sábado, 18 de janeiro de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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• INTRODUÇÃO •
EU SOU O SAMBA



Eu sou o samba a voz do morro sou eu mesmo sim senhor... sou eu que levo a
alegria para milhões de corações brasileiros.
ZÉ KÉTI, “A voz do morro”



A música popular brasileira tornou-se, como disse o crítico cultural Antônio Cândido, o “pão nosso cotidiano da cultura nacional”.1 E o samba foi o recheio, por vezes inspiração, de quase todos os movimentos musicais desta terra carnavalesca. Isso aconteceu até mesmo naqueles momentos em que “modernos” músicos tachavam-no de arcaico, ultrapassado.
Apesar de ser um gênero resultante das estruturas musicais europeias e africanas, foi com os símbolos da cultura negra que o samba se alastrou pelo território nacional. No passado, os viajantes denominavam batuque qualquer manifestação que reunisse dança, canto e uso de instrumentos dos negros. Esse era então um termo genérico para designar festejos. O sentido amplo permaneceu na literatura colonial até o início do século XX, quando a palavra
samba passou a ocupar seu espaço.
A primeira menção ao termo samba conhecida foi feita em 3 de fevereiro de 1838 no jornal satírico pernambucano O Carapuceiro. Mas samba significava tudo menos o ritmo que conhecemos hoje. No Rio de Janeiro, por exemplo, a palavra só passou a ser conhecida ao final do século XIX, quando era ligada aos festejos rurais, ao universo do negro e ao “norte” do país (ou seja, a Bahia).
Nos primórdios do século XX, a literatura carioca já registrava com freqüência o termo samba. Cada vez mais distante de sua inspiração folclórica, as situações em que aparecia diziam respeito ao ambiente urbano e já mestiçado da cidade. O samba era comparado com o maxixe e o tango, palavras que musicalmente representavam, muitas vezes, a mesma coisa.
Aos poucos estava sendo pavimentado o terreno, ou melhor, o terreiro em que o samba iria se consolidar. Urbano, mestiço, carioca e já dispondo dos instrumentos percussivos das escolas, ele foi gradualmente eleito pela população o principal ritmo musical do Rio de Janeiro. Era o coroamento de séculos de interação etno-cultural, muitas vezes conflituosa, mas sempre com poros comunicativos bem abertos.
O Estado implantado no Brasil após a Revolução de 1930 soube aproveitar a “pegada” popular do samba e, com incentivos ao carnaval das escolas e a utilização da recém-inaugurada radiodifusão, ajudou a expandir o gênero nacionalmente. Na década de 1940, samba passa a ser sinônimo de brasileiro e ganha fama internacional, de forma que hoje o mundo inteiro vê o Brasil como berço do carnaval e do samba (sem falar no futebol, claro!).
Ainda que guardasse o sentido de festa na palavra – “Eu vou ao samba/porque longe dele não posso viver...”, diz Paulinho da Viola –, o termo samba criou tão sólidas raízes que seria impossível enumerar os significados de todas as suas ramificações etimológicas: samba-choro, samba-canção, samba de terreiro, samba de exaltação, samba-enredo, samba de breque, sambalanço, samba de gafieira, bossa nova, samba-jazz, samba de partido-alto, samba de morro, samba de quadra e samba-rocksão algumas delas.
Não sendo o leitor “ruim da cabeça ou doente do pé”, já percebeu que a riqueza desse “batuque” contemporâneo só vai acabar na hora em que o dia clarear. Por isso, vamos em frente que a noite está só começando.



• CAPÍTULO1 •
BATUQUE NA COZINHA

Não tem nada disso. Depois é que o samba foi para o morro. Aliás, foi para todo

lugar. Onde houvesse festa nós íamos.1
Resposta de DONGA à pergunta sobre se o samba veio do morro, em entrevista
realizada no Museu da Imagem e do Som, em 1969.




Tendo herdado o status de capital desde o período colonial, ou, mais precisamente, desde 1763, o Rio de Janeiro presenciou um crescimento vertiginoso de seus índices demográficos no último quartel do século XIX. No início da década de 1890, havia mais de meio milhão de habitantes, dos quais apenas a metade era natural da cidade; os demais vinham de outras províncias, como Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e São Paulo. O Rio consolidava-se como o epicentro político, social e cultural do país, atraindo milhares de pessoas.

A busca desenfreada por melhores oportunidades de trabalho acabou por transformar a futura Cidade Maravilhosa em espaço urbano síntese de confluência e conflito de etnias, classes e projetos socioculturais.

Essa população passou a conviver, no governo do presidente Rodrigues Alves, com as transformações “modernizantes” planejadas e realizadas em escala federal e municipal no Centro da cidade. Era preciso “civilizar” a capital federal, deixar no passado as feições coloniais materializadas nas pequenas ruelas, no saneamento precário, nos “batuques” africanos pelas ruas, nas doenças contagiosas, nos cortiços e, claro, na sujeira generalizada que relegava à coadjuvação a bela tríade da natureza tropical: mar-floresta-montanha. Assim pensava grande parte da elite da época, sempre tomando como paradigma a civilização europeia.

Mesmo reconhecendo a premência de reformas urbanísticas e higiênicas, visto que a falta de moradia decente para a população e a exposição a toda sorte de lixo nas ruas causavam a morte de milhares de pessoas, é preciso separar o joio do trigo. A tentativa de “civilizar” a capital da República – abrindo grandes avenidas, como a Central (atual Rio Branco), destruindo os cortiços, extirpando a febre amarela e a varíola – expôs aos olhos de todos uma política governamental extremamente elitista. Modernizar, para a elite dos primeiros anos do século XX, era retirar do Centro da cidade todos os traços de africanidade e de pobreza, empurrando a população mais humilde para as favelas e subúrbios. A modernização do Rio caminhava de mãos dadas com a construção moderna da exclusão social. Começava aí a história da cidade partida.




Quem quer comprar um rato?

O encarregado pelo prefeito Pereira Passos de erradicar as doenças que proliferavam entre os cariocas foi o sanitarista Oswaldo Cruz. A destruição dos cortiços e a limpeza da cidade facilitavam a ação higienista, mas a presença dos ratos era freqüente nas casas, lojas e ruas, transmitindo toda sorte de doenças. Oswaldo Cruz determinou então uma radical desratização.

Para tanto, organizou uma brigada de exterminadores, dando a cada um dos seus integrantes a tarefa de apresentar cinco ratos mortos por dia. Os que excediam esse número eram gratificados com a razão de 300 réis por cabeça.

O insólito ato mostrou-se eficaz, e lá saíam pelas ruas os exterminadores, carregando grandes latas e apregoando a compra de ratos: “Rato! Rato!” Cena tão inusitada não poderia passar despercebida pelos compositores da cidade. O melodista Casemiro Rocha, pistonista da Banda do Corpo de Bombeiros, e o letrista Claudino Costa lançaram a bem-sucedida “Rato rato”, polca que diz assim:

Rato, rato, rato
Por que motivo tu roeste meu baú?
Rato, rato, rato
Audacioso e malfazejo gabiru
Rato, rato, rato
Eu hei de ver ainda o teu dia final
A ratoeira te persiga e consiga
Satisfazer meu ideal



Por outro lado, como resultado do crescimento urbano, surgiram à época diversos espaços de entretenimento. As reformas no Centro reorganizaram o lazer do carioca, oferecendo novos teatros, salas de cinema (cines) e bares com música (cafés-cantantes), tudo isso tendo como um dos principais endereços a primeira via urbana a merecer o nome de avenida, logo batizada de Central. 

As descobertas tecnológicas também foram mudando a vida dos habitantes.

Novidades industriais, como o gramofone, permitiram às pessoas ouvir música em casa sem a até então indispensável presença de músicos. O telefone, o bonde elétrico e o automóvel encurtaram as distâncias e redimensionaram o olhar dos indivíduos sobre a cidade.


Quando a radiodifusão surge, nos anos 1920, todas as experiências musicais acumuladas na cidade do Rio de Janeiro vão, de uma forma ou de outra, se fazer presentes. A musicalidade dos migrantes e imigrantes, com seus ritmos regionais, a modinha e o lundu dos violeiros, o choro dos funcionários públicos, o maxixe da Cidade Nova e o samba dos morros recém-ocupados vão ser “exportados” para todo o país como exemplos da força do primeiro veículo de comunicação de massa.

Após as décadas de 1930 e 1940, os milhões de ouvintes das rádios ficaram definitivamente dependentes de um padrão de cultura formulado a partir de interesses da capital federal. Não é à toa que o samba, já devidamente registrado na cidade do Rio de Janeiro, passa a ser o gênero musical identificador da sociedade brasileira.

Antes de mostrar o samba no pé, vamos esquentar os tamborins mergulhando um pouco na cultura musical do Rio de Janeiro. É a partir desse legado, trazido, fomentado ou criado na cidade, que enfocaremos uma das páginas mais ricas de nossa memória musical. A ela.

Nasce a música urbana A música popular urbana brasileira é resultado da confluência cultural de três etnias: o índio, o branco e o negro, dos quais herdamos todo o instrumental, o sistema harmônico, os cantos e as danças. Como manifestação cultural expressiva, essa música urbana surgiu no início do século XIX, nos principais centros da colônia, notadamente Rio de Janeiro e Bahia, entoada por pessoas que cantavam modinhas e lundus ao violão, ao piano ou acompanhadas por grupos instrumentais.

De origem africana, mais precisamente da região de Angola e do Congo, o lundu foi trazido para o Brasil pelos escravos no fim do século XVIII. Caracteriza-se pelo canto e pela dança em que o alteamento dos braços, com o estalar dos dedos, e a umbigada – encontro dos umbigos dos homens e das mulheres – são acompanhados por palmas.

Em terras brasileiras a dança do lundu foi cultivada por negros, mestiços e brancos. No século XIX o lundu vira lundu-canção, sendo apreciado nos circos, nas casas de chope e nos salões do Império. Acabou por tornar-se o primeiro gênero musical a ser gravado no Brasil (“Isto é bom”, de Xisto Bahia, gravado na voz de Bahiano em 1902 pela Casa Edison).

A modinha, contemporânea do lundu e a ele muito associada em seu gênero canção, também é um fenômeno musical do século XIX, como apontou o pesquisador Carlos Sandroni. A moda, que era toda canção da época, virou modinha quando se popularizou pelo país.

O mulato Caldas Barbosa foi o principal compositor da modinha e do lundu-canção à época de seu surgimento. Esse filho de português com escrava negra teve sua obra reconhecida na corte portuguesa, onde se notabilizou pelas trovas improvisadas ao som das cordas de sua viola.

Os dois principais gêneros musicais urbanos nos tempos do Império e do início da República, o lundu e a modinha, eram apreciados nos saraus literário-musicais da elite da época e também nas ruas, tabernas e lares mais simples. À noite, instrumentistas ao violão, sozinhos ou em grupo, saíam pelas ruas e residências entoando músicas românticas e cristalizando, ao final do século XIX, a brasileiríssima tradição da seresta.

Muitos poetas românticos e modernistas, como Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, inspirados na tradição da modinha, tiveram seus versos musicados por melodistas. A modinha foi, de fato, um elemento de integração nacional, cantada nos quatro cantos do Brasil. 

Sua relevância permanece em nossa cultura, na obra de compositores do porte de Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Tom Jobim, entre tantos outros.




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