quarta-feira, 19 de agosto de 2020

75 ANOS DE ELIS REGINA: EM PLENO VERÃO (PARTE 02)

Por Tito Guedes



Em 1964 a vida de Elis Regina começou a mudar. Depois do início precoce da carreira em Porto Alegre, foi no final de março daquele ano que ela se mudou para o Rio de Janeiro, acompanhada do pai. Lá, ela logo iniciou a jornada de amadurecimento e aperfeiçoamento de seu estilo que a levou diretamente ao estrelato.

Assim que se estabeleceu na Cidade Maravilhosa, conseguiu um contrato com a TV Rio, onde foi escalada para participações no programa Noites de Gala, um dos carros-chefe da emissora à época. Por causa do programa, se aproximou do baterista Dom Um Romão, que a levou para conhecer o lendário Beco das Garrafas, reduto da boemia carioca e recanto sagrado da bossa nova.
No cenário intimista e fumacento da boate, Elis vivenciou uma verdadeira transformação. Ela saiu de lá mais distante da menina gaúcha que cantava no rádio e bem mais próxima da Elis Regina que conquistou o Brasil pouco depois. Os músicos que ali se apresentavam eram lendas vivas da música brasileira, especialistas em samba, jazz e bossa nova, e ajudaram a imprimir maior sofisticação ao seu repertório. O dançarino irreverente e genial Lennie Dale foi responsável por passar a Elis lições de domínio cênico, ajudando-a a explorar melhor sua presença de palco e ensinando novas possibilidades de movimentos, como aquela rotação com os braços que ficou famosa e que rendeu a ela o apelido de “Hélice” Regina. Luiz Carlos Miéle e Ronaldo Bôscoli, os dois chefões todos-poderosos do local e especialistas no show business brasileiro, dirigiram diversos shows de Elis e ajudaram a lapidar aquele diamante bruto, transformando-a no que ela nascera para ser: uma grande cantora. 

Seus shows no Beco das Garrafas foram sucesso absoluto, mas não duraram muito. Já fazendo jus ao apelido de “Pimentinha”, dado posteriormente por Vinicius de Moraes, Elis acabou brigando com Bôscoli (em um clássico caso de amor e ódio, já que acabaram se casando pouco depois) e se mudou para São Paulo, onde passou a ser empresariada por Marcos Lázaro e a fazer shows nos principais pontos do entretenimento local.


Se 1964 foi um ano de transformação para Elis Regina, o de 1965 foi de total consagração. Em abril, ela venceu o I Festival Nacional da Música Popular Brasileira da TV Excelsior com uma interpretação inesquecível de Arrastão. Essa música se tornou o símbolo inicial, não só da chamada “Era dos Festivais”, mas também daquilo que começava a se delinear como uma espécie de novo gênero musical no Brasil. Algo que não era samba, mas também não era bossa nova, nem jazz, mas misturava tudo isso e criava um pouco mais, batizada simplesmente de Música Popular Brasileira.


Elis se tornou a face principal e mais aclamada da chamada MPB e logo passou a nadar em sucesso atrás de sucesso. Ao lado de Jair Rodrigues, passou a apresentar na TV Record o programa “O Fino da Bossa”, que rendeu três discos. O primeiro deles, 2 Na Bossa, tornou-se um clássico da música brasileira e chegou a vender perto de um milhão de cópias. Nesse mesmo ano, ela assinou com a Philips e se despediu do estilo ingênuo dos discos anteriores com o álbum Samba eu canto assim, com arranjos embebidos pelo clima jazzístico do Beco das Garrafas, como o clássico Menino das Laranjas. 

Nessa época, já personificada como a Pimentinha, Elis protagonizou uma das rivalidades mais memoráveis da história da música brasileira. Uma briga que tinha na outra face o “iê-iê-iê” de Roberto Carlos e sua turma da Jovem Guarda. 

O que acontece é que Elis (e uma série de outros artistas ligados à MPB) defendia uma música que fosse efetivamente “brasileira”, isto é, ligada às tradições da cultura e dos ritmos nacionais, e que estivesse engajada na realidade social do país. Por isso, ela enxergava no som pop e internacional da Jovem Guarda, com seus carrões, garotas papo firme e gírias descoladas, um entreguismo cultural aos Estados Unidos e um convite à alienação política. 

O termômetro da intensidade dessa briga pode ser dado por uma entrevista concedida por Elis Regina no início de 1966, quando as rádios estavam dominadas pelo sucesso retumbante de Quero que vá tudo pro Inferno, hit de Roberto Carlos: 

Esse tal de iê-iê-iê é uma droga: deforma a mente da juventude. Veja as músicas que eles cantam: a maioria tem pouquíssimas notas e isso as torna fácil de cantar e de guardar. As letras não contêm qualquer mensagem. [...] Qualquer um que se disponha pode fazer música assim, comentando a última briguinha com o namorado. Isso não é sério nem é bom. Então, por que manter essa aberração?”* 

De fato, uma declaração “mais ardida que pimenta”! Depois, já em 1967, Elis Regina foi uma das principais figuras que marchou em São Paulo em uma passeata pelo "fim do imperialismo cultural no Brasil", com faixas que pediam a extinção das guitarras elétricas na música brasileira, em uma clara afronta ao som eletrizado da Jovem Guarda. 

Hoje essas manifestações podem soar radicais, exageradas ou mesmo cômicas. Mas, de certa forma, faziam sentido à época, ainda mais se levarmos em conta o contexto altamente polarizado no Brasil e no mundo naquele período. Segundo o pesquisador Marcos Napolitano, a MPB não se consolidou como um gênero musical específico, mas como uma espécie de instituição, um projeto que se ancorava em pilares ideológicos e sociológicos, para além de fatores musicais ou puramente estéticos. Ou seja, a defesa radical de Elis Regina pela MPB era na verdade uma defesa intensa e apaixonada pelos valores que ela acreditava, e pela valorização do que ela entendia, afinal, como Música Popular Brasileira. 

E se por causa disso ela acabou sendo injusta com compositores do talento de Roberto e Erasmo Carlos ou Caetano Veloso e Gilberto Gil (mentores da também eletrificada Tropicália), ela corrigiu seu engano a tempo. Em 1970, no álbum Em Pleno Verão, ela deixou de lado suas restrições por vezes limitantes e mergulhou de cabeça em arranjos cheios de sopros e guitarras produzidos por Erlon Chaves, e ancorou-se em um repertório moderno, pop, cheio de vigor e com sabor de novidade, que incluía músicas de Roberto e Erasmo (As Curvas da Estrada de Santos), Caetano (Não Tenha Medo), Gil (Fechado Pra Balanço), Jorge Ben (Bicho do Mato e Até Aí Morreu Neves), além de ter revelado, em um dueto histórico, o soul poderoso de Tim Maia na gravação de These Are The Songs. 

Este álbum simbolizou a trégua definitiva na guerra entre MPB e Jovem Guarda e apontou para um futuro ainda mais luminoso na carreira de Elis. A partir daí, ela deixou de ser associada a um gênero, uma época ou um movimento específicos, e tornou-se, para sempre, Elis Regina. Pois esse nome, por si só, passou a ser suficiente para fazer dez verões de uma só vez. 



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