Germano Mathias
“Guarde a sandália dela,
que o samba sem ela não pode ficar,
diga também pra ela,
que a escola sem ela não vai desfilar”
GERMANO MATHIAS e SERENO, “Guarde a sandália dela”
Lá vem ele, com passo cadenciado, sapatos brancos confeccionados com couro de bezerro e roupas muito coloridas. Na cabeça, um chapéu malandreado que arremata o estilo à la sambistas tradicionais. Germano Mathias, representante do melhor samba sincopado de São Paulo, faz questão de ser identificado assim.
Nascido no bairro do Pari, em uma São Paulo em construção após o levante constitucionalista de 1932, Germano Mathias compõe a santíssima trindade do samba paulistano, lado a lado com Adoniran Barbosa e Geraldo Filme. Desde jovem, atentava para o som que os engraxates faziam batendo em suas latinhas, enquanto trabalhavam nos sapatos dos fregueses. Aprendeu a técnica e virou especialista na arte de tirar sons desses instrumentos improvisados.
O ritmista Germano era respeitado até mesmo no morro da Mangueira. Aliás, em sua produtiva carreira no campo do samba sincopado, também gravou compositores do Rio de Janeiro, como Padeirinho (“A situação do escurinho”), Zé Kéti (“Malvadeza Durão”), e Nelson Cavaquinho (“História de um valente”). Mas foi no universo do samba paulistano que ele realmente consolidou sua fama. Gravou “Minha nega na janela”, parceria sua com Doca, e “Baile do risca faca” e “Bonitona do primeiro andar”, ambas de Jorge Costa e Durum Dum Dum. “Guarde a sandália dela” é uma parceria com Sereno. Em 1978, Germano gravou um disco com Gilberto Gil intitulado Antologia do samba-choro, interpretando músicas de Geraldo Pereira, Wilson Batista e Jair Gonçalves, entre outros.
Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder em 1930, o estado de São Paulo, que até então exercia liderança nacional com a política do café-com-leite, perdeu espaço. Contrariados, os paulistas pegaram em armas contra o governo getulista. O movimento, conhecido como Constitucionalista – porque reivindicava uma nova constituição –, era contraditório: de um lado estavam as antigas oligarquias paulistas buscando voltar ao poder pelo levante; de outro, a classe média, que defendia idéias liberais. Como os paulistas não receberam o apoio prometido por outros estados, as forças militares federais sufocaram os revoltosos e dominaram o poder local. Habilmente, Getúlio Vargas usou essa vitória de modo a oferecer mais espaço aos paulistas, garantindo-lhes algumas de suas reivindicações. Estava assim cooptado o maior estado brasileiro para os 15 anos seguidos em que Getúlio ficaria no poder, até 1945.
Brincalhão até debaixo d’água, Germano Mathias, com th, como ele gosta de frisar, usa de ironia quando fala de sua voz: “A minha voz tem cinco ‘f ’, ou seja, é fina, feia, fraca, fedegosa e fuleira. Quer dizer, com todos esses ‘f ’não dá para arriscar outro gênero musical não, além do sambinha aí meio feijão-com-arroz.” Em 1999, ao lado de Osvaldinho da Cuíca, Aldo Bueno e Thobias da Vai-Vai, Germano participou do CD História do samba paulista, do selo CPC-Umes. Seis anos depois lançou o CD Tributo a Caco Velho, compositor gaúcho radicado em São Paulo por quem Germano tinha grande admiração. Segundo o próprio Germano, Caco Velho é sua principal influência.
Recentemente, a mídia redescobriu Germano Mathias. O lançamento de um filme com a história de sua vida, O catedrático do samba, produzido pelo professor Paulo Bastos Martins, abriu-lhe as portas da imprensa escrita, falada e televisiva. Para o leitor que ainda não teve o prazer de conhecê-lo, segue um pequeno trecho de uma grande entrevista que Germano concedeu:
O rádio em São Paulo
O rádio em São Paulo, inicialmente, seguiu a tônica de outras regiões do país: era elitista, apresentando música clássica, palestras e peças teatrais. Como se tratava de uma cidade povoada por imigrantes – italianos, árabes, judeus, portugueses, alemães, espanhóis e norte-americanos –, estes eram contemplados em suas necessidades culturais nas rádios Gazeta, São Paulo e Pan-Americana. O fato de não haver um público específico para o samba, já que os estrangeiros tinham laços afetivos mais estreitos com sua cultura natal, gerou uma história bem conhecida. Um industrial famoso estava lançando uma linha de sapatos populares e, convencido a anunciar o produto no rádio, depois de muita insistência dos amigos, destinou uma boa verba a um determinado programa. Ao saber que o cantor a se apresentar seria um sambista, imediatamente reclamou: “Vê lá se eu vou pagar para ouvir um negro cantar!” Manteve o investimento, mas para um tenor italiano.
No decorrer do século XX, as rádios de São Paulo, como a Record, estiveram entre as principais emissoras do país. E o mercado para a música popular brasileira se consolidou na cidade, criando uma legião de instrumentistas e compositores de samba de primeiro quilate, como o próprio Adoniran Barbosa – por sinal, descendente direto de italianos.
TACIOLI: Como era o seu relacionamento com o Adoniran Barbosa?
GERMANO: Eu não cantava o tipo de samba dele.
TACIOLI: Mas você conversava com ele? Eram amigos?
GERMANO: Conversava. Dávamo-nos bem. Nunca houve nada entre nós.
Mas os sambas dele não eram do meu gênero, eram mais Demônios da Garoa.
MAX ELUARD: E o Geraldo Filme?
GERMANO: O Geraldo Filme era bom. Cheguei a gravar um samba dele.
MAX ELUARD: Aliás, foi o primeiro samba dele gravado.
GERMANO: É, “Baiano capoeira”. Fui eu que gravei... “Tem que ser
agora/ Vamos resolver aquele velho assunto/ Não sou tatu para morrer
cavando/ nem perna de porco pra virar presunto/ Vou te fazer defunto...”
MAX ELUARD: Essa é do Geraldo Filme?
GERMANO: Em parceria com o Jorge Costa.
Geraldo Filme
“Silêncio
o sambista está dormindo
ele foi, mas foi sorrindo
a notícia chegou quando anoiteceu
Escolas, eu peço silêncio de um minuto
O Bexiga está de luto
o Apito de Pato N’Água emudeceu
partiu...”
GERALDO FILME, “Silêncio no Bexiga”
Se fôssemos comparar Geraldo Filme a um compositor carioca, teria de ser com Candeia. Não que a obra musical dos dois sambistas sejam muito semelhantes. O que há é uma identificação no posicionamento contra o preconceito social e racial a que o negro está submetido em nossa sociedade. Se Candeia cantava “Negro, acorda, é hora de acordar, não negue a raça...”, Geraldo Filme completava: “Quero ter muitos amigos, como tenho atualmente, cantar samba na avenida, nascer negro novamente...” Ambos os quilombolas buscaram valorizar a identidade dos afrodescendentes, lutando através de suas composições e da criação de grupos e escolas de samba para que os símbolos das culturas negras tivessem um real valor dentro da complexa sociedade brasileira.
Ainda há outra semelhança entre Candeia e Geraldo: os dois eram intimamente ligados às escolas de samba. Geraldo iniciou sua trajetória na Coloração do Brás, na Vai-Vai e na Unidos do Peruche, da qual foi um dos fundadores. Contudo, a que ficou definitivamente em sua história foi a Vai-Vai. O samba “Tradição”, de sua autoria, tornou-se um hino da escola (“Quem nunca viu o samba amanhecer/ vai no Bexiga pra ver/ vai no Bexiga pra ver...”) e “Silêncio no Bexiga” (gravado por Beth Carvalho no CD Beth canta o samba de São Paulo) homenageia o amigo diretor de bateria da Vai-Vai, o Pato N’Água).
Geraldo nasceu no interior do estado de São Paulo, e foi nas rodas de samba e de tiririca (capoeira) improvisadas por carregadores no Largo da Banana, na Barra Funda, que achou sua verdadeira escola de música. Sua obra sofre influência do samba rural paulista, expressivo nas composições “Batuque de Pirapora” e “Tradições e festas de Pirapora”. De vozeirão bem timbrado, gravou seu primeiro LP somente aos 52 anos de idade, em 1980, lançado pela Eldorado com o título Geraldo Filme.
Da amizade com o teatrólogo Plínio Marcos surgiu o trabalho Balbina de Iansã e o musical de grande sucesso Pagodeiros da Paulicéia. Geraldo, que foi entregador de marmitas na Barra Funda e cuja mãe fundou o primeiro cordão carnavalesco formado só por mulheres negras, era agora um dos principais sambistas de São Paulo.
Geraldão da Barra Funda, como era chamado, felizmente não se deixou inibir pela estrutura social perversa que descreveu em seu belo “Batuque de Pirapora”:
“Mamãe fez uma promessa/ para me vestir de anjo/ me vestiu de azul-celeste/na cabeça um arranjo/ ouviu-se a voz do festeiro/ no meio da multidão/ Menino preto não sai/ aqui nessa procissão...” Hoje, Geraldo já é um dos líderes da procissão.
Paulo Vanzolini
“Chorei, não procurei esconder
todos viram, fingiram
pena de mim não precisava
ali onde eu chorei
qualquer um chorava
dar a volta por cima que eu dei
quero ver quem dava”
PAULO VANZOLINI, “Volta por cima”
Não há melhor representante da boemia paulistana do que o compositor e cientista Paulo Vanzolini. Por mais incrível que isso possa parecer, ele conciliava as noites de fumaça e bebida com a rotina de professor, pesquisador e zoólogo famoso.
Paulo Vanzolini é autor do clássico “Ronda”, gravado pioneiramente por Bola Sete com os renomados músicos Garoto e Zé Menezes nas cordas, Chiquinho do Acordeom e Abel Ferreira no clarinete. Amúsica expressa a temática da solidão, recorrente em suas composições: “De noite eu rondo a cidade/ a te procurar sem encontrar/ No meio de olhares espio em todos os bares/ você não está...” A obra do zoólogo-compositor retrata as contradições da metrópole. São Paulo, nos anos 1960, já era um estado que reunia parte significativa do PIB brasileiro. No meio da multidão de migrantes, imigrantes e paulistanos, Vanzolini usava a mesma lupa de suas pesquisas para observar as peculiaridades do dia-a-dia urbano: uma briga de bar, a habilidade de um batedor de carteira, a solidão de uma mulher humilhada e mesmo, em “Capoeira do Arnaldo”, os fortes laços que unem campo e cidade.
Em 1967, Paulo Vanzolini lança o seu primeiro LP. A história desse disco é curiosa. Foi o primeiro trabalho feito pelo selo Marcus Pereira. A música “Volta por cima” estava fazendo muito sucesso. Só que o já lendário Vanzolini ainda não tinha disco autoral e andava irritado com as gravadoras por ter sido preterido pelo americano Ray Charles na escolha da confecção de um LP. Aos poucos, Marcus Pereira ganhou a confiança do compositor, que acabou cedendo ao lançamento do LP Onze sambas e uma capoeira, com arranjos de Toquinho e Portinho e participação de Chico Buarque, Adauto Santos e Luiz Carlos Paraná, entre outros. As músicas eram todas de Vanzolini: “Praça Clovis”, “Samba erudito”, “Chorava no meio da rua”...
Vanzolini não era um compositor de muitos parceiros. Tem músicas com Toquinho (“Noite longa”), Elton Medeiros (“Dançando na chuva”) e Paulinho Nogueira (“Valsa das três manhãs” e “Boneca”). Só mesmo a pena elegante do crítico da cultura Antônio Cândido para sintetizar a obra de Paulo Vanzolini: “Viva pois esse Paulo poeta compositor cientista boêmio conversador que soube fixar tão bem pela arte momentos significativos da vida. O interessante é que como autor de letra e música ele é de certo modo o oposto da loquacidade, porque não espalha, concentra; não esbanja, economiza – trabalhando sempre com o mínimo para obter o máximo...”
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