terça-feira, 28 de abril de 2020

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Cara valente

A mimosa pudica é uma das chamadas "plantas sensitivas". São aquelas plantas que respondem ao toque estrangeiro fechando as folhas, como defesa natural. Este movimento é chamado de Sismonastia.
Assim como a mimosa pudica, o cara valente da canção gravada por Maria Rita (no disco Maria Rita, 2003) parece avesso ao extímulo externo, com a desculpa de se proteger e ser feliz sozinho.
O sujeito da canção, porém, observa que tudo não passa de uma máscara de alguém que, por algum motivo, não quer tocar na vida: não quer afetar, nem ser afetado. Agindo, assim, apenas como doador de sentido ao canto do sujeito de "Cara valente", de Marcelo Camelo.
O fato é que ele "desaprendeu a dirigir" a própria vida. Ou seja, ele sabia e algo interrompeu o fluxo dos acontecimentos. O cara valente (aliás, uma sutiu e terna evocação do João Valentão caymminiano) hoje, deixa sua vida ser cantada, sem ônus, pelos outros.
No jogo de bem-me-quer e mal-me-quer, o cara acreditou ser possível obter a verdade absoluta, a certeza do caminho. Negou o amor, na busca fracassada da essência: endureceu, corpo e "alma"; virou valente contra si mesmo.
Como na vida não há certezas (profundidades e superfícies se equivalem) a ser (per)seguidas, ele sofre por ter perdido o amor, além de ter investido em estradas que não deram em nada.
Ficamos (nós: ouvintes) sabendo, ou, pelo menos, confabulando, sobre isso através do canto do sujeito, ou seja, de um outro, mas que tenta validar seu canto dizendo que o que é cantado vem da fala do cara valente: "ele não é feliz, sempre diz que é do tipo cara valente". Ou seja, temos uma tradução da tradução dos sentimentos do cara.
O sujeito da canção, mudando o direcionamento de sua mensagem, em um procedimento que faz a canção ter, no mínimo, dois destinos (o ouvinte e o próprio cara valente), pede ao cara que renove a fé na dúvida: no imprevizível que dá vida à vida. E entenda que o mundo pode até ser feito de mágoas, mas a "alegria é a prova dos nove", como disse Oswald de Andrade.
Esta leitura se amplia quando ouvimos a interpretação de Maria Rita. A cantora usa a sátira prosódica - entoação provocante do riso maroto - para mover o outro do atual estado psíquico.


***

Cara valente (Marcelo Camelo)

Não, ele não vai mais dobrar
Pode até se acostumar
Ele vai viver sozinho
Desaprendeu a dividir
Foi escolher o mal me quer
Entre o amor de uma mulher
E as certezas do caminho
E ele não pode se entregar
E agora vai ter de pagar
Com o coração, olha lá
Ele não é feliz
Sempre diz
Que é do tipo cara valente
Mas veja só
A gente sabe
Esse humor é coisa de um rapaz
Que sem ter proteção
Foi se esconder atrás
Da cara de vilão
Então não faz assim rapaz
Não bota esse cartaz
A gente não cai não
Ele não é nada
Olha essa cara amarrada
É só um jeito de viver na pior
Ele não é nada
Olha essa cara amarrada
É só um jeito de viver nesse mundo de mágoas





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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