sábado, 22 de fevereiro de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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• CAPÍTULO2•
A ERA DA VOZ



Ela: “Nos lindos tempos de outrora
Desde a noite até a aurora
Cantando versos de amor
Ouvia-se o trovador.”
Ele: “Hoje tudo está mudado.”
Ela: “Mas o trovador não tem data
Eu sou do século vinte
Mas gosto de serenata.”
Ele: “Ó linda imagem
da mulher que me seduz...”
Ela: “O microfone se fez
E o trovador foi ficando
No rol das coisas passadas
E hoje em dia
Ele canta de uma só vez
Para mil namoradas.”
ATAULFO ALVES e WILSON FALCÃO, “Trovador não tem data”, de 1940


O primeiro registro de voz no Brasil deu-se por intermédio do comendador Carlos Monteiro e Souza, que gravou as vozes do Imperador D. Pedro II e da Princesa Isabel por volta de 1889.
Mas foi somente em 1902 que o empresário de origem judaica Fred Figner criou a pioneira empresa fonográfica brasileira, a Casa Edison, na qual Manuel Pedro dos Santos, o cantor popular Bahiano, teve a primazia de registrar o lundu de Xisto Bahia “Isto é bom”.
A gravação de Bahiano na Casa Edison inaugurou a dinastia de cantores nacionais. Cadete (K.D.T.), Eduardo das Neves, Mário Pinheiro, Nozinho e Geraldo Magalhães fizeram parte dessa primeira geração de cantores que introduziu o profissionalismo no campo da música popular.
Esse profissionalismo também se estendeu aos músicos instrumentistas que até então ganhavam dinheiro com edições de composições para piano. Tornava-se possível para eles o emprego em casas de música, o trabalho eventual em orquestras estrangeiras de passagem pelo Brasil, assim como em orquestras do teatro musicado, ou a participação em grupos de choro e bandas musicais da cidade.
Não era fácil para os pioneiros cantores a tarefa de registrar suas vozes nos sulcos das ceras. O fato é que à época não existia microfone elétrico, mas sim o autofone, que obrigava os cantores a quase gritar (o famoso dó de peito) e os músicos a empregar toda sua força para que a cera da matriz do disco pudesse ser impressionada.
Era também necessário que o cantor executasse a obra de uma só vez, já que a gravação era feita diretamente na matriz. Qualquer erro era fatal: toda a matriz estaria comprometida. E o que dizer dos estúdios, geralmente montados com cortinas e forros de aniagem para o “isolamento acústico”? Tanto as cancionetas de Bahiano quanto o repertório romântico do erudito Mário Pinheiro penaram para ser registrados.
Num período de desencanto com os novos tempos do capitalismo após a Primeira Guerra Mundial, que decretou o fim da Belle Époque, a modernidade continuava a caminhar de mãos dadas com a ciência. A euforia prosseguia com os novos inventos e descobertas científicas. O frenético desejo de controlar a natureza era um dos lados da moeda cuja outra face mostrava os produtos dessa conquista: a luz elétrica, o telefone, o cinema, o automóvel, o avião e os novos inventos no campo da indústria fonográfica.


O“dó de peito”

A tradição do dó de peito é antiga na cultura musical brasileira. Nos teatros, dentro da lógica do belcanto italiano, os cantores precisavam utilizar seus plenos pulmões para não serem ofuscados pelas grandes orquestras. Bom cantor era, quase sempre, aquele que mais volume de voz apresentasse. 
Modinhas ou lundus, gêneros populares no século XIX, eram vociferados com toda força nos teatros da época. Ao ar livre, em serenatas, os cantores tinham necessidade de gritar para dominar as condições acústicas desfavoráveis. A expressão “estourar os tímpanos” tinha, literalmente, sua razão de ser.

Em 1927, as novidades tecnológicas possibilitaram uma melhoria significativa no processo de gravação e audição radiofônica. A energia mecânica contida no sulco dos novos discos, gravados pelo sistema elétrico, era convertida em energia elétrica, que o alto-falante transformava novamente em energia mecânica. Isso possibilitava que sons até então inéditos em gravações pudessem ser percebidos, não havendo mais a necessidade de se gritar – a partir de então se podia cantar com naturalidade.
No começo das gravações mecânicas, a primazia dos registros ficava por conta dos grupos instrumentais e das bandas de música. Era a música instrumental, quem diria, a que mais era levada para a cera. Segundo o levantamento dos pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, mais de 65% das gravações eram de música instrumental.
Mas a partir da década de 1920 e, sobretudo, com o surgimento da gravação elétrica, a era dos grupos de choro – como o Malaquias, o Passos no Choro e as bandas Escudero, Paulino Sacramento e do Corpo de Bombeiros – cede espaço para a era da voz. A partir daí, a palavra cantada liga-se diretamente ao crescimento do mercado fonográfico no Brasil. Com a criação da fábrica Odeon, em 1912, também por Fred Figner, o país passou a figurar entre os maiores consumidores de discos, alcançando a vultosa soma de 1,5 milhão de vendas por ano.
A seguir, veremos alguns dos principais nomes que se imortalizaram na história de nossa música popular como intérpretes de samba. Esses cantores arrastaram milhares e até milhões de fãs por todo o país, cristalizando no imaginário popular pérolas do nosso cancioneiro. Eles consolidaram uma linguagem citadina, marcada pelo ávido consumo musical e pelo contínuo distanciamento do universo folclórico. As vozes entoadas nos picadeiros de circo, nas serestas românticas ao luar e nos palcos do teatro de revista tornaram-se uma realidade cada vez mais distante ante o avassalador poder do rádio. Com vocês, senhoras e senhores, os cantores do rádio...


A Belle Époque

A “bela época” foi caracterizada pela crença desenfreada nas virtudes e benesses da vida burguesa. Indo do fim do século XIX ao início do XX, com grande força sobretudo em Viena e Paris, influenciou com muita vitalidade o cenário cultural das grandes cidades brasileiras. A cultura parisiense tornou-se referência para nossa elite. Reverenciavam-se o idioma francês e os poetas, escritores e pintores da Cidade Luz. No cotidiano do Rio de Janeiro, matriz política e cultural do país, a elite remodelava os espaços de sociabilidade, empurrando a cultura afrodescendente para as nascentes periferias e morros.
Mas, como bem apontou o antropólogo Hermano Vianna, “ao lado dessa tendência re-europeizante... talvez até dominante no período, subsistiram ... e foram inventadas práticas sociais que colocavam em cena um outro tipo de relação com os universos populares”.1 A hegemonia da cultura francesa não apagou as modinhas e lundus dos salões da elite, tampouco impediu que músicos populares circulassem com toda propriedade em palacetes de barões, intelectuais e políticos da cidade, com seus tão propalados violões “marginalizados”.




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