Por Leonardo Davino*
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
LENDO A CANÇÃO
Futuros amantes
"Futuros amantes", de Chico Buarque, fala do amor adiado, que não tem pressa para ser consumado e consumido; do amor maduro, longe das urgências do amor juvenil. Mas fala também, de viés, da paciência como necessidade para os acontecimentos da vida.
Lançada no disco Paratodos (1993) - que tem também a regravação da bela "Sobre todas as coisas", de 1982 - "Futuros amantes" investe na mistura de um arranjo de cordas com uma batida bossa nova e ajuda a, calmamente (sem pressa), e a voz terna de Chico ajuda nisso, transmitir a sensação de certeza e segurança no amor que é imortal.
Expressões e palavras pouco usuais em canções dão o tom buarquiano, tais como: "Posta-restante", que é a correspondência que fica esperando alguém ir buscá-la numa agência dos Correios; e "Escafandristas", o mergulhador-explorador que faz uso do escafandro. Tudo se conjuga para falar da raridade do amor.
Importa lembrar que "escafandro" é palavra que aparece em "Rapaz de capricho", de Noel Rosa, de 1933: "Perguntei ao escafandro se o mar é mais profundo que as ideias do malandro. Chico Buarque, cria noelrosiana, recupera o capricho vocabular do poeta da Vila.
Se há amor, os amantes sabem permanecer esperando o momento exato para surgir e/ou ser descoberto. Este amor cantado pelo sujeito de "Futuros amantes" superará o tempo e chegará ao futuro: quando o Rio já seja uma "cidade submersa", os escafandristas descobrirão os resíduos desse amor atemporal, que servirá de objeto de pesquisa, e de uso, devido à sua estranheza, diante das novas (ou nem tanto) expressões do amor.
Afinal, "amores serão sempre amáveis" e qualquer maneira de amor vale o canto; ou: "a flor do amor tem muitos nomes", como Riobaldo diz em Grande sertão: veredas.
Sem dúvida, "Futuros amantes", com sua poesia, mentiras, segredos e retratos, é uma bela declaração do amor romântico. Daquele tipo de amor que é tão sutil e quente que fica esquecido num fundo de armário, mas, de modo imperceptível, dando suporte à nossa existência.
***
Futuros amantes
(Chico Buarque)
Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar
E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos
Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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