terça-feira, 18 de agosto de 2020

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Samba da Bênção

Maria Bethânia é a dona do dom, instrumento das sereias. Com uma carreira repleta de momentos definitivos e definidores da nossa canção, no disco Que falta que você me faz (2005), a diva visita as músicas de Vinícius de Moraes.
O disco traz uma Bethânia de voz mais contida, porém não menos forte. Ao invés dos alongamentos vocálicos (precisos e típicos de suas interpretações), ela opta por enfatizar o verbo (a palavra cantada) de Vinícius, sentindo cada filigrana das sensações e plasmando mundos.
"Samba da benção", de Vinícius de Moraes e Baden Powell, como o título sugere, é o canto em forma de oração: é o samba cantando seu próprio passado, sua genealogia, e tentando encontrar uma definição para si.
Na interpretação de Vinícius aparece uma lista de pessoas a quem ele pede a benção pela contribuição ao samba. Bethânia suprime esta parte, dando a entender que é Vinícius (condensando todos os outros) quem a abençoa.
A importância da tristeza, a seriedade ("fazer samba não é contar piada") e a negritude no coração são alguns dos elementos recorrentes para se falar do samba. Alegrias tristes e tristezas alegres serpenteiam e alimentam o imaginário e a experiência do povo e, consequentemente, aparecem impressos no canto desse povo: "pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza", mesmo sabendo que "é melhor ser alegre que ser triste".
Sempre foi assim. O samba nasceu na Bahia, roçando o Pelourinho onde os escravos eram castigados, como resposta sincrética e esperançosa da dor: "o samba é a tristeza que balança"; é o desejo que a própria tristeza tem de um dia não ser mais triste não.
Samba é encontro: do violão com o pandeiro; do negro com o branco, da Princesa Isabel com Zumbi. E aqui, de Bethânia (cuja voz nos veio da Bahia) com Vinícius de Moraes (o branco mais preto do Brasil). O resultado destes encontros é sempre um casamento do mundo com o infinito.


***

Samba da bênção
(Vinicius de Moraes / Baden Powell)

É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração

Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não

Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não

Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não

Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

0 comentários:

LinkWithin