sábado, 29 de fevereiro de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Francisco Alves, o Rei da Voz

Foi o carioca Francisco de Morais Alves o responsável pela primeira gravação de disco elétrico produzida no Brasil. Com duas composições de Duque – bailarino e divulgador do maxixe no exterior –, “Albertina” e “Passarinho do Má”, Francisco Alves inaugurou na Odeon, em meados de 1927, a fase elétrica. 
Vindo de sucessos do início da década de 1920, quando tinha seus 20 anos e interpretava músicas do sambista Sinhô, Francisco Alves deu um ar mais profissional ao universo musical de seu tempo. Nosso cantor foi amigo da turma do Estácio – Bide, Marçal, Ismael Silva, Brancura –, tornando-se ele próprio frequentador assíduo do grupo. Ainda que tenha realmente comprado sambas, tarefa na qual era ajudado por seu secretário, Ismael, Francisco Alves estava longe de ser um músico vulgar.
Além de bom cantor, tinha um privilegiado ouvido musical – basta considerar seu repertório –, e não foram poucas as vezes em que a inclusão de seu nome em parcerias era de fato merecida: ele era bom violonista e inventor de melodias. 
Francisco Alves representou os novos tempos, quando o crescimento do mercado de bens musicais exigia novas relações profissionais. Filho de imigrantes portugueses, branco, de classe média baixa, foi o elo entre o caráter lúdico da música do morro e a profissionalização do asfalto. Viveu a juventude nos bairros da Saúde, Vila Isabel e Estácio. Com a turma do Estácio, lançou os sucessos “A malandragem”, “Amor de malandro” e “Se você jurar”, entre outros.
Também gravando com o pseudônimo de Chico Viola na Parlophon, subsidiária da Odeon, Francisco Alves foi um dos primeiros cantores profissionais do Brasil. Cantou em circo e no teatro de revista, e tornou-se campeão de vendas de disco na Casa Edison. Ele e o cantor paulista Paraguassu foram dos poucos que passaram incólumes da gravação mecânica à elétrica. Sua voz, quase coloquial, descontraída, estilizou um jeito carioca de cantar. Segundo Abel Cardoso Junior, “é lenda que cantasse gritando, abrindo o dó de peito. Na maioria de suas gravações cantava normalmente, a não ser que a potência de voz fosse exigida pela música”.
Sua ligação com Sinhô foi extremamente produtiva. Dele, o Rei da Voz (apelido que ganhou de César Ladeira) lançou “Pé de anjo”, “Fala meu louro” e uma penca de outros sucessos. Também foi pioneiro no gênero samba-exaltação, gravando a música “Aquarela do Brasil”, do mineiro Ary Barroso. 
Sinhô foi, aliás, um grande formador de cantores em seu tempo. Ensinou técnicas vocais para Francisco Alves, tornando o seu fraseado mais sincopado. 
Mas foi na voz de um jovem carioca de família rica que o Rei do Samba encontrou uma espécie de “grito do Ipiranga” do canto brasileiro, como bem frisou o crítico Lúcio Rangel.


Mário Reis, o samba de blacktie

Coube a um jovem elegante, intelectualizado e desportista fazer uma revolução na forma de cantar o samba e levar definitivamente o gênero das ruas e dos morros cariocas para os salões da elite. Mário era o samba “de black tie, em sua fase art déco”: “foi o primeiro a cantar samba com traje a rigor. Foi ele quem retirou do gênero o seu traço folclórico e étnico para trazê-lo aos salões da alta sociedade”.
Tendo aprendido violão e canto com Sinhô, Mário fundou uma nova maneira de cantar o samba. Sua voz macia, pronunciando as palavras com a ginga do samba e do português carioca, ecoava as características estéticas de seus predecessores brasileiros e também do jazz. Com uma entonação coloquial, quase em tom de conversa, e seguindo toda uma tradição de cantores intimistas, Mário jogava para escanteio as interpretações à italiana, comuns em sua época.
O cantor Fernando, sucessor de Eduardo das Neves e Bahiano na década de 1920 e principal intérprete de Sinhô até o surgimento de Francisco Alves e do próprio Mário, talvez tenha sido a voz que mais o influenciou.
Mário conheceu o sucesso desde o início da carreira, aos 20 anos, com as músicas “O que vale a nota sem o carinho da mulher” e “Carinhos da vovó”, compostas por Sinhô. A bossa de sua voz foi imortalizando outros sucessos, a exemplo de “Agora é cinza”, de Bide e Marçal, e de outras músicas de Ary Barroso, Lamartine Babo e Noel Rosa.
Uma profícua parceria, considerada muitas vezes a mais importante da MPB, deu-se entre os maiores cantores da época: Mário Reis e Francisco Alves. O samba andava meio em baixa. Era o momento da música nordestina que, com seus conjuntos característicos, despertava no público urbano o interesse pelos cantos exóticos e as vestimentas folclóricas. Francisco Alves, sempre com seu tino para o mercado, convidou Mário para cantarem os sambistas do Estácio, a fim de saírem da maré ruim que o samba atravessava. Surgiu daí uma sequência de sucessos, dos quais Bide, Marçal e Ismael eram os principais compositores: “Não há”, “Se você jurar”, “Arrependido” e “O que será de mim”.


Trios

Os trios também tiveram destaque nas décadas de 1930 e 1940. Começando pelo Irakitã, formado por Edinho no violão, Paulo Gilvan no afoxé e João no tantã, até o renomado Trio de Ouro, surgido em 1936 com a incorporação da cantora Dalva de Oliveira à dupla Preto e Branco, formada por Herivelto Martins e Francisco Sena, e assim batizado pelo radialista César Ladeira. 
Cantadas a três vozes, as composições de Herivelto Martins foram alcançando fama nacional: “Ave Maria do morro”, samba símbolo do grupo, “Praça Onze”, “Negro telefone” e outras. Após a tumultuada separação de Herivelto Martins e Dalva de Oliveira, união que gerou o cantor Peri Ribeiro, o trio teve inúmeras outras formações.
O grande êxito da dupla abriu novos caminhos para a parceria vocal. Tornou-se até um modismo cantar em duo ou em trio. Castro Barbosa cantava com Jojoca, numa cópia “quase fiel” de Francisco Alves e Mário Reis. Noel cantava com Marília Batista, que fez toda a cidade entoar o partido-alto “De babado sim, sem babado não”. A Pequena Notável, Carmen Miranda, fez duo com sua irmã Aurora. Zé da Zilda, compositor conhecido na Mangueira como Zé com Fome, autor da pérola “Império do samba”, cantou ao lado da sua mulher, Zilda (a Zilda do Zé).
Diferentemente de Francisco Alves, que atravessou décadas fazendo sucesso até morrer em 1952 em um trágico acidente de carro na rodovia Presidente Dutra – estrada principal que une Rio de Janeiro a São Paulo –, Mário parou de cantar muito cedo, no auge da carreira, em 1936, com 161 gravações em discos de 78 rotações por minuto. Segundo o jornalista e pesquisador Luís Antônio Giron, “sua produção vocal foi quase tão impressionante quanto a atividade de Noel Rosa”.


Os conjuntos vocais

Ao lado de cantores de sucesso, havia também grupos vocais que, desde o início do século XX, marcavam forte presença no cenário musical brasileiro. Originários do Nordeste, os Turunas Pernambucos e os Turunas da Mauricéia, grupos formados predominantemente por chorões, influenciaram a primeira formação carioca do gênero, o Bando de Tangarás. Os novos conjuntos foram surgindo por todo o país, como o Bando da Lua, liderado por Aloysio de Oliveira, e o Anjos do Inferno, nome escolhido para se contrapor ao da orquestra de Pixinguinha, Diabos do Céu. Quatro Ases e um Curinga criou escola na maneira de harmonizar. Demônios da Garoa era um retrato do samba na terra de Adoniran Barbosa. Os Cariocas, outro conjunto paulista, é visto como um dos mais modernos de todos os tempos. Em época mais recente, o MPB4 e o Quarteto em Cy também abrilhantaram a trajetória dos 
grupos vocais na música popular brasileira.


Orlando Silva, o Cantor das Multidões

Na década de 1930, quando um jogador de futebol ou um artista de cinema, teatro ou rádio tinha popularidade, dizia-se que tinha “cartaz”. Esse termo era utilizado por conta de o artista ter seu nome impresso nos cartazes de anúncio dos espetáculos, sendo então sinônimo de sucesso e fama. Mário Reis e Francisco Alves tinham cartaz. Já Orlando Silva...
A visita do cantor Orlando Silva a São Paulo, em 1938, fez a palavra cartaz ficar pequena para a dimensão que a carreira do artista tomara. Milhares de pessoas se comprimiram para aplaudir de perto a inesperada apresentação do cantor na sacada da Rádio São Paulo, em pleno coração da cidade. A repercussão do show foi enorme pelo Brasil, fato que levou o locutor Oduvaldo Cozzi, da Rádio Nacional, a chamá-lo de “Cantor das Multidões”. Orlando
tornara-se o primeiro produto artístico da comunicação de massa.
A fama do cantor era tão grande que certa vez o presidente Getúlio Vargas disse-lhe de viva voz que gostaria muitíssimo de ter a sua popularidade. Orlando respondeu: “Mas ninguém tem a sua popularidade, presidente.” Ao que comentou Getúlio: “Mas eu tenho inimigos.”
Jovem do subúrbio carioca, Orlando Silva foi um fenômeno. Eterno tributário do aprendizado musical e profissional que teve com o amigo Francisco Alves, Orlando Silva explodiu em março de 1937 com a canção “Lábios que beijei”, seguida de “Carinhoso”, “Rosa”, “Caprichos do destino”, “A jardineira”, “Número um” e “Malmequer”, entre outras. “Lábios que beijei”, com arranjo do maestro Radamés Gnattali destacando o naipe de cordas – o que acabaria por promover esse tipo de orquestração no repertório romântico –, foi a música mais solicitada pelos fãs do cantor por todos os lugares pelos quais passou. Havia forte reclamação por parte do público se em algum show ele não entoasse os versos “Lábios que beijei/ mãos que eu afaguei...”.
A infância no subúrbio de Engenho de Dentro, regada a cavaquinhos, violões e bandolins dos chorões cariocas, com melodia clara, harmonia bem trabalhada e ritmo buliçoso, influenciou sua formação musical. Somando-se a isso a expressividade sentimental de sua voz e o completo domínio do microfone, chega-se aos elementos fundamentais para o nascimento do estilo Orlando Silva. 
Sua musicalidade tinha ares de erudição. “O Orlando é um cantor chopiniano”, dizia o maestro Gabriel Migliori aos músicos que acompanhariam Orlando, “ele nunca canta dentro do compasso, mas termina junto do compasso. E vocês não se devem impressionar com ele, ouvindo-o, porque aí quem sai do compasso são vocês. Deixem ele!” Orlando pronunciava as palavras de forma diferente – ressaltava “naiscer” em vez de “nascer” e “mais” em vez de “mas” –, criando uma escola inconfundível. Sua voz poderosa e melancólica entrou nos lares para universalizar as frustrações e os sonhos dos homens e mulheres simples da sociedade.


Sílvio Caldas, o Seresteiro do Brasil

Considerado pelo maestro Villa-Lobos “o professor natural da música de câmara vocal do Brasil”, Sílvio Caldas teve uma das mais belas vozes que a MPB produziu.
Nos tempos de juventude, o garoto encantava todos com sua desenvoltura ao violão nas serestas do bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Logo sua fama foi se espalhando, e em pouco tempo ele estava frente a frente com um microfone de rádio. Já conhecido e admirado pelos fãs, acabou por consolidar o título de o maior seresteiro do Brasil.
Diferenciando-se de grande parte dos cantores da época, que apenas interpretavam as músicas de outros compositores, Sílvio Caldas foi também exímio compositor e legou-nos alguns clássicos como “Cabrocha do Rocha”, com Noel Rosa, “Nos braços de Isabel”, com José Judice e “Meus vinte anos”, com Wilson Batista.
Com Orestes Barbosa, Sílvio fez a antológica “Chão de estrelas”, elogiada pelo poeta Manuel Bandeira por conter os versos mais bonitos da música brasileira: “tu pisavas nos astros, distraída...”. Jornalista crítico e combativo, autor de letras cheias de lirismo, frequentador assíduo do Café Nice, Orestes conheceu Sílvio em 1934, e fez com o novo parceiro sua principal composição.
Sílvio Caldas, o Caboclinho Querido – apelido criado, mais uma vez, pelo radialista César Ladeira –, como todo bom malandro e boêmio, também andou aprontando as suas. No carnaval de 1939, gravou a marcha-rancho “Florisbela”, de Nássara e Frazão. A música foi inscrita no concurso de carnaval da Prefeitura do Rio de Janeiro. No dia do julgamento, Sílvio chamou seus amigos Waldemar de Brito, craque de futebol, e Rubens Soares, craque de pugilismo, para ficar um em cada portão. Quem pedisse autógrafo ao Sílvio, ao Rubens ou ao Waldemar era convencido a votar na desconhecida “Florisbela”, que, ao final, saiu campeã, derrotando “Cidade maravilhosa” – sem, no entanto, tornar-se mais conhecida em função disso...
Sílvio havia derrubado com suas artimanhas a música que a cidade do Rio de Janeiro iria escolher para o encerramento dos bailes de carnaval. Na década de 1960, a marchinha de André Filho foi “oficializada” como hino da cidade: “Cidade maravilhosa/ cheia de encantos mil/ cidade maravilhosa/ coração do meu Brasil”.



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