terça-feira, 28 de janeiro de 2020

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*





Alegria, alegria

Foi com "Alegria, alegria" (guardada no disco Caetano Veloso, 1967) que Caetano Veloso começou a enfrentar os riscos de questionar os preconceitos do público dos Festivais da canção.
Caetano (no livro Verdade Tropical) escreve que o uso de “coca-cola” na canção foi “inaugural” e “marca histórica”, porém, o historiador Paulo Cesar de Araújo (no livro Eu não sou cachorro não) argumenta que já em 1961 Baby Santiago compôs o rock “Adivinhão”, com os versos: “À noite ela falta à aula / pra ficar comigo e tomar Coca-cola”.
De todo modo, "Alegria, alegria" inaugura possibilidades e abre perspectivas impenssáveis até então.
"Alegria, alegria", para além da citação direta do existencialismo de Jean-Paul Sartre (quando este diz, no livro As palavras, que o que ele (Sartre) ama em sua loucura é que ela sempre o protegeu contra as seduções da elite: “nunca me julguei feliz proprietário de um talento: minha única preocupação era salvar-me – nada nas mãos, nada nos bolsos – pelo trabalho e pela fé”); e da retomada paródica do samba "Alegria" (1938), de Assis Valente e Durval Maia, imprime uma alegria consciente e um gosto pelo gostar que persevera, afirmativamente, diante da vida fazendo o sujeito “seguir vivendo amor”.
Com o verbo "ir" sempre incultando ação e movimento, contra o vento, o sujeito da canção se opõe, por exemplo, à canção "Pra não dizer que não falei das flores", de Geraldo Vandré, quando esta diz: "Caminhando e cantando / E seguindo a canção".
Ao contrário, o sujeito de "Alegria, alegria" não segue a canção, "vai": complexifica e reverte o sistema - cria um canto para si, compõe sua história efetiva, singular. E estilhaça a competência receptiva do ouvinte "bem comportado", gerando o desconforto que impulssiona o outro a "ir junto".
Ao invés de "amores na mente", o sujeito "tem o peito cheio de amores vãos". Por que não? Caminhar ao abstrato é ser universal: desejo íntimo do sujeito, que narra seu caminhar, sua relação ilícita com o mundo.
Assim, ele, consolado pela canção que compõe para si, e que pensa em cantar na televisão, ou seja, dar de presente às massas, fica mais distante da morte, a cada nova imagem anexada ao canto; a cada nova especulação do perigo: afirmação do risco, de viver.


***

Alegria, alegria (Caetano Veloso)

Caminhando contra o vento
Sem lenço sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes pernas bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot

O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia?
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou

Por que não? Por que não?

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço sem documento
Eu vou

Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do Brasil

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou

Sem lenço sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo amor
Eu vou









* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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