgastado a ponto de provocar o fim da dupla enquanto compositores, tal como já acontecera por exemplo com Raul Seixas e Paulo Coelho, ficaram para a história as grandes canções que os dois compuseram.

Galos de Briga, disco produzido por Rildo Hora e que teve arranjos de Luizinho Eça (Radamés Gnattali trabalhou somente com a última música), além de uma retaguarda de primeiríssima qualidade com Toninho Horta (guitarras/violões), Luizão Maia (baixo), Paschoal Meirelles (bateria) e Dom Chacal (percussão), não foge à exceção dos trabalhos da dupla com composições que são polaroides do cotidiano do carioca nos anos 70. O disco começa com “Gol Anulado”, de citações futebolísticas (Quando você gritou ‘Mengo!’ no segundo gol do Zico / tirei sem pensar o cinto / e bati até cansar / três anos vivendo juntos / e eu sempre disse contente / minha preta é uma rainha / porque não teme o batente / se garante na cozinha / e ainda é Vasco doente), referências explícitas aos times de coração de João Bosco, rubro-negro de primeira hora e Aldir Blanc, vascaíno de boa cepa. Mas os dois extrapolam na comparação no verso final da canção (Eu aprendi que a alegria / de quem está apaixonado / é como a falsa euforia / de um gol anulado), fazendo a antítese de uma paixão com aquele gol que o artilheiro marca, mas não vale.

“Incompatibilidade de gênios”, clássico da dupla, volta com citações boleiras (Dotô / jogava o Flamengo e eu queria escutar / chegou / mudou de estação e começou a cantar) e uma narrativa muito bem-humorada das desventuras de um sujeito notadamente mal-casado, que deseja se livrar da mulher e tem seu desejo atendido quando ganha no jogo do bicho (E deu na cabeça / acertei no milhar / ai! quero me separar!).

A terceira faixa é o belíssimo bolero “O cavaleiro e os moinhos”, com direito à cama percussiva de Chico Batera e letra inspirada de Aldir Blanc que diz que ‘já não há mais moinhos como os de antigamente’. A carga latina se acentua em “Rumbando”, com inspiração nos clássicos caribenhos como os de Tito Puente e direito a uma interessante aliteração (O rumo da rumba / um bumbo, uma tumba / o rombo e o tombo – mas nasceu para bailar!), revelando a veia bem-humorada das letras de Aldir Blanc, que chega ao lirismo total em “Vida Noturna”, quinta e sofrida faixa do disco.

Em “O ronco da cuíca”, voltam as citações cotidianas numa música com empolgante introdução à la bateria de escola de samba, com Blanc desfilando um sem-fim de ironias, recados diretos à ditadura que reinava soberana no Brasil de 1976 e que a censura, talvez ocupada com outras coisas naqueles tempos, não teve competência ou capacidade de proibir. (A raiva dá pra parar pra interromper / a fome não dá pra interromper / a raiva e a fome é coisa dos ‘home’ / a fome tem que ter raiva pra interromper / a raiva é a fome de interromper / a fome e a raiva é coisa dos ‘home’ / é coisa dos ‘home’ / a raiva e a fome / mexeu com a cuíca / vai ter que roncar!)

Que tal substituir instrumento cuíca e colocar a palavra como sendo o trabalhador, o povo brasileiro?

O lado B (sim, discos nos anos 70 tinham um lado B) abre com o bolerão “Miss Suéter”, de participação especialíssima da Sapoti Ângela Maria e com letra que, lá em casa, era cantada a plenos pulmões pelo meu pai. Explico: quando ele e minha mãe se conheceram, lá pelos idos de 1962, ela tinha o cabelo levemente tingido de loiro. E como a letra diz que a personagem da canção tem “fascínio por falsas loiras”, apaixonadamente ele tocava a música, várias vezes. Nunca esqueci disso.

A música que mais gosto é a segunda do lado B, o bolero “Latin Lover”, com os versos que entraram para a história da parceria: Nos dissemos / que o começo é sempre sempre inesquecível / e no entanto meu amor / que coisa incrível / esqueci nosso começo inesquecível. O amante latino que morre sem revólver, sem ciúme, sem remédio e de tédio, dá vez ao fado “Galos de briga”, de lindíssimo arranjo de violões com os músicos Manoel Ferreira, Leonel Villar e Carlos Silva e Souza em perfeita sintonia com o baixo de Wagner Dias e os pratos e castanholas do percussionista Barão.

Cristas de incêndio crispadas
Cristas do fogo de espadas
Cristas de luz suicida
Lúcidas de sangue e futuro

Cristas crismadas em rubro
Não rubro rosa assustada
De rosa estufa, canteiro
Mas rubro vinho, maduro

Rubro capa, brandarilha
Rosa atirada ao toureiro

Não, o rubrancor da vergonha
Mas os rubros de ataduras
O rubro das brigas duras
Dos galos de fogo puro

Rubro gengivas de ódio
Antes das manchas no muro

Em “Feminismo no Estácio”, Bosco e Blanc deixam de lado uma certa apologia machista das duas primeiras faixas, de uma submissão feminina ante o macho-alfa para exaltar que a “nêga sem modos” da letra é “maior e vacinada”. E independente do marido, amante ou que quer que seja, para fazer o que lhe desse na telha.

Com participação de Toots Thielemans, o brilhante gaitista internacional, “Transversal do tempo”, a penúltima música, acabaria conhecida como o título de um dos mais belos espetáculos daqueles tempos – não com João Bosco, mas sim por Elis Regina, que como eu disse anteriormente, gravou – e gravaria até o fim da vida – músicas da dupla.

O disco encerra com a marcha-rancho “O rancho da goiabada” e não me perguntem como e por que era a minha música predileta (quando criança, é claro) das 12 de Galos de Briga, principalmente porque eu não gosto de goiabada cascão com muito queijo, nem de café com cigarro e de bife à cavalo. Sei lá… acho que é porque a música era gostosa de se ouvir e para mim, que era criança quando ouvia e adorava o disco, tema e letra eram irrelevantes.

Enfim, muito pelo gosto pessoal, menos por sua absoluta relevância na MPB, coloqueiGalos de Briga como um disco fundamental e bom para ser apreciado. João Bosco e Aldir Blanc merecem, sim, um lugar de destaque na música nacional e todo o nosso respeito.

Ficha técnica de Galos de Briga
Selo: BMG/RCA-Victor
Gravado entre 1975 e 1976
Produzido por Rildo Hora
Tempo: 37’41″

Faixas(*):
01 - Gol anulado
02 - Incompatibilidade de gênios
03 - O cavaleiro e os moinhos
04 - Rumbando
05 - Vida noturna
06 - O ronco da cuíca
07 - Miss Suéter (participação Ângela Maria)
08 - Latin lover
09 - Galos de briga
10 - Feminismo no Estácio
11 - Transversal do tempo
12 - O rancho da goiabada

(*) Todas as músicas de João Bosco/Aldir Blanc

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