terça-feira, 4 de agosto de 2020

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*


Conto de areia

Basta lembrar qualquer aparição de Clara Nunes na TV - ou mesmo buscar imagens suas na internet - para chegar à conclusão de que há seres insubstituíveis. A presença física de Clara faz muita falta em tempos politicamente corretos e assustadoramente assépticos como os de hoje.
Colocando as entidades todas para dançar em audiência nacional, Clara Nunes encarnava a certeza de que o samba brasileiro tem vela e tem farofa. Ela levou, ao que tudo indica, com calculada dignidade os orixás para a TV, festejando nossa riqueza amalgâmica: "Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé".
Em Alvorecer (1974) Clara Nunes gravou "Conto de areia", de Toninho e Romildo Bastos. A canção fala dos mistérios e segredos guardados nas águas da Bahia (estação primeira da colônia Brasil). Os versos "A noite emprestou as estrelas bordadas de prata e as águas de Amaralina eram gotas de luar" desautomatizam o ouvinte e preparam-no para aquilo que será cantado.
A letra de "Conto de areia" mais parece uma rede: recupera várias filigranas de diversos mitos, contos e lendas, usando-os para tercer o conto cantado. Por exemplo, quando o sujeito diz "desfia colares de conchas pra vida passar e deixa de olhar pros veleiros" retoma a homérica tecelã Penélope, que fiava e desfiava na esperança do retorno de seu amado Ulisses.
No entanto, diferente do herói grego, o sujeito de "Conto de areia" diz: "eu já vou me embora pro reino que esconde os tesouros de minha senhora (...) adeus meu amor eu não vou mais voltar". Ou seja, ele não esconde sua escolha e predileção pelo "bem do mar".
E aqui não podemos deixar de relacionar "Conto de areia" com "É doce morrer no mar", de Dorival Caymmi e Jorge Amado. Nesta canção temos a voz da mulher "morena dos olhos molhados de mar", que chora a ausência do seu canoeiro levado para o meio das águas de Iemanjá.
Em "Conto de areia" temos um narrador que mistura, resignifica e conta os contos. Na primeira parte temos uma voz que narra distanciado das ações - "contam que toda tristeza"; enquanto na segunda parte temos a voz do homem (do canoeiro) que dá adeus ao "bem de terra" e vai perder-se encantado para o reino das águas. Ter Clara Nunes - sua voz, sua persona artística - como narradora e personagem disso é um luxo dos sentidos.


***

Conto de areia
(Toninho / Romildo Bastos)

É água no mar, é maré cheia ô
mareia ô, mareia
É água no mar

Contam que toda tristeza
Que tem na Bahia
Nasceu de uns olhos morenos
Molhados de mar

Não sei se é conto de areia
Ou se é fantasia
Que a luz da candeia alumia
Pra gente contar

Um dia morena enfeitada
De rosas e rendas
Abriu seu sorriso de moça
E pediu pra dançar

A noite emprestou as estrelas
Bordadas de prata
E as águas de Amaralina
Eram gotas de luar

Era um peito só
Cheio de promessa era só
Era um peito só cheio de promessa

É água no mar, é maré cheia ô
mareia ô, mareia
É água no mar

Quem foi que mandou
O seu amor
Se fazer de canoeiro
O vento que rola das palmas
Arrasta o veleiro
E leva pro meio das águas
de Iemanjá
E o mestre valente vagueia
Olhando pra areia sem poder chegar
Adeus, amor

Adeus, meu amor
Não me espera
Porque eu já vou me embora
Pro reino que esconde os tesouros
De minha senhora

Desfia colares de conchas
Pra vida passar
E deixa de olhar pros veleiros
Adeus meu amor eu não vou mais voltar

Foi beira mar, foi beira mar que chamou
Foi beira mar ê, foi beira




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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