Heitor dos Prazeres
“Lá em Mangueira
aprendi a sapatear,
lá em Mangueira
é que o samba tem seu lugar.
Foi lá no morro,
um luar e um barracão,
lá eu gostei de alguém
que me tratou bem
e eu dei meu coração”
HEITOR DOS PRAZERES e
HERIVELTO MARTINS, “Lá em Mangueira”
As pinceladas “pioneiras” de João da Baiana ecoaram na obra pictórica do compositor de samba mais famoso no reino das cores: Heitor dos Prazeres. Mano Lino, como seria conhecido Heitor nos “pagodes” do Estácio, Mangueira, Portela e na casa das baianas, transformou-se em um dos mais expressivos pintores primitivos do Brasil, retratando o ambiente do samba – em particular malandros e mulatas. Participou de exposições internacionais e teve seu quadro Moenda premiado na primeira Bienal de São Paulo, em 1951.
Criado nos redutos da Praça Onze e do Mangue, filho de marceneiro, profissão que acabou adotando, e músico da Banda da Polícia Militar, Heitor dos Prazeres iniciou sua participação nas rodas de samba da cidade através do mestre Hilário Jovino, um dos ícones da cultura popular no Rio de Janeiro. O compositor ganhou seu primeiro concurso em 1927, com o samba “A tristeza me persegue”. Dois anos depois, emplacou o samba “Deixaste o meu lar”, lançado na voz de Mário Reis. No primeiro concurso carnavalesco oficial, ganhou o primeiro lugar com “Mulher de malandro”. Circulando por Portela, Mangueira e Deixa Falar, acabou homenageando a Verde-e-rosa com “Lá em Mangueira”, feita em parceria com Herivelto Martins. Com Noel Rosa, Heitor compôs a marcha “Pierrô apaixonado”, marcada por um refrão extremamente contagiante: “Um pierrô apaixonado/ que vivia só cantando/ por causa de uma colombina/ acabou chorando/ acabou chorando...”
Heitor reclamava que seus sambas de maior sucesso não foram registrados em seu nome. Acusou Sinhô, conhecido como “Rei do Samba”, de ter-se apropriado de “Gosto que me enrosco” e “Dor de cabeça”. É verdade que o samba ainda estava ganhando sua forma urbana – diga-se, profissional.
Imperavam no meio musical os estribilhos folclóricos, ainda sem “paternidade”, de autoria coletiva. Os mais sagazes compositores faziam a segunda parte: “pegavam o passarinho”, segundo Sinhô, dando início ao processo de autoria. O samba amaxixado “Pelo telefone” consolidou-se como marco de todo um processo de profissionalização do compositor de samba.
Em 1941 Heitor formou, ao lado de Cartola e Paulo da Portela, o Grupo Carioca, fazendo diversas apresentações nas praças públicas de São Paulo e no programa de rádio A Voz do Morro, sempre acompanhado por um coro feminino. Presença garantida na Festa da Penha, ativo tocador de cavaquinho e fundador da escola de samba De Mim Ninguém Se Lembra, Heitor morreu em 1966, mesmo ano em que sua obra pictórica foi selecionada para representar o país no Festival de Arte Negra de Dacar, no Senegal.
Donga
“O chefe da folia
pelo telefone
manda me avisar
que com alegria
não se questione
para se brincar”
DONGA e MAURO DE ALMEIDA, “Pelo telefone”
É justamente em meio a um caloroso debate autoral que surge para a história do samba a figura do compositor Ernesto dos Santos, mais conhecido como Donga.
Em 1916, ele registrou na Biblioteca Nacional a música “Pelo telefone”, feita em parceria com Mauro de Almeida, jornalista conhecido como “Peru dos Pés Frios”. O samba carnavalesco, nome que Donga e Mauro deram ao gênero de sua composição, entrou para a história como o precursor do gênero. A partir daí, o termo ganhou intensa popularidade e, em apenas algumas décadas, passaria a ser identificado como símbolo da musicalidade brasileira.
“Pelo telefone” foi gravado em 1917 pelo cantor Bahiano na Casa Edison, no Rio de Janeiro, e tornou-se uma coqueluche no carnaval. Muitas vozes acusaram Donga de ter-se apropriado de uma criação coletiva cantada na casa da Tia Ciata. O importante em todo esse processo, mais até do que a verdadeira autoria da música, é o marco do registro da palavra samba no imaginário popular e o fato de que a atitude de Donga acelerou a profissionalização e a conscientização do compositor.
Pelo telefone
Mesmo existindo músicas que, antes de 1917, já se pareciam muito mais com o samba que conhecemos hoje do que “Pelo telefone”, foram as lendárias melodia e letra de Donga e Mauro de Almeida, respectivamente, criadas a partir de estribilhos que já existiam na memória musical do povo, que popularizaram o termo “samba” em nossa cultura musical. A letra é uma sátira, na versão popular, ao chefe da polícia do Rio de Janeiro, Aurelino Leal, que determinou por escrito aos seus subordinados que informassem antes aos infratores, pelo telefone, a apreensão do material usado no jogo de azar que corria solto pelas ruas do Centro do Rio. “O chefe da polícia/ pelo telefone/ mandou avisar/ que na Carioca/ tem uma roleta para se jogar...” A versão que Donga registrou em 1916, apresentada abaixo, é a que aparece nas gravações até hoje. Sua letra contém duas homenagens: ao jornalista Mauro de Almeida, “O Peru dos Pés Frios”, co-autor da obra, e a Norberto do Amaral Júnior, o “Morcego”, figura conhecida no Clube dos Democráticos.
“O chefe da folia
pelo telefone
manda me avisar
que com alegria
não se questione
para se brincar
O chefe da folia...
Olhe a rolinha sinhô,
sinhô
se embaraçou
sinhô, sinhô
caiu no laço
sinhô, sinhô
do nosso amor
sinhô, sinhô
dessa esquisitice
de disse que não disse
Ai, ai,ai
Aí está o canto ideal
triunfal
viva o nosso carnaval
sem rival
Se quem tirar amor
dos
Ai, ai, ai
Deixa as mágoas pra trás
ó rapaz
Ai, ai, ai
Fica triste se és capaz
e verás
Ai, ai, ai ...
Tomara que tu apanhes
não tornes a fazer isso
tirar amores dos outros
depois fazer teu feitiço
Tomara que tu apanhes...
porque este samba
sinhô, sinhô
é de arrepiar
sinhô, sinhô
põe perna bamba
sinhô, sinhô
me faz gozar
sinhô, sinhô
O “Peru” me disse
se o “Morcego” visse
eu fazer tolice,
que eu então saísse
[outros
por Deus fosse
castigado
o mundo estava vazio
e o inferno só
habitado
Queres ou não
sinhô, sinhô
vir pro cordão
sinhô, sinhô
do coração
sinhô, sinhô
por este samba”
Os Batutas e o preconceito
Em 1922, os Oito Batutas fizeram a primeira turnê de um grupo negro e de música popular ao exterior. Na imprensa carioca, a viagem foi vista como degradante para a imagem da sociedade brasileira no âmbito internacional – na década de 1920, os negros e mestiços eram considerados um grande empecilho para o desenvolvimento econômico e social do país. A partir das últimas décadas do século XIX, teorias racistas pregavam a vinda de imigrantes europeus para acelerar o embranquecimento da sociedade. Só depois da publicação de Casa Grande e Senzala, do pernambucano Gilberto Frey re, na década de 1930, a nossa hibridez étnica começou a ser motivo de “orgulho nacional”.
O escritor e jornalista Benjamim Costallat, observador arguto do frenesi urbano carioca, foi um dos poucos defensores dos Batutas contra as críticas que sofreram. Observe seu texto na Gazeta de Notícias de janeiro de 1922: “Foi um verdadeiro escândalo, quando, há uns quatro anos, os ‘oito batutas’ apareceram. Eram músicos brasileiros que vinham cantar nossas coisas brasileiras! Isso em plena avenida Central [atual Rio Branco], em pleno almofadismo, no meio de todos esses meninos anêmicos, frequentadores de cabarets, que só falam francês e só dançam tango argentino! No meio do internacionalismo dos costureiros franceses, das livrarias italianas, das sorveterias espanholas, dos automóveis americanos, das mulheres polacas, do snobismo cosmopolita e imbecil! ... Não faltam censuras aos modestos ‘oito batutas’. Aos heróicos ‘oito batutas’que pretendiam, num cinema da avenida, cantar a verdadeira terra brasileira, através de sua música popular, sinceramente, sem artifícios nem cabotinismo, ao som espontâneo dos seus violões e dos seus cavaquinhos.”
Filho de Tia Amélia, festeira baiana da Cidade Nova, Donga começou a aprender cavaquinho aos 14 anos, ouvindo as melodias do chorão Mário Cavaquinho. Freqüentou a casa de Tia Ciata com Bucy Moreira, Caninha, Pixinguinha e Sinhô, e também a casa da baiana Sadata, levado por sua mãe para cantar e dançar na Pedra do Sal. Aos poucos o jovem aprendiz foi deixando o cavaquinho de lado para aprender violão com o renomado professor Quincas Laranjeiras.
Tocando um violão armado em clave de fá, em vez de em clave de sol, e com o apelido de Zé Vicente, Donga passou a fazer parte do Grupo Caxangá, formado em 1914. Pioneiro na formação dos regionais e precursor dos Oito Batutas, o Grupo Caxangá ainda tinha no violão João Pernambuco, músico que influenciou a obra violonística de Villa-Lobos, e, na flauta, Pixinguinha.
O Grupo chamou a atenção da sociedade carioca da época. Com o sucesso, Pixinguinha e Donga foram convidados para formar um novo conjunto e tocar no Cine Palais. Nasciam então os Oito Batutas, primeiro grupo de negros a tocar em um luxuoso cine e a realizar uma turnê internacional.
Donga também participou de outros conjuntos, como o Guarda Velha e o Diabos do Céu, em ambos ao lado de Pixinguinha. Em 1954, Almirante criou a Velha Guarda, trazendo para o cenário musical instrumentistas e compositores do quilate de Bide, João da Baiana, Alfredinho, Rubem, Mirinho, Lentini, Waldemar e, é claro, Donga e Pixinguinha. O grupo fez uma boa temporada na Boate Casablanca, na Praia Vermelha, até 1958.
Donga concentra sua maior produção como compositor nos anos 1920 e 1930.
Nos anos 1940 foi indicado, com Cartola, Pixinguinha, Zé da Zilda e outros, para gravar com o então famoso regente internacional Leopold Stokowski. Daí surgiu uma série de gravações intitulada Native Brazilian Music, lançada nos Estados Unidos pela Columbia e hoje fonte raríssima para pesquisadores. De Donga foram registrados “Pelo telefone”, “Passarinho bateu asas”, “Bamba-bambu”, “Cantiga de festa”, “Macumba de Oxóssi”, “Seu Mané Luís” e “Ranchinho desfeito”.
Tocando violão, banjo e cavaquinho, Donga construiu sua vida no samba e no choro tendo como parceiros João da Baiana, Pixinguinha, Valfrido Silva, José Nascimento, Max Bulhões, Espinguela, David Nasser, Haroldo Lobo, China, Henrique Chaves e Zé da Silva. Sua obra de compositor não é muito extensa, mas sua história de vida e a criação de “Pelo telefone” eternizaram seu nome na história da música popular brasileira.
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