terça-feira, 25 de agosto de 2020

A ERA DOS FESTIVAIS: QUANDO O SINAL FECHOU (PARTE 03)


Por Tito Guedes


Depois das performances de Gilberto Gil e Caetano Veloso no festival da Record de 1967, a polarização entre MPB e Jovem Guarda no cenário da música brasileira foi quebrada com o surgimento da Tropicália. O movimento, que surgiu em plena Era dos Festivais, foi liderado pelos dois baianos e se propôs a ressignificação da MPB, introduzindo nela influências estrangeiras, guitarras e uma linguagem mais pop (como a Jovem Guarda já fazia), amparados no conceito de antropofagia cultural de Oswald de Andrade: deglutir o que vinha de fora e transformar essas referências em um produto que dialogasse com a vida brasileira. 


1968 - A Tropicália em ação 

Deu certo. Nos festivais de 1968, foi crescente o número de guitarras elétricas presentes nos arranjos. O festival da Record daquele ano, por exemplo, contou com a vitória de “São, São Paulo meu amor”, do tropicalista Tom Zé, além da performance arrebatadora de Gal Costa com a música “Divino, maravilhoso”, da grife Gil & Caetano, que se tornou emblema do período:

É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte!




Mas foi no III Festival Internacional da Canção Popular que aconteceu um dos happenings mais memoráveis do movimento tropicalista. Caetano Veloso foi rejeitado por grande parte do público, que não viu com bons olhos a radicalização da sua performance, quando apresentou a música "É proibido proibir" com figurino de plástico, cabelo comprido e uma dança em que mexia os quadris de trás pra frente. Isso tudo pareceu “desbundado” demais aos olhos da esquerda universitária. 

Na eliminatória da fase paulistana, no TUCA, irritado com as vaias da plateia à sua apresentação e com a desclassificação de Gilberto Gil pelo júri, Caetano interrompeu a música e proferiu um discurso que entrou para a história: 

“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir este ano um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada! [...]” 

Por fim, Caetano se auto-desclassificou e prometeu nunca mais participar de festivais. O áudio dessa apresentação, felizmente, foi lançado em um compacto com o apropriado título “Ambiente de festival”. 

O REBELDE CAETANO DE 1968 – Blog da Consequência
O sinal começa a se fechar

Nesse mesmo festival, o FIC de 1968, Geraldo Vandré concorreu com aquela que se tornaria sua canção mais conhecida, “Pra não dizer que não falei das flores”, uma franca canção de protesto contra a ditadura militar que logo se tornou a favorita do público. 

Os versos “Vem, vamos embora que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora não espera acontecer” arrebataram as plateias nas eliminatórias e acenderam um alerta vermelho nos quartéis. Dizem que os militares chegaram a passar aos diretores do festival a informação de que se Vandré ganhasse, seria preso imediatamente. 

O júri, portanto, acabou dando a vitória para “Sabiá”, canção de Chico Buarque e Tom Jobim defendida por Cynara e Cybele. Quando anunciaram que “Pra não dizer que não falei das flores” estava em segundo lugar, o público se revoltou e vaiou a decisão do júri. Diante dos protestos, antes de reapresentar a canção, Vandré tentou acalmar a platéia enfurecida com uma frase que se tornou mítica: “A vida não se resume em festivais.”

IMG_fic68_1_1_RC1619GA - Memórias da ditadura
Este episódio, de velada interferência censória, prenunciava o que viria a seguir. Em 13 de dezembro de 1968, foi decretado o Ato Institucional Número 5, dando início a um dos períodos de maior repressão e violência no país. 

Um ano depois, a canção vencedora do V Festival da Música Popular Brasileira da TV Record descrevia de forma velada o clima de constante medo e desconfiança que se instaurou no Brasil depois do AI-5. “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, narra um diálogo entre dois amigos que se encontram num sinal de trânsito e parecem omitir o que realmente desejam falar:

Tanto coisa que eu tinha a dizerMas eu sumi na poeira das ruasEu também tenho algo a dizerMas me foge a lembrança…



1970 - A “ameaça” da black music

Apesar de ter revelado grandes canções da MPB, como “Universo no teu corpo”, de Taiguara, “O amor é meu país”, de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza e “Feira moderna”, de Beto Guedes e Fernando Brant, a protagonista do V Festival Internacional da Canção Popular de 1970 foi a black music. 

As duas concorrentes que mais se destacaram na competição foram “BR-3” (Antônio Adolfo e Tibério Gaspar), defendida brilhantemente por Toni Tornado em performance cheia de suingue à la James Brown, e “Eu também quero mocotó”, de Jorge Ben Jor, defendida por Erlon Chaves e sua Banda Veneno. 

Em 1970, no entanto, no auge dos “anos de chumbo”, essas duas performances não foram vistas com bons olhos pelos militares, que temiam o levante de um movimento negro no Brasil, como os Panteras Negras dos Estados Unidos. Toni Tornado, apesar de grande vencedor da fase nacional, sofreu por anos com o estigma que ganhou a partir da teoria de que a música eternizada por ele, que falava da rodovia que liga Minas Gerais ao Rio de Janeiro, referia-se, na realidade, à aplicação de heroína.

Festivais da Canção: BR-3 e Tony Tornado - 1970
O caso de Erlon Chaves foi ainda mais chocante. Famoso produtor e arranjador de artistas como Elis Regina e Roberto Carlos, Erlon resolveu se lançar no FIC como um performer, com a defesa da irreverente “Eu também quero mocotó”. A música fez tanto sucesso (se tornou uma espécie de meme da época), que o maestro foi convidado a apresentá-la novamente na fase internacional do festival. 

No dia, em pleno Maracanãzinho, Erlon Chaves se apresentou acompanhado de modelos loiras que o rodeavam gritando, agarradas ao seu pescoço: “Eu também quero mocotó! Eu também quero!”. No final, trocou até um beijo com uma das modelos. O ato chocou grande parte de uma platéia branca e atenta à “moral e aos bons costumes” e os militares se irritaram. Erlon Chaves saiu do Maracanãzinho algemado e foi parar na delegacia, acusado de atentado à moral. 

Esses dois episódios, além de reforçar a disposição racista de muitos brasileiros, evidenciou que a ditadura militar foi ficando cada vez menos reticente em interferir nos festivais, que já pareciam cada vez mais subversivos. 


1972 - O sinal fechado

Dois anos depois, em 1972, por força da repressão, chegou ao fim a Era dos Festivais. Mesmo assim, o VII Festival Internacional da Canção Popular, considerado o marco final do período, proporcionou momentos especiais para a memória musical. 

Foi nesse festival que Raul Seixas deixou de ser o “produtor da CBS” e liberou o roqueiro que havia dentro dele com a apresentação antológica de “Let me sing, let me sing”. Além dele, brilharam também Sérgio Sampaio com “Eu quero é botar meu bloco na rua”. Isso sem contar com a grande vencedora da fase nacional naquele ano: “Fio Maravilha”, de Jorge Ben Jor e defendida por Maria Alcina.

Filosofia R.T.P * Dr. Paxeco (Oficial): (FOTOS) Raul Seixas - FIC 1972
Nessa ocasião, os festivais já eram palco oficial da insatisfação de artistas e jovens em relação ao regime militar, e as música ali cantadas serviam, muitas vezes, como hino de resistência. O governo sabia muito bem disso e passou a acompanhá-los mais de perto. Por isso, em 1972, ordenou que a presidente do júri, Nara Leão, fosse substituída imediatamente, já que havia dado uma entrevista em que criticava abertamente o regime. Como protesto, todo o júri se demitiu em bloco. Desesperada, a produção teve que substituir todos os jurados às pressas e o resultado foi desastroso: alguns deles nem sequer falavam português. 

Por causa disso, somado a um desgaste do formato, a Globo decidiu não realizar o FIC de 1973. Chegava ao fim a Era dos Festivais. 

Nos anos subsequentes, foram muitas as tentativas de retomar a febre dos festivais. Dentre as empreitadas que mais se destacaram, estão o MPB-80, da Rede Globo, no qual Eduardo Dusek ganhou projeção nacional com “Nostradamus”, e o Festival dos Festivais, também da Globo, em 1985, que revelou a cantora Leila Pinheiro.

Ainda assim, nenhuma das tentativas conseguiu resgatar o intenso e mítico período das competições que aconteceram entre 1965 e 1972. Hoje, nos restou o legado desse período tão fértil: dezenas de canções que se tornaram clássicos absolutos do nosso cancioneiro, uma série de ídolos e talentos revelados e a certeza de que a música popular brasileira é capaz de catalisar as mais importantes discussões do país. 

A Era dos Festivais pode ser lida hoje como o recorte de um período histórico que não deve ser esquecido. Sim, houve muita repressão, mas também houve resistência e, claro, muita música! E o bonito é que de lá pra cá, a música brasileira, por outros meios, continuou trilhando esse caminho de inquestionável importância. Afinal, a vida não se resume em festivais.

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