40 anos depois de lançado este álbum é prova contundente de que São Paulo não pode ser considerado o túmulo do samba
Por Luiz Américo Lisboa Junior
Geraldo Filme (1980)
Escrevo esta pequena matéria no aniversário de São Paulo e por coincidência, talvez não, o tema abordado é sobre um dos grandes músicos dessa que indiscutilvelmente é a mais plural de nossas metrópoles. A cidade locomotiva do Brasil brilha intensamente e transpira uma cultura diversificada devido aos grandes imigrantes que a adotaram e dos migrantes brasileiros que levaram para ela a nossa diversidade. Contudo, mesmo com toda sua heterogeneidade São Paulo tem uma cultura própria que a identifica vinda de sua origem caipira mas que agregou também a nossa negritude e dela soube tirar proveito, principalmente no samba esse gênero musical que para muitos so tem representatividade no Rio de Janeiro. É claro que a cidade maravilhosa, não sei se tão maravilhosa ainda, é o maior celeiro de sambistas pátrios e a sua tradição nesse aspecto pode ser considerada insuperável, porém, apesar de estabelecer-se com uma forte identidade carioca ele na realidade incorpora de tal forma o espírito de nossa gente que passa a ser patrimônio nacional sem limites de fronteira.
Dito isso podemos então ouvir samba em qualquer recanto de nosso imenso país percebendo que a cada lugar em que ele é executado traz consigo um pouco das tradições locais e identificado-o pelas maneira como é executado. Pensando nisso foi que me veio à lembrança que uma das mais infelizes denominações dadas a São Paulo é o fato dela ter sido chamada de tumulo do samba, eu já falei sobre isso antes, mas nunca é demais relembrar que trata-se de uma inverdade absoluta mas que por algum motivo acabou se tornando quase que um consenso. O fato é que o estigma não pegou nem pegaria jamais, pois uma terra que pariu Noite Ilustrada, Germano Mathias, Adoniram Barbosa, Demônios da Garoa e Geraldo Filme, apenas para citar alguns mais conhecidos ja que a lista é imensa, merece ser louvada como um dos berços mais distintos do samba nacional.
Sobre Geraldo Filme é importante lembrar que mesmo não sendo uma figura largamente conhecida nacionalmente seu talento de compositor o eleva a um dos patamares mais altos da hierarquia do samba brasileiro. Nascido na cidade paulista de São João da Boa Vista em 1928, ao cinco anos mudou-se com a família para a capital e como a maioria de nossa população era um garoto e jovem pobre que tirava seu sustento como entregador de marmitas, mas se a pobreza era um problema que tinha de enfrentar, esta tinha sua compensação com a capacidade de criar belos sambas e tornar-se ainda muito cedo um conhecido e respeitado compositor. Foi um dos fundadores do cordão carnavalesco Paulistano da Glória, mas tarde transformado em escola de samba e iniciou sua carreira trabalhando nas escolas de samba Coloração do Brás e Vai Vai, sendo que nesta última chegou a diretor de carnaval e campeão com o samba enredo de sua autoria Solano, vento forte africano, composto em homenagem ao folclorista Solano Trindade, é também autor dos sambas Vai no Bexiga pra ver, que se tornou uma espécie de hino da Vai Vai e Silencio no Bexiga, feito em homenagem a Pato N’água, famoso diretor de bateria da escola.
Incorporando toda a essência de sua negritude Geraldo Filme tornou-se uma referencia e uma liderança na comunidade negra de São Paulo, denunciando injustiças sociais além de lutar pela afirmação da cultura negra na sociedade paulista, sua obra é fundamental para a compreensão da formação e da dificuldade vivenciada pelos afrodescendentes paulistas, bem como a sua relação com a cidade que crescia e se transformava velozmente. Defensor das tradições culturais de seu povo trouxe para o carnaval de São Paulo todo o brilho do samba consolidando-o como uma das maiores expressões musicais da terra da garoa afirmando sua identidade e incorporando-o como elemento hegemônico entre as diversas manifestações que se integram no cenário plural da maior cidade brasileira. A ele o carnaval da grande metrópole deve o seu desenvolvimento e afirmação como manifestação popular a partir da segunda metade do século vinte. Em 1980 aos 52 anos Geraldo Filme gravou seu único disco na gravadora Eldorado interptetando seus maiores sucessos, trata-se de um trabalho que revela a mais pura raiz do samba urbano paulista onde se percebe o seu enorme talento de compositor, poeta e intérprete. Decididamente é um disco fundamental porque demonstra o espírito negro da maior de nossas cidades através de um corolário de imagens que definem todo o engajamento do artista pela luta da afirmação de seus irmãos de cor. O repertório é formado por pérolas como, A morte de Chico Preto, Mulher de malandro, Eu vou pra lá, Garoto de pobre, História da capoeira, São Paulo menino grande, Vai cuidar de sua vida, Vamos balançar, além das citadas Vai no Bexiga pra ver e Silencio no Bexiga, mais Tristeza do sambista, a única de sua não autoria, composta por Osvaldo Arouche e Walter Pinho.
Finalizando o disco temos Reencarnação em que ele com todo seu talento de poeta resume de modo brilhante a sua filosofia de vida:
Eu quero ser sambista
Ao renascer de novo
Pra cantar a alegria
E desventura de meu povo
Quero ter muitos amigos
Como tenho atualmente
Cantar samba na avenida
E nascer negro novamente.
Geraldo filme renasceu para a eternidade em 5 de janeiro de 1995 e certamente continua inspirando a luta e a dignificação dos negros em todo o país principalmente em sua terra, São Paulo, cuja tradição afro teve nele um de seus mais ilustres filhos e divulgadores. Axé!
Itabuna, 25 de janeiro de 2006.
MÚSICAS:
01) Vai no Bexiga pra ver (Geraldo Filme)
02) A morte de Chico Preto (Geraldo Filme)
03) Mulher de malandro (Geraldo Filme)
04) Tristeza do sambista (Oswaldo Arouche/Walter Pinho)
05) Eu vou pra lá (Geraldo Filme)
06) Garoto de pobre (Geraldo Filme)
07) Silencio no Bexiga (Geraldo Filme)
08) História da capoeira (Geraldo Filme)
09) São Paulo menino grande (Geraldo Filme)
10) Vai cuidar de sua vida (Geraldo Filme)
11) Vamos balançar (Geraldo Filme)
12) Reencarnação (Geraldo Filme)
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