quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

UM PEDAÇO DA MEMÓRIA MUSICAL DE 1968, O ANO DO AI-5

Por Abílio Neto



A turma de Bolsonaro, incluindo seus três filhos problemáticos, sente saudade do AI-5. Até o Paulo Guedes já o mencionou como remédio para conter o povo na rua, mas como todo frouxo deu o dito pelo não dito. Há vários livros sobre 1968, porém o principal é o de Zuenir Ventura: ‘1968 o ano que nunca terminou’. Desde a morte do estudante Edson Luís em 28 de março no Restaurante Calabouço que as coisas começaram a engrossar para a ditadura. Em maio, protestos de estudantes em Paris e no Rio de Janeiro. Conforme Ventura lembra em seu livro, se as mobilizações francesas não foram determinantes para o ano brasileiro, Costa e Silva, patético como o general Augusto Heleno, prometia: ‘Enquanto eu estiver aqui, não permitirei que o Rio se transforme em uma nova Paris’. A declaração do presidente militar foi em 12 de junho e passada apenas uma semana, no dia 19, quarta-feira, deu-se o início dos acontecimentos que levaram até a sexta-feira sangrenta, no dia 21 de junho, que teve saldo de cinco mortos. 

É bom lembrar que a agitação não aconteceu somente no RJ e na França: 1968 foi um ano que marcou a história mundial em todos os seus aspectos, pois nesse ano aconteceu a virada na Guerra do Vietnã para o lado comunista, a breve Primavera de Praga, o assassinato de Martin Luther King e Robert Kennedy, o surgimento da Tropicália e o 21º Festival de Cinema de Cannes, na Riviera francesa, começou e não terminou, porém o mundo conheceu a beleza da baiana Martha Vasconcelos, coroada Miss Universo em julho. 

A grande final do FIC de 1968, realizada em 29 de setembro, deu um sacolejado nas forças bisonhas que nos governavam: Maracanãzinho cantando de pé com Vandré sua canção PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES e depois vaiando estrepitosamente SABIÁ, de Chico Buarque e Tom Jobim, a 1ª colocada. Ainda em 1968, após a edição do AI-5, Geraldo Vandré entrou para a clandestinidade no Brasil (para não ser morto), fugindo do país em fevereiro de 1969. 

Tempos difíceis eram aqueles. 13/12/1968 (edição do AI-5) é uma data adorada pelos bandos bolsonaristas. Viver só não era complicado para quem era conformado e não bagunçava o coreto dos milicos. Assim, de maneira covarde, dava-se para viver razoavelmente bem porque há quem ache que liberdade é um bem negociável. Do mesmo modo que, em 2019, quem fizer oposição a esse governo autoritário, filhote daquele outro, deve ser visto como inimigo da pátria. Aprendemos isso em 1968 e 51 anos depois (exatamente neste 13 de dezembro) esse passado veio à lembrança com esse presidente caneta-azul, adorador de miliciano e torturador. Os presidentes militares aplaudiam os esquadrões da morte nas caladas da noite. Bolsonaro e seus filhos condecoram milicianos em plena luz do dia. Isso significa ordem e progresso de um jeito bem brasileiro! 

Em que pese o sofrimento brasileiro, 1968 deve ser lembrado como o ano em que o saudoso maestro e compositor francês Paul Mauriat lançou com sua grande orquestra, no Brasil e no mundo, um LP sensacional que trazia a canção instrumental LOVE IS BLUE. A música havia surgido no Festival Eurovision de 1967, representando Luxemburgo, com o título original em francês, L’AMOUR EST BLEU, melodia de André Popp e letra de Pierre Cour, defendida pela cantora Vicky. 

Se o maestro Mauriat já era tido pela crítica musical brasileira como cafona, imagine a letra que Geraldo Figueiredo fez para essa música e deu para Clara Nunes gravar, também naquele ano. É fato, Clara Nunes fez sua estreia no disco não como sambista, mas como cantora cafona. Depois esse termo evoluiu para brega. E ‘o amor é azul’ se fosse concebida nos anos 90, talvez fosse entendida como uma homenagem ao Viagra. O comprido azul surgiu exatamente 30 anos depois, mais precisamente em 27/03/1998. 

E no mesmo 1968, Lafayette (o órgão vital da Jovem Guarda), aquele músico famoso da zona norte do Rio de Janeiro, nascido em 1943, a regravou em ritmo de balada com seu Hammond. Essa gravação me comove bastante porque no tempo da minha juventude, dançava-se de rosto colado. No final daquele ano, enquanto chovia cassações de políticos, Camarão aproveitou um convite de Luiz Gonzaga e fez a conversão de ‘L’amour est bleu’ em música para forró e a gravou na RCA, que fez um sucesso danado no São João de Caruaru e Campina Grande de 1969. A bandinha dele tinha como ponto forte sua sanfona irresistível. 

Em 1968, Luiz Gonzaga gravou um grande disco no qual trouxe a pérola quase desconhecida O ANDARILHO, de Orlando Silveira e Dalton Vogeler, que tinha cara de música de protesto, mas assim não foi entendida pela tesoura da Censura. Melhor para ele e para nós! Ruim mesmo para nós foi a gravação de Gonzaga, em compacto, para a música de Vandré PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES, também de 1968, ter que esperar até 1980 para ser lançada no início do crepúsculo do regime militar (período do general Figueiredo). 

Registro que como apreciador de música, todas as gravações aqui citadas eu as considero sublimes. Não ligo muito para crítico de música porque este não serve para muita coisa: não impede o artista ruim de fazer sucesso e também não ajuda o bom artista a se consagrar. É uma função amaldiçoada. O crítico é agourento e triste como um urubu. Digo isso porque o maestro francês, falecido em 2006, aos 81 anos de idade, era muito bom. Fanzaço da música brasileira, cada vez que vinha ao Brasil, gravava um disco somente com músicas de nossos autores. 

Paul Mauriat amava Alcione que surgiu no disco em 1972 e depois ganhou o apelido de Marrom. Pois bem, o francês achava que ela era um sabiá. Em 1978, o maestro desembarcou no Brasil trazendo a melodia de um samba que seria dedicado a essa notória sambista. Ganhou letra de Totonho e Paulinho Resende e o nome SABIÁ MARROM. O LP foi chamado O SAMBA RARO DE ALCIONE e contou com o auxílio luxuoso dos músicos de Mauriat, um dos melhores discos da década de 70. E olhem que em termos musicais tal década foi o topo, em nada lembrando esse declínio qualitativo vergonhoso que vivemos hoje. Sabiá Marrom e as gravações citadas de Luiz Gonzaga e Camarão podem ser encontradas facilmente no YouTube. 

Saudade desse maestro francês que nos deixou tanta coisa bonita gravada, de Camarão, que partiu num trem para o além em 2015 e tocava um órgão como Lafayette no seu conjunto de baile chamado ‘Los Marines’, lá em Caruaru e arredores. Fica registrado meu enorme desejo de melhora para Lafayette que sofre de insuficiência renal crônica. Saudade também dos outros músicos e intérpretes que também gravaram LOVE IS BLUE e da voz de Alcione que apareceu no cenário artístico em 1968, cantando nos bares e boates de Ipanema, mas que pelo peso dos anos, já não consegue ser nem uma sombra daquela que se ouvia no tempo da SABIÁ MARROM. 

Se 1968 foi um ano de rebeldia pelo mundo, a sua memória musical é feita de música de protesto de artista de esquerda, como Vandré, mas também de música para ouvir dançando agarradinho, sambando ou amando como essa linda L’AMOUR EST BLEU. Como o amor sempre faz bem, o músico francês André Popp, autor da famosa melodia, faleceu em 10/05/2014, aos 90 anos. Dizem que os jovens de hoje fazem amor ouvindo sertanejo, funk ou qualquer coisa. Se for assim, existe alguma vantagem em ser velho. 

Comparem apenas as cinco músicas mais tocadas daquele ano com os sucessos atuais e vejam quanta diferença: 

1º) Paul Mauriat e orquestra em Love is Blue 
2º) Wilson Simonal em Sá Marina 
3º) Gal Costa e Caetano Veloso em Baby 
4º) Marcos Valle e Milton Nascimento em Viola Enluarada 
5º) The Beatles em Hey Jude. 

Vale ressaltar que a música de Vandré ‘Pra Não Dizer que Não Falei das Flores’ foi apenas a 22ª colocada no ranking porque foi objeto da Censura Federal e proibida de tocar nas emissoras de rádio. 


Bom início de ano para todos. E só o amor para se contrapor ao ódio trazido por Bolsonaro! Em 12 de janeiro de 2018, ele disse que usou as verbas do auxílio-moradia (tinha casa em Brasília) para 'comer gente'. É duro ter um presidente antropófago ou papa-gente em pleno século XXI, mas pelo seu costumeiro azedume, eu não acredito nisso. O seu semblante não carrega a felicidade de quem come ou de quem ama.

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