sábado, 11 de abril de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Dorival Caymmi

“O mar
quando quebra na praia
é bonito... é bonito...”
DORIVAL CAYMMI, “O mar”


A relação do baiano Dorival Caymmi com a música teve início quando, ainda menino, cantava no coro da igreja com voz de baixo-cantante. Esse pontapé inicial foi o estímulo necessário para a construção, já em terras cariocas, entre reis e rainhas do rádio, de um estilo inconfundível, quase sem seguidores na música popular brasileira.
No Rio, em 1938, depois de pegar num Ita (navios que faziam transporte de passageiros do norte do país em direção ao sul) em busca de melhores oportunidades de emprego, Dorival Caymmi chegou a pensar em ser jornalista e ilustrador. No entanto, para felicidade de seu amigo Jorge Amado, acabou sendo cooptado pelo mar de melodias e poesias que circulava em seu rico processo de criação.
A obra de Caymmi é equilibrada pela qualidade: melodia e letra apresentam um grande poder de sintetizar o simples, eternizar o regional, declarar em música as tradições de sua amada Bahia. O mar, Itapoã, as festas do Bonfim e da Conceição da Praia, os fortes em ruínas, tudo sobrevive em Caymmi, que cresceu ouvindo histórias nas praias da Bahia, junto aos pescadores, convivendo com o drama das mulheres que esperam seus maridos voltarem (ou não) em saveiros ou jangadas.

Alguém já disse que a diferença entre Billie Holiday e Ella Fitzgerald, as divas norte-americanas do jazz, é que na interpretação de Billie, quando se canta um desamor, um caso acabado, quem ouve imagina as brigas, as malas arrumadas e o fim... Assim é Caymmi. Em suas músicas que falam do mar – de seus aspectos trágicos, alegres, monótonos –, viajamos com ele no “Ita no norte pra vir pro Rio morar”, experimentamos a tragédia diária de homens e mulheres dos cais da Bahia (“Deram com o corpo de Pedro/ jogado na praia/ roído de peixe/ sem barco, sem nada/ num canto bem longe/ lá no arraiá...”), participamos da labuta dos pescadores (“Minha jangada vai sair pro mar/ vou trabalhar meu bem querer/ Se Deus quiser quando eu voltar do mar/ um peixe bom eu vou trazer/ Meus companheiros também vão voltar/ e a Deus do céu vamos agradecer...”) e da comunhão da tradição afro com os perigos do mar (“Nas ondas verdes do mar, meu bem/ ele foi se afogar/ Fez sua cama de noivo/ no colo de Iemanjá...” – música feita com inspiração no romance Mar morto, de Jorge Amado).
Depois de um rápido trabalho como desenhista na revista O Cruzeiro, Caymmi estreou na Rádio Transmissora com o samba “O que é que a baiana tem?”. Conhecido nacionalmente a partir do êxito da composição, o poeta da Bahia, de voz aveludada e afinada, passou a construir suas músicas com influência mais urbana. Alguns exemplos desse movimento são “Marina” (e como Caymmi cantou as mulheres! “Doralice”, “Dora”, “Rosa Morena”...), “Só louco”, “Sábado em Copacabana”, “Adeus” e “Nunca mais”, entre outras. Já em “Samba da minha terra”, lançado pelo Bando da Lua em 1940 e regravado em 1960 por João Gilberto, Caymmi traça definitivamente o perfil daquele que não gosta de samba: “é ruim da cabeça ou doente do pé”. 


A voz no cinema

A música popular, particularmente o samba, teve na telona um espaço privilegiado de divulgação. O filme Coisas nossas, de 1931, com música de Noel Rosa, foi nosso primeiro musical, realizado pelo americano Wallace Downey. O próprio Noel chegou a se opor à novidade combatendo a imitação de Hollywood: “O cinema falado/ é o grande culpado/ da transformação/ dessa gente que sente/ que um barracão/ prende mais que o xadrez/ Lá no morro, se eu fizer uma falseta/ a Risoleta desiste logo do francês e do inglês.../ Mais tarde o malandro deixou de sambar/ dando pinote/ na gafieira dançando o fox-trot...” Mas, com o tempo, as composições, nas vozes dos cantores e cantoras da época, foram se tornando o foco central dos filmes. Dorival Caymmi passou a ser conhecido do grande público pelo musical Banana da terra. Essa fama, porém, deve-se em muito a Ary Barroso, que havia sido convidado para incluir algumas composições suas no filme (“Na Baixa do Sapateiro” era uma delas). Isso se deu em 1938. Participavam das filmagens as irmãs Miranda, Carmen e Aurora, as irmãs Batista, Dircinha e Linda, Oscarito, Carlos Galhardo, Lauro Borges, Orlando Silva e Almirante. Tudo corria na maior tranqüilidade quando Carmen Miranda, já vestida de baiana, e toda a produção do filme receberam a notícia de que Ary Barroso queria a quantia de 10 contos de réis para permitir o uso de suas músicas.
Achando um despropósito, os produtores resolveram chamar um moço baiano, ainda desconhecido, mas autor de pérolas como “O que é que a baiana tem?”, para participar da trilha sonora. Foi assim que Caymmi ficou conhecido como compositor e que Carmen Miranda foi convidada pelo empresário Lee Schubert para ir trabalhar nos EUA.


Dorival tornou-se um bem precioso para a cultura brasileira. Continuou compondo suas pérolas como “Oração da Mãe Menininha”, em homenagem aos 50 anos da ialorixá Menininha do Gantois, e “Modinha para Gabriela”, trilha sonora de novela da Globo. Esse é Caymmi, baiano, poeta, compositor, violeiro e pintor.


Assis Valente

Baiano como Dorival Caymmi, Assis Valente foi o compositor predileto da cantora Carmen Miranda. Visto por alguns críticos, a exemplo de Tárik de Souza, como um compositor pré-tropicalista, Assis emplacou sucessos nas vozes de Francisco Alves, Aracy Cortes, Bando da Lua, Anjos do Inferno, Sílvio Caldas e Carlos Galhardo. São de sua autoria os requintados sambas “Camisa listrada”, “O mundo não se acabou”, “Fez bobagem” e a marcha natalina “Boas Festas”. Veja o clima tropicalista de “Brasil pandeiro”: “Chegou a hora dessa gente bronzeada/ mostrar seu valor/ Eu fui à Penha/ e pedi à padroeira para me ajudar/ Salve o morro do Vintém/ pendura a saia/ eu quero ver/ Eu quero ver o Tio Sam/ tocar pandeiro/ para o mundo sambar/ O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada/ anda dizendo que o molho da baiana melhorou seus pratos/ vai entrar no cuscuz/ acarajé e abará/ A Casa Branca/ já dançou a batucada/ com ioiô e iaiá...”




Adoniran Barbosa

“Não posso ficar
nem mais um minuto com você
sinto muito amor, mas não pode ser
moro em Jaçanã
se eu perder esse trem
que sai agora às onze horas
só amanhã de manhã”
ADONIRAN BARBOSA, “Trem das onze”


Certa vez o poeta Vinicius de Moraes, um dos grandes nomes do movimento bossa nova, afirmou categoricamente que São Paulo era o túmulo do samba. Com certeza o poetinha errou na dose do comentário, já que acabou por se tornar parceiro de um sambista paulista que figura tranqiilamente entre os grandes nomes do gênero: Adoniran Barbosa.
Talvez o sucesso da parceria em “Bom dia, tristeza” tenha redimido por completo a opinião de Vinicius, que viu outras jóias musicais de Adoniran alçarem a celebridade nacional. “Trem das onze”, “Samba do Ernesto” e “Saudosa maloca” são cantados em todos os recantos deste país.
Se Adoniran começou sua carreira de compositor influenciado pelo samba carioca, sobretudo pela monumental obra de Noel Rosa, aos poucos foi criando um caminho próprio, incorporando em suas letras e melodias o seu jeito de olhar as classes simples da cidade de São Paulo, sempre presentes em suas músicas cômico-dramáticas.

As transformações urbanas e a complexidade social de São Paulo fizeram surgir, nos anos 1920 e 1930, o personagem urbano do lúmpen – trabalhador sem consciência de classe, residente em malocas (casas pobres, cortiços) e com o linguajar caipira-ítalo-paulistano. Foi esse personagem que Adoniran retratou como ninguém em suas participações como ator nos programas radiofônicos e, sobretudo, em suas músicas.
Adoniran percebia as mudanças na cidade e particularmente a perda de memória coletiva dos antigos espaços de sociabilidade, substituídos pelas modernas construções. Como um cronista privilegiado, registrou também o linguajar do paulistano menos favorecido.


Adoniran e seus personagens

Adoniran representou inúmeros personagens como radioator: Barbosinha Mal-educado da Silva, Zé Cunversa e Charutinho são alguns deles. Geralmente criados por Oswaldo Molles, fizeram grande sucesso no rádio e até na televisão. Surgido em 1955, o programa História das malocas tinha como cenário a favela fictícia do morro do Piolho, junto ao Centro de São
Paulo. O programa retratava com humor as camadas simples da sociedade, seu jeito de falar, seus costumes, suas mazelas diárias. Adoniran fazia o hilariante personagem Charutinho, um negro magrinho avesso ao trabalho.
Ao levar a favela e o morro para os refletores da sociedade, História das malocas influenciou outras produções do período: Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, e Pedro Mico, de Antônio Callado, por exemplo. Adoniran, sempre brincando com o lado dramático da realidade, dizia que “a maloca é tão pequena que a gente dorme lá dentro e tem que vir puxar o ronco aqui fora... não cabe os dois”.


A história da música “Saudosa maloca” simboliza o olhar do cronista. Saindo de casa com seu cachorro de estimação, Peteleco, Adoniran encontrou Mato Grosso, amigo de bate-papo. Apavoradíssimo, Mato Grosso relatou que o prédio onde morava seria demolido. Voltando para casa condoído com a sorte de seu amigo e dos moradores daquela maloca, Adoniran fez uma de suas mais agudas críticas às mudanças por que passava a capital financeira do país: “Se o sinhô não tá lembrado/ dá licença de contá/ que aqui onde agora está/ esse edifiço arto/ era uma casa véia/ um palacete assobradado”.
Os resíduos da linguagem caipira-ítalo-urbana que se estava evaporando nas janelas cinzentas da cidade moderna – “alembrá”, “home”, “edifiço” – viraram símbolos da obra de Adoniran Barbosa. Ele tinha plena consciência de que escrevia suas músicas fora das normas gramaticais. Entretanto, defendia com unhas e dentes o direito de se expressar como o povo falava.
Sua forma de cantar o povo que, como ele, tinha pouca instrução, batalhava na vida e era descendente de europeus, vivendo em bairros como o Bexiga, é expressa também no samba “Conselho de mulher”, em que Adoniran fala do ritmo acelerado da cidade-progresso: “Progrécio, progrécio/ eu sempre escuitei falar/ que o progrécio vem do trabalho/ então amanhã cedo nóis vai trabaiá...” As referências à cidade na obra de Adoniran são frequentes. Ele viveu intensamente a geografia de São Paulo. A maloca poderia ser localizada na rua Aurora, Guaianazes e imediações; o Arnesto mora no Brás, no morro do Piolho ou da Casa Verde; pode-se ir a um samba no Bexiga, passar no viaduto Santa Ifigênia, pegar o trem do Jaçanã ou ir a Vila Esperança... 
Se São Paulo está em toda a sua obra, está ali também, e sobretudo, o retrato da condição humana, o elo entre cariocas, baianos, mineiros, paulistas, pernambucanos e gaúchos no roteiro musical traçado pelo cidadão Adoniran Barbosa em sua eternizada obra.






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