Por Leonardo Davino*
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020
LENDO A CANÇÃO
O sal da terra
Não é mais nenhum segredo o fato de que tratamos muito mal o nosso planeta. A sustentabilidade nunca foi tão necessária e urgente. Óbvio, há muita gente fazendo uso do "discurso verde" para se promover e tal, mas verdade é que as consequências climáticas já se fazem presentes em nosso dia-a-dia.
Lançada em 1981, no disco Contos da lua vaga, a canção "O sal da terra", de Beto Guedes, com sua mensagem de rápido entendimento, alerta para isso: já passa da hora de recriar o paraíso. Hino ecológico, a canção mostra que o sal da terra não é outro senão nós mesmos: os indivíduos. Somos os responsáveis por darmos o ponto certo às ofertas da terra.
Os versos ecológicos e de desejo aglutinador não deixam dúvidas de que é através do respeito às forças que sustentam a vida (o amor, o tempo, a felicidade) que se conseguirá banir a opressão. Sem pieguices, e sem alarmes, o ouvinte é convidado a construir a vida nova.
A certa altura, a canção remete, pela reminiscência, o ouvinte aos versos de "Felicidade", de Antonio Almeida e João De Barro. Afinal, "Para que tanta ambição, tanta vaidade? Procurar uma estrela perdida. Quase sempre o que nos dá felicidade são as coisas mais simples da vida".
Há, de fato, uma crítica velada às conquistas da modernidade (da industrialização): à melhoria da vida material em detrimento da vida espiritual, interior: da paz do indivíduo consigo mesmo. Nunca como antes nos sentimos tão sozinhos, desamparados e carentes.
Enfim, "O sal da terra" fala sobre o modo simples de viver e deixar o tempo seguir seu curso de vida e morte: hoje, há um desespero na manutenção a quaisquer custos da vida física; munimo-nos dos diversos dispositivos de segurança e proteção, enquanto o sujeito da canção quer viver mais duzentos anos, como mensagem, como canto, como vida mais real.
Diante dos apelos diários, a mudança de perspectiva é difícil mas, com "um mais um" sendo mais que dois, de repente a gente consegue, como o herói grego Héracles, ganhar as maçãs de ouro da imortalidade; ou, ao menos, morder a maçã da árvore do conhecimento.
***
O sal da terra
(Beto Guedes / Ronaldo Bastos)
Anda, quero te dizer nenhum segredo
Falo nesse chão da nossa casa
Vem que tá na hora de arrumar
Tempo, quero viver mais duzentos anos
Quero não ferir meu semelhante
Nem por isso quero me ferir
Vamos precisar de todo mundo
Pra banir do mundo a opressão
Para construir a vida nova
Vamos precisar de muito amor
A felicidade mora ao lado
E quem não é tolo pode ver
A paz na Terra, amor
O pé na terra
A paz na Terra, amor
O sal da Terra
És o mais bonito dos planetas
Tão te maltratando por dinheiro
Tu que é a nave nossa irmã
Canta, leva tua vida em harmonia
E nos alimenta com seus frutos
Tu que é do homem a maçã
Vamos precisar de todo mundo
Um mais um é sempre mais que dois
Pra melhor juntar as nossas forças
É só repartir melhor o pão
Recriar o paraíso agora
Para merecer quem vem depois
Deixa nascer o amor
Deixa fluir o amor
Deixa crescer o amor
Deixa viver o amor
(O sal da terra)
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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