sábado, 15 de agosto de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Tom Jobim

“Vai minha tristeza
e diz a ela
que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
que ela regresse
porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade...”
TOM JOBIM e VINICIUS DE MORAES, “Chega de saudade”

Se João foi o ritmo da bossa, Tom Jobim foi o maestro do movimento. Se Pixinguinha havia sido o grande nome da música popular na primeira metade do século XX, Antônio Carlos Jobim seria o da segunda. Criado na Zona Sul do Rio de Janeiro, Tom Jobim teve formação musical sólida e eclética. Estudou com professores eruditos, teve noções de música dodecafônica, mas ouvia com gosto as serestas e os choros da rua, repetindo a experiência musical de seu ídolo maior, Heitor Villa-Lobos. Quando sentava ao piano para compor, as partituras apontavam a influência de Chopin, Debussy, Stravinsky, George Gershwin, Cole Porter, Dorival Caymmi, Custódio Mesquita, Ary Barroso.
Ganhando a vida pelas boates de Copacabana, correndo atrás do aluguel – como quase todo músico –, Tom Jobim teve no amigo Newton Mendonça seu primeiro grande parceiro, em 1950. Jovem talentoso, Newton morreu cedo, mas deixou uma obra importante para o movimento bossa-novista. Com Tom, ele fez dois hinos da época: “Samba de uma nota só” (“Eis aqui esse sambinha/ feito numa nota só/ outras notas vão entrar/ mas a base é uma só”) e “Desafinado” (“Se você insiste em classificar/ meu comportamento de antimusical/ eu, mesmo mentindo, devo argumentar/ que isto é bossa nova/ isto é muito natural...”, música que rebatia com inteligência as críticas que a bossa nova recebia).
A experiência de pianista nos “inferninhos” noturnos do Rio de Janeiro, somada ao trabalho de arranjador ao lado do maestro Radamés Gnattali na Continental Discos, foi estruturando o músico Tom Jobim. Sua produção foi construindo um contraponto ao chachachá e ao twist, que monopolizavam o mercado da época.
De fato, Tom representava aquele lado da bossa que valorizava nossas tradições, sem tradicionalismo. Bebeu em Pixinguinha, Noel Rosa, Radamés Gnattali, Ary Barroso, Custódio Mesquita. Chegou até a compor com Luiz Bonfá, no começo da carreira, um samba que criticava a “invasão” estrangeira na música brasileira, “Samba não é brinquedo”: “Eu sei que você anda dizendo/ que o samba está perdendo/ vai ceder o seu lugar/ Eu sei que tudo isso é brinquedo/ por isso não tenho medo/ da versão de além-mar.”


Só danço samba

O manuscrito original de “Só danço samba” faz parte do acervo da Toca do Vinicius, em Ipanema, no Rio de Janeiro, e mostra a inegável ligação de Tom Jobim e do “poetinha” com o samba. Aliás, foi Carlos Alberto, dono da Toca do Vinicius e uma daquelas memórias prodigiosas da MPB (sobretudo da história de vida do Vinicius e da bossa nova), quem relembrou o lançamento dessa música e de “Samba da bênção” no show O encontro, realizado no restaurante Au Bon Gourmet, em Copacabana, em 2 de agosto de 1962.
Vinicius, To m, João Gilberto, Milton Banana, Otávio Bailly e Os Cariocas foram os monstros sagrados que apresentaram ao público presente quatro músicas históricas da bossa nova, além das duas citadas: “Garota de Ipanema”, “Samba do avião”, “Insensatez” e “Ela é carioca”, todas frutos da rica parceria de Tom e Vinicius.
Mas Tom Jobim tornou-se universal. Sua música, como toda música de qualidade, não tem pátria. Acima dos modismos e de qualquer rótulo, o maestro passou a ser reverenciado no exterior, gravado por Stan Getz, Charles Byrd e Frank Sinatra, entre tantos outros.
Se pensarmos em cada grande compositor como um país, a obra do maestro é sem dúvida um continente da música brasileira. A legião de extraordinários parceiros só corrobora nossa afirmação: com Billy Blanco gravou “Sinfonia do Rio de Janeiro”; com Chico Buarque, “Sabiá”; com Dolores Duran, “Por causa de você”. Teríamos mais uma centena de músicas com os parceiros já citados e ainda outros do quilate de Marino Pinto, Paulo Soledade, Aloy sio de Oliveira, Ronaldo Bastos, Vinicius de Moraes e Newton Mendonça. Mas acho que o tom da nossa conversa já é de excelência...



Vinicius de Moraes

“Minha alma canta
vejo o Rio de Janeiro
estou morrendo de saudade
Rio, teu mar, praias sem fim
Rio, você foi feito pra mim”
TOM JOBIM e VINICIUS DE MORAES, “Samba do avião”

No passado, muitos poetas se aproximaram dos compositores populares e alguns até passaram a exercer esse ofício. Mas foi Vinicius de Moraes que sintetizou o encontro da poesia com a música popular. De certa forma, a aproximação de um poeta já reconhecido nas literaturas brasileira e latino-americana deu uma espécie de aval para o que estava sendo criado pela bossa nova.
Analisando a obra de Vinicius, vemos que ele era um teórico do carioquismo, o grande esteta do Rio de Janeiro. Nascido na Gávea, morou em Botafogo, Laranjeiras, Ipanema e Ilha do Governador. Circulava pelo Centro e pela Lapa, rondando pelas madrugadas com o seu “poeta-pai, áspero irmão”, Manuel Bandeira.
Vinicius era o carioca em seu estado mais destilado. Veja suas considerações sobre a alma carioca: “Ser carioca, mais que ter nascido no Rio, é ter aderido à cidade e só se sentir completamente em casa em meio à sua adorável desorganização. Ser carioca é não gostar de levantar cedo, mesmo tendo obrigatoriamente de fazê-lo; é amar a noite acima de todas as coisas, porque a noite induz ao bate-papo ágil e descontínuo; é trabalhar com um ar de ócio, com um olho no ofício e outro no telefone, de onde sempre pode surgir um programa; é ter como único programa o não tê-lo; é estar mais feliz de caixa baixa do que alta; é dar mais importância ao amor que ao dinheiro. Ser carioca é ser Di Cavalcanti.”
E a cidade amada se fez presente em suas composições. Existe música mais carioca que “Garota de Ipanema”, composta em parceria com Tom Jobim? Vinicius conheceu Tom quando havia acabado de escrever a peça Orfeu da Conceição – em versos, a peça se baseava no mito grego de Orfeu e era ambientada no morro carioca, para ser representada por negros – e procurava um compositor para musicar suas letras. Nascia, em 1956, uma das mais brilhantes dobradinhas da música popular brasileira, que deu origem a “Se todos fossem iguais a você”, “Canção do amor demais”, “Chega de saudade”, “Água de beber”, “Samba do avião”...


1958, o ano que não deveria terminar

O jornalista Joaquim Ferreira dos Santos escreveu há alguns anos um livro que brinca com o título do clássico de Zuenir Ventura 1968, o ano que não terminou. Em seu livro, Joaquim defende 1958 como o ano que marcou o século XX: “Não existe ano melhor”, diz ele. E enumera fatos que nos marcaram para sempre: “E assim se passaram quarenta anos desde que o capitão Bellini levantou a Jules Rimet e começou a construir uma nova imagem do país. Querem alguns que a construção teria se iniciado, sim, naquele mesmo ano, só que no momento em que João Gilberto batucou no violão as últimas dissonâncias de ‘Chega de saudade’ e lançou o 78 rotações que fundou a bossa nova. Ou terá sido quando Adalgisa Colombo inventou truques de beleza para vencer o Miss Brasil, o DKW-Vemag saiu às ruas com 50% das peças fabricadas pela indústria nacional ou o empresário e conquistador paulista Baby Pignatari pegou no colo a cobiçada atriz americana Linda Christian, ex-Ty rone Power, beijou-a na boca e, olhando para a turma dos Cafajestes do outro lado da piscina do Copacabana Palace, sussurrou em seu ouvido: ‘Você é nossa!’? Isso aconteceu em 1958, o ano em que tudo deu certo. Como disse Nelson Rodrigues, ali ‘o brasileiro deixou de
ser um vira-lata entre os homens e o Brasil um vira-lata entre as nações’.”
O diplomata nada ortodoxo Vinicius de Moraes, cassado do Itamaraty pelos militares em 1968 devido a seus envolvimentos com o Partido Comunista, cultivou uma legião de parceiros talentosos. Com Carlos Ly ra, representante da ala mais à esquerda da bossa nova, fez “Você e eu”, “Minha namorada” e “Marcha da quarta-feira de cinzas”; com o chorão e bossa-novista Baden Powell, violonista de renome internacional, compôs os famosos afro-sambas “Canto de Ossanha” e “Canto de Xangô”, além de “Berimbau” e “Samba da bênção”; com o harmônico Edu Lobo fez “Arrastão”; com o múltiplo Chico Buarque compôs “Gente humilde”; com o maestro Francis Hime, “Sem mais adeus”. 
Aos 56 anos, em 1969, Vinicius começa a parceria com Toquinho, uma das mais importantes de sua carreira. Dela surgiram “Regra três”, “Maria vai com as outras”, “Como dizia o poeta” e “Tarde em Itapoã”.


Vinicius poeta

A mística e a ânsia pelo absoluto imperaram nas primeiras publicações do poeta, sendo substituídas por uma abordagem mais lírica e sensual, com passagens experimentalistas. Tal fase coincide com o processo de amadurecimento do poeta. Os temas de sentido social e de preocupação com o mundo se tornariam uma constante na última fase de sua obra: uma poesia integrada ao cotidiano. Seus versos refletiriam, mais tarde, um pensamento de mobilidade e amor pela cidade do Rio. A seguir, um exemplo do lado mais social do poeta, em que ele toma parte no sofrimento universal causado pelas dores da Segunda Guerra Mundial, em particular pelas bombas atômicas despejadas pelos EUA na cidade nipônica de Hiroshima, matando milhares de pessoas.

Rosa de Hiroxima

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.


O poetinha Vinicius de Moraes, amante das mulheres, do uísque (dizia que o “uísque é o cão engarrafado”, o melhor amigo do homem), das artes e da vida, foi uma das almas mais sedutoras e brilhantes que esta terra produziu.




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