terça-feira, 21 de abril de 2020

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Um índio

Há quem diga que Doces Bárbaros (1976) foi o último suspiro da Tropicália, enquanto movimento. O fato é que, a turma formada por Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa e Gilberto Gil implodiu a questão da identidade nacional ao incorporar as imagens míticas de cunho nacionalista do brasileiro.
A canção "Um índio", de Caetano Veloso, cantada com o vigor da intérprete de "Cárcara", com a retomada do regionalismo como matéria para se pensar o Brasil, por dentro, em contraste e união com uma melodia algo telúrica amplia os elementos da estética romântica e utópica proposta pelo doces bárbaros.
A sequência de assonâncias, proliferação de significantes, com o som da vogal "i" - Ali, Peri, Lee, Ghandi - fortalece o significado que o texto, sozinho, não deixa perceber: a força do que estar por vir: do índio que virá.
Este índio messiânico evoca a ideia da pureza original e física, mas condensa também em si as genealogias das religiões primordiais: indígenas, Taoísmo, Islamismo, Candomblé e Hinduísmo. Tamanha potência de vida é larva que cobrirá tudo e expurgará todos os males, exatamente porque não negará o humano demasiado humano, pelo contrário.
Importa lembrar, além desta arrebatadora interpretação da abelha rainha, a versão que um indefectível Ney Matogrosso deu à canção, para um clipe exibido na TV: Ney se monta, com luvas de longas unhas prateadas e uma exuberante máscara futurista, incorporando (recebendo: sendo o cavalo) o índio revolucionário (doce bárbaro) que diz SIM à vida; que guarda o óbvio segredo da felicidade.
Não é fácil lidar com o óbvio. Muito mais complexo é trabalha-lo poeticamente. O sujeito da canção mostra isso ao apresentar uma híbrida proliferação de signos que circulam a obviedade, mas não a entrega: deixa ao ouvinte a conclusão final. Ou melhor, espera que o índio pouse no coração do hemisfério sul, na América colonizada, para que a epifania aconteça.


***

Um índio
(Caetano Veloso)

Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá

Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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