sexta-feira, 7 de agosto de 2020

OS MÚLTIPLOS SONS DA MÚSICA INSTRUMENTAL BRASILEIRA

Por Tito Guedes



O Brasil é definitivamente um país musical. O brasileiro gosta de cantar, seja em um show, em casa, acompanhando uma live no Instagram do seu artista preferido, ou em um churrasco com os amigos. Mas o fato é que o brasileiro também gosta de ouvir. 

A riqueza e a multiplicidade da nossa música instrumental é a prova disso. Embora não tão inserida no mainstream como a música cantada, ela vem de uma significativa tradição cultural, que nos ajuda a explicar a nossa memória musical.


Os “clássicos”

Há nomes de peso dessa linhagem que, com o passar do tempo, ganharam aura de “clássicos”. Mas sabemos que no Brasil, tropicalista por essência, mesmo antes do termo existir, a fronteira entre popular e erudito sempre foi ultrapassada com gosto e talento. 

Chiquinha Gonzaga, por exemplo, foi uma artista e uma mulher à frente do seu tempo. Primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil, peitou os moralistas de sua época, viveu a vida de acordo com sua liberdade e deixou uma obra monumental. Como maestrina, atuou em 77 peças teatrais, tornando-se responsável por cerca de duas mil composições. 

Apesar de sua aura “clássica”, ela foi também uma grande compositora popular. Para alguns, inclusive, a primeira compositora popular do Brasil. Além de sua atuação em diversas operetas populares, é a autora de “Ó Abre Alas”, canção que se tornou espécie de matriarca das marchinhas de carnaval e de toda a nossa tradição da canção popular. 


Heitor Villa-Lobos, por outro lado, é considerado o expoente da música erudita no Brasil. Depois de sua estreia na Semana de Arte Moderna de 1922, se tornou um dos principais maestros brasileiro, autor de peças até hoje prestigiadas no circuito dos teatros europeus e americanos. 

A matéria-prima da erudição de Villa-Lobos, no entanto, era o que havia de mais popular: nossos temas folclóricos e as cantigas populares. Sua obra mais celebrada, “O Trenzinho Caipira”, parte integrante da peça “Bachianas Brasileiras n.º 2”, imita os movimentos de uma locomotiva, transportando os ouvintes diretamente a um cenário interiorano e tipicamente brasileiro.


Pouco depois, no final dos anos 1930, essa linhagem ganhou outro herdeiro: Radamés Gnattali, que ficou famoso por suas orquestrações na Rádio Nacional. Alinhado ao contexto político nacionalista da Era Vargas, criou orquestrações para diversos temas folclóricos, ajudando a divulgar essa cultura ao público ouvinte e mais uma vez ultrapassando a fronteira entre popular e erudito. 


A turma da bossa nova

Impossível falar de música no Brasil (em qualquer termo) sem citar a bossa nova. O movimento surgido diante do mar salgado de Copacabana e dos corpos dourados da juventude carioca dos anos 1950 mudou a forma como se fazia música no Brasil e revelou uma lista infinda de instrumentistas que se tornaram gigantes. O “maestro soberano” Tom Jobim é um deles. Já ativo desde os tempos do samba-canção, Tom, com seu piano e seus arranjos inigualáveis, foi o arquiteto do ambiente suave e sofisticado até hoje associado à bossa nova. 

Depois dele, vieram muitos outros. O lendário Beco das Garrafas, por exemplo, revelou o pessoal do Zimbo Trio, Chico Batera, Dom Um Romão e, dentre muitos outros, Luiz Carlos Vinhas, que se tornou um dos pianistas brasileiros mais conhecidos lá fora, e que fez parte, nos anos 1960, do Bossa Três.


Roberto Menescal, de fã de Tom Jobim, se tornou fabricante de clássicos da bossa nova do tamanho de “O Barquinho”, “Vagamente” e “Rio”, além de ter construído uma carreira brilhante como produtor e instrumentista. João Donato, com sua timidez e despretensão, ganhou renome internacional com seu piano fascinante. Discos como “The New Sound of Brazil” ou “A Bad Donato” são exemplos memoráveis da excelência da música instrumental no Brasil. 

Outro nome que não pode ser esquecido é, claro, João Gilberto. Considerado o “pai” do movimento, o baiano de Juazeiro criou uma nova forma de cantar (baixinho, sem arroubos, perto do microfone), e de tocar violão, de uma forma que até hoje ninguém soube imitar. 

Por causa dele, o lema “um banquinho, um violão” virou uma espécie de “alma” da música brasileira. E se o violão, instrumento tido até poucos anos antes como menor, descartável ou até “de vagabundo”, ganhou prestígio e se tornou membro nobre da música brasileira. 


O violão brasileiro

Com o tempo, criou-se uma linhagem de grandes violonistas brasileiros. Próximo à bossa nova, por exemplo, Baden Powell foi parceiro de Vinicius de Moraes e tocava de uma forma que fazia com que seu violão soasse como um duo. Depois dele, vieram outros tantos, como Guinga, com sua inventividade harmônica e talento raro de compositor, Raphael Rabello, que em pouco tempo de carreira se tornou um dos mais importantes instrumentistas brasileiros, e o jovem Yamandú Costa, que despontou há poucos anos e prova que tem no sangue esta nobre linhagem do violão brasileiro.



Os populares 

Hoje o senso comum diz que a música instrumental é feita para poucos ouvidos privilegiados, mas a verdade é que há uma gama de instrumentistas no Brasil que ajudaram a fazer da nossa música popular o que ela é hoje, a começar pela já citada Chiquinha Gonzaga. Há também outros mestres como Waldir Azevedo, autor do clássico “Brasileirinho”, que popularizou o cavaquinho, hoje instrumento indispensável em qualquer roda de samba ou choro, e Jacob do Bandolim, mestre do choro que fez o bandolim sair da posição de acompanhante para se tornar solista. 

O mestre Pixinguinha, por exemplo, quando excursionou com Os Oito Batutas na Paris de 1922, foi um dos primeiros artistas brasileiros a fazer sucesso no exterior. Era um músico popular por excelência. Seu maior clássico, “Carinhoso”, ao ganhar letra de João de Barro virou hino e é cantado por multidões até hoje. 

E o que falar de Renato Borghetti? Com seu acordeon, o gaúcho vendeu cem mil cópias e fez do álbum “Gaita Ponto”, de 1984, o primeiro de música instrumental a ganhar um disco de ouro. Vindos do Nordeste, Dominguinhos e Sivuca seguiram Luiz Gonzaga, pegaram na sanfona e também abrilhantaram a canção popular com suas composições. 


Para citar apenas mais um exemplo dentre tantos, o pianista César Camargo Mariano, ao arranjar e produzir os discos de Elis Regina e outras tantas estrelas, criou uma sonoridade sofisticada e ao mesmo tempo pop - algo difícil de fazer igual. Seus arranjos são mais uma prova de que popular e erudito no Brasil são uma coisa só. 


As experimentações 

Mas há também os artistas que preferem fugir do tom, desmistificar melodia e harmonia e criar novos sons. Nos anos 1960, Rogério Duprat foi o criador da sonoridade da Tropicália, radicalizando com arranjos irreverentes e debochados que incluíam gritos, ruídos de cachorro latindo, gente conversando, e apito de buzinas. Parte dessa transgressão ficou imortalizada no álbum “A Banda Tropicalista do Drupat”, lançado em 1968. 

Outro nome de peso, Naná Vasconcelos, foi um dos mais conhecidos percussionistas do Brasil. Ele ampliou o conceito de percussão na música, estendendo-o a qualquer objeto que emita som: a água do mar, objetos utilitários como panela e penico e até nosso próprio corpo. 

Quem também segue essa linha é Hermeto Pascoal, o “Bruxo”. Criador de instrumentos “estranhos”, valoriza os ruídos e gosta de tirar som de objetos inusitados. Uma ida de Hermeto ao dentista pode virar uma sinfonia se ele resolver brincar com o irrigador bucal e outras parafernálias odontológicas. 




A nova geração da música instrumental brasileira

Hoje, a música instrumental brasileira dá continuidade a uma tradição de artistas de excelência, que vêm contribuindo para a nossa memória musical produzindo uma obra criativa, instigante e original. Letieres Leite, por exemplo, não é exatamente um novato, mas quando criou a Orkestra Rumpilezz em 2006, provou que ainda há muito para ser explorado. Unindo jazz, música clássica e a percussão baiana, a orquestra se tornou um dos destaques mais felizes da música brasileira contemporânea. 

Além dele, há muitas outras bandas de peso no cenário atual, como Buena Onda Reggae Club, Zé Bigode Orquestra, Monstro Extraordinário, Orkestra Bandida e muitos outros conjuntos e artistas que seguem na ativa. 

E a previsão é de que continue assim por muito tempo. Analisando essa trajetória, é possível perceber que, assim como o samba, a música instrumental pode até agonizar, mas não morre jamais.

Bahia de todas as orquestras - Jornal O Globo

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